“Writing is making sense of life. You work your whole life and perhaps you´ve made sense of one small area”. Nadine Gordimer, escritora sul-africana e Prêmio Nobel de Literatura
I – Caderninho
Dia desses tirei da gaveta um velho caderno que comprei na Escandinávia e, percebendo que as folhas permaneciam virgens, decidi que o traria comigo à África do Sul, em viagem que se iniciou dias atrás em Brasília, cidade onde moro. Tamanho impulso e zelo se deveu ao fato de que o registro de observações no computador vinha se revelando frustrante e parcial. Primeiro porque, dada a facilidade que se tem de corrigir o texto, eu estava a todo momento consertando o que já estava escrito e, muitas vezes, mesmo o já satisfatoriamente redigido. Segundo porque os avisos frequentes da visita de amigos de redes sociais me desviavam do foco e eu terminava por ser demasiado superficial em meus registros, quando não deliberadamente leviano. Agora, de posse do caderninho, sinto que tudo será mais fácil e solene. Afinal, vou reatar com as minúcias perdidas, sem que para tanto eu perca de vista que não devo ser pesado para com quem um dia venha a ler essas anotações. Quando isso acontecer, espero estar morto ou, pelo menos, aposentado, de forma que as revelações aqui registradas não possam me trazer danos maiores. Meu ofício pede discrição, mas sou mortal, logo regido por pequenas compulsões que desaguam em excessos eventuais. Tê-las, é uma coisa. Assumi-las, pois bem, só mesmo à distância, por escrito e sozinho.
Certo mesmo é que tive um voo tranquilo até Joanesburgo e, no trajeto, concluí que há cinco anos não vinha à África subsaariana. Isso porque viagens ao Marrocos, à Tunísia e ao Egito não podem ser consideradas incursões ao Continente Negro. Ora, os aludidos países pertencem a outro bloco civilizacional, como gosta de dizer o embaixador Péricles. Portanto, não escondo alguma alegria em reatar com paisagens que integraram meus inícios e, por que não, com as emoções únicas do expatriamento em terras à época tão precárias. O que me traz aqui? Prospecção de negócios, ora. Quer se queira quer não, integramos o mesmo bloco econômico que os sul-africanos e em breve teremos Jacob Zuma no mesmo barco de nossos mandatários recentes. O comércio é um meio efetivo para contornar tensões inerentes às fraturas. Isso feito, que tal um pouco de evasão mental na pontinha sul do Continente? Assim, tentarei não sucumbir ao paludismo ou à malária. Tomarei precauções mesmo porque agora estou mais para presa do que para predador. E o continente é hostil, quase perigoso. Será que voltarei a Soweto depois de tantos anos? Afinal, o que teria sido de minha vida sem essas sacudidelas? Penso, sobretudo, em descansar bem nos primeiros dois dias. Os últimos meses exigiram tanto de mim que quase já não sei o que é uma trégua.
II – Downtown
Os primeiros dias de estada aqui na África não foram inspirados. Não cheguei sequer a acionar o caderninho como planejava. Cheguei a Joanesburgo a tal ponto exausto que nada me pareceu mais convidativo do que dormir o máximo que pudesse em Sandton. O torpor era tanto que mal conseguia me levantar. À medida que os sintomas de cansaço se aprofundaram, me dei conta de que a cidade se eleva a quase dois mil metros de altura acima do nível do mar. Ademais, sendo inverno, a secura do ar se compara à de Brasília em agosto. Foi nesse diapasão de prostrado que, asmático, passei uns dias. Já no domingo, precisei me recuperar na marra. Assim, fui ver o mercado de quinquilharias de Rosebank. À tarde, me aventurei a visitar os velhos endereços da juventude, mas a cautela me recomendou moderação de forma a evitar que a nostalgia se transformasse em temeridade. A quantidade de imigrantes ilegais do Zimbabwe e Moçambique na região da praça Gandi era assustadora. Já pelos lados de Hillbrow, são os traficantes nigerianos que dão o tom da barra pesada. Contentei-me em passar pela porta do hotel Carlton de algumas estadas e segui caminho. O hotel estava fechado. Nas ruas principais, um verdadeiro camelódromo se estatelava sob as barbas de prédios vetustos de onde se ditava a cotação da onça-ouro mundo afora.
Segundo me relatou uma velhinha de cabelos azulados, todo mundo “de bem” saíra do centro e fora morar nos subúrbios assépticos. Alguns prédios foram lacrados e protegidos manu militari para evitar ocupações. Outros tantos viraram valhacoutos dos barões do submundo, vindos de Maputo, Adis Abeba, Dar-es-Salam, Harare e Lagos – para não falarmos dos delinquentes locais e seus associados balcânicos. É claro que uma das vantagens de ser brasileiro reside em saber lidar com essas coisas. Nossa programação mental nos coloca em situação mais confortável diante do perigo do que um toscano ou um alpino de qualquer extração. A gente tem a ginga para prever, neutralizar e desequilibrar o impulso hostil alheio já no nascedouro. Mas convém não abusar disso. Mesmo porque ciência sem prática é má conselheira. E, na hora da conflagração, o manual vira sopa de letrinhas. De resto, somos condicionados a achar que becos escuros e homens africanos – locais e os da imensa diáspora – são péssima combinação. Só lhes conseguimos ver os dentes e o branco dos olhos, normalmente quando já estão a um metro. Isso porque a camuflagem do breu noturno lhes dá cobertura perfeita. Nessas horas, a reação tem que ser dosada. Nem assustada nem indiferente. A primeira pode transformá-lo em vítima. A segunda pode ofendê-los sobremodo.
III – Em Soweto
A verdade é que os sul-africanos negros podem ter uma suscetibilidade de debutante. Gostam de ser tratados pelo nome – que dão ao menor pretexto. A propósito, nada de Peter, John ou Richard. Sequer nomes africanos estão muito em voga. Mas gostam de Gilbert, Archibald, Cassius, Reginald. Metade das brigas de rua entre eles decorre do que consideram falta de respeito. Obedecem, no cotidiano, a um código similar ao das cadeias. Pelo menos quando se falam em alguma das nove línguas africanas do País. Nesse contexto, nos dias de torpor preguiçoso que vivi, pegava um quilo de jornal na recepção e passava horas lendo o noticiário policial. Ora, num dos townships que compõem Soweto, um bacana levou para um rega-bofe uma garrafa de Johnny Walker vermelho. Como esquecera alguma coisa em casa, se ausentou por alguns minutos. Ao voltar, o anfitrião abrira a garrafa e os brothers já estavam se deliciando com seu néctar. Ora, o dono do mimo ficou abespinhado. Que história era aquela? Não, não estava zangado porque eles estavam bebendo, pois para isso trouxera a garrafa. Ficara, sim, fulo com a atitude do presenteado que, espaçoso, abriu a garrafa longe de seus olhos. Ademais, essa era uma honra que lhe competia como patrocinador. Daí ter ido até sua casa sem medo de ser surpreendido, quase ingenuamente.
Mas fizera mal. Assim sendo, humilhado, pouco sóbrio e raivoso diante de gente soberba, embriagada e debochada, não lhe restou alternativa senão eviscerar o mal-agradecido. O talho foi tão profundo que mal careceu de levar a vítima ao hospital. Ficou ali, os olhos vidrados no teto, perdendo sangue em jorros, balbuciando em xhosa e zulu. Isso porque Soweto é terra do bem. Tudo isso acabara de acontecer quando estive lá. Aliás, como nunca tinha visitado a casa onde Mandela viveu, resolvi fazê-lo, apesar de a atração ser explorada por Winnie, a ex-esposa permissiva. Paguei sessenta rands para entrar – vinte reais – e já tangi para longe a guia melíflua, fiel à minha proverbial intolerância a embustes. Pedi, pois, silêncio e recolhimento. E nenhuma palavra sobre Winnie, por favor. Tinha mais: que parasse de me chamar My king. Eu estava ali para sentir a presença de Madiba e pouco se me dava se a fala dela já estivesse incluída no preço do ingresso. Depois de dez minutos de silêncio, ela apontou um cinto largo e verde com imensa fivela. Como Mandela foi boxeador dedicado, embora sem títulos, ninguém menos que Sugar Ray Leonard lhe presentara com o cinturão de campeão mundial dos médios-pesados. Imagino ser o presente perfeito. Uma honra para quem dá e outra para quem recebe. Chorei de emoção.
IV – Desmond Tutu
Quando voltei para a rua, ainda de olhos marejados, o motorista queria me levar para a casa de Desmond Tutu. Eles se orgulham de ser a rua Vilakazi a única do mundo com dois prêmios Nobel a cem metros um do outro. Nem Boston. Mas dispensei-o. Iria à casa de Tutu sozinho e a pé. No domingo, ele completara 60 anos de casamento com Leah. Li no jornal o que dissera na missa a que compareceu até mesmo F. W. de Klerk. Sem ela, aduziu o Arcebispo, talvez não tivesse usufruído a pleno dos planos generosos que Deus havia traçado para ele. Sem ela – às vezes dura diante de um Desmond eternamente romântico e positivo -, ele não teria saído de casa inteiro, sem medo de não voltar. Lembrou-me o velho Dr. Ulysses falando de D. Mora e a garganta travou pela segunda vez na mesma tarde. Pensando nesses grandes homens e na miséria de nossa pequenez, fiquei recostado na casinha de esquina, vendo o motorista apontar o relógio, desapontado por eu não ter comprado nenhum dos badulaques que os circunstantes tinham trazido. Estranho viajante, deve ter pensado. Não tem câmara, não sabe usar o celular e ainda fica fazendo do muro do religioso uma escora para o corpanzil. Já estava me afeiçoando a Joanesburgo, apesar da boca seca e da respiração ofegante, quando veio a hora de viajar para a Cidade do Cabo.
A meta, na verdade, era fazer o trajeto de trem. Mas deixei a Maria Fumaça para depois e peguei um avião. Pois não é que uma jovem mãe de intrigantes olhos verdes a ralhar com o filho na tenebrosa língua africâner me deu a maior bola? Isso foi no embarque. No voo, veio me dar umas roçadas de bunda propositadamente. Em outros tempos, eu a teria levado ao banheiro, mas um 737 não comporta certos arranjos. Aqueles olhos me remeteram mais do que o normal a Vera Weisz, uma linda sul-africana com quem saía muito na Alemanha. Judia de Durban, pertencia àquela leva de 1976 – ano da sublevação de Soweto. Os pais então compraram uma casa em Baden-Württemberg e a mandaram para lá. A África do Sul teria anos de guerra pela frente. De resto, vou vivendo. Não posso ficar indiferente aos curries moçambicanos que são picantes nem tampouco evito de me locupletar com um bom prato de frutos do mar acompanhado dos excepcionais vinhos dessa terra onde correu sangue e ouro, mas cuja composição – de par com o clima perfeito – é pródiga em boas safras. No âmbito das recomendações práticas, contudo, sugiro a todo mundo em apuros atentar para os serviços profissionais de Baba Ufama Kahtila Mekebe, diariamente anunciados em primeira página do jornal como sendo o homem do momento. Senão, vejamos.
V – Ufama Kahtila Mekebe
O Baba tem cinco especialidades: alongamento peniano sem tração, ou seja, o pênis vai crescer na medida que ele ativar algumas partes do saco escrotal e dos testículos com a ajuda de sua equipe. Diz que é método novo e patenteado. A segunda cátedra dele é ganhar nas loterias. Tem inúmeros testemunhos de sucesso até para a salvação de empresas. A terceira é engravidar as inférteis. A quarta é fazer despachos violentíssimos contra pessoas que, sendo do mal, precisam ser lembradas de que não estão esquecidas. A quinta é a proverbial recuperação de amor evadido. Para essa finalidade, ele vende amuletos e, aos muito céticos, só pede remuneração depois do sucesso alcançado. Botaria o Brasil nos eixos com dois passes. Enquanto penso nessas venturas, repasso o que vem sendo minha existência perdido nos corredores da burocracia estatal e nas ruas sem alma de Brasília. Então concluo que tive uma vida virtuosa, mas essencialmente vivida à margem dos rebanhos a que deveria me sentir pertencente. Ora, a África ensina que animal desgarrado é presa fácil e mil olhos a observam enquanto dá passos trôpegos – que podem ser os derradeiros – na imensidão das savanas. Nesta linda Cidade do Cabo, amo as rajadas de vento que infernizaram os navegadores e o pôr de sol dramático que parece anunciar a chegada do apocalipse.
Falando nisso, anda engraçado o mundo. Li no começo da semana que um gordo pesando 455 quilos deu entrada num hospital daqui com um problema respiratório. Por que será, hein? Improvisaram uma cama, derrubaram as paredes, trouxeram uma empilhadeira, dispensaram a caução, fizeram o diabo. A família dizia que ele sairia a tempo de passar o dia de Mandela em casa. Mesmo porque, ele é um lutador. Pois bem, chegaram ao hospital e o obeso tinha morrido. O clima era de revolta, ora. Como pode isso ter sucedido? Culpa médica, só pode. Ele estava conseguindo até dar uns passos. A família estava inconsolável. Sabem como eles protestam aqui? Dançando. É o chamado toyi-toying. Resolveram demitir metade dos operários da fábrica? Eles não gritarão slogans nem jogarão pedras. Vão dançar o toyi-toying na frente do escritório. Interessante, não é? Deve estar ligado a um rito de guerra ou a uma espécie de resistência pacífica. E riem, ainda por cima. As negras com aquelas bundas imensas e aqueles peitos volumosos. Acham que é só genética? Não, é padrão de beleza. Eles não gostam das magrinhas, das esbeltas da Tanzânia ou do Quênia. Daí o babalorixá ter tantos clientes para a tração peniana como forma de garantir vida sexual plena aos homens. Sem um membro vigoroso e longo, não há como varar tanta carne.
VI – White Horse
Hoje vi cinco esculturas de cavalos brancos de minha altura e fui ler do que se tratava. Ora, em 1966, um cargueiro naufragou no mar bravio da baía e veio a pique na praia de Sea Point, bem central. Todos os passageiros e tripulantes foram salvos por helicóptero, apesar dos ventos terríveis. Pois bem, a nau continha milhares de garrafas de uísque White Horse. Nos dias seguintes, cavalinhos brancos – aqueles que vinham pendurados no gargalo, – começaram a aparecer na areia de cascalho da praia, para alegria das crianças. Daí um escultor local ter feito cinco cavalos em tamanho grande e eles hoje ornam a orla. Fiquei bom tempo em contemplação, lembrando meu pai. Assim sendo, com o mar azul, um vento fresco e um sol morno, faço de seis a oito quilômetros relativamente bem, com uma leve dor na cabeça do fêmur direito. Agora que estou livre de reuniões e de compromissos fora da cidade, pretendo me entregar mais aos cafés, à culinária japonesa e seus atuns lindos e baratos. De resto, sou mesmo o mais solitário dos homens. Mas quando o sono chega, é tiro e queda. Preciso desligar a luz de cabeceira de imediato porque, se não o fizer, me arrisco a dormir com ela acesa. Não me aflige sobremodo o medo da morte súbita. De qualquer sorte, estou perto do hospital onde Dr. Christiaan Barnard fez sucesso nos anos 1960.
De resto, desenvolvi um hábito que me faz bastante bem, é indolor, e espero que não revele decrepitude. Vou às farmácias boas e converso com os farmacêuticos. Os profissionais indianos daqui são muito bons. De forma muito convincente, explicam os prós e contras da Sinvastatina e do uso indiscriminado do Omeprazol. Então compro uma pomada recomendada para ativar a circulação das pernas. Ontem mesmo, um deles me falou que o importante não é esfregar. É massageá-la de baixo para cima, como se estivesse fazendo uma drenagem linfática. Acaso não é o propósito devolver o sangue que se acumula lá embaixo e evitar a formação de coágulos? Pois. Podemos falar também de alguma aspirina de baixa dosagem para tomar à hora de dormir ou de um analgésico letal, um lançamento. Enfim, qualquer coisa que pretexte uma troca de impressões. A condição é que não custe mais do que 40 reais e que tenha uma bula bem escrita. Livrar-me dos programas de fidelidade das farmácias brasileiras já é muita coisa. Pensando bem, pouca gente precisa de tão pouco quanto eu. Tirando os atuns de Sea Point, os livros, a cama, o chuveiro, a passagem de volta, o tênis confortável, o computador, uma agenda de trabalho, disposição para escrever, pois bem, me viro por dez dias com mil reais em qualquer lugar do mundo.
VII – Peso a menos, peso a mais
Esse mês que logo findará, assinalou a retirada de um peso imenso das costas. Um sacripanta me fizera uma desfeita financeira e depois passou a não mais atender telefonemas. Então consegui convencê-lo de que ele incorria em falta grave se não honrasse o compromisso. Onde já se viu confundir cortesia com covardia? Acaso era exemplo que desse à mulher e aos filhos? Afinal, quando pelejávamos para conseguir a conta do cliente, não era ele quem me ligava três vezes ao dia? Basta dizer que ia me pegar no aeroporto regularmente e até ao hospital me levou quando luxei o pé. Mas então veio com alegações de que tinha tomado um prejuízo grande; que seu cliente principal se matara; que o mercado estava ruim; que o sócio o roubara descaradamente; que o filho estava mal na escola e que até a empregada tinha aparecido grávida. Como se vê, tudo muito, muito, mas muito consistente com um trabalho conseguido, executado e pago. Deixei claro que tinha trazido do Japão uma faca de eviscerar um atum de até quinhentos quilos. Ou seja, que dava conta dele sem dificuldade. Não, não pretendia inaugurá-la sem que nem mais, mas desde que os fatos não me forçassem a tanto. Competia a ele lidar com a realidade, eu era mero instrumento de uma vontade maior. Nada de pessoal, que entendesse. Fui sincero, ora. Fui mesmo.
Ano passado, no limite do prazo, ele me chamou para um acordo. Cheguei mudo e mudo fiquei. Tinha gente dele no recinto. Sei disso porque eu tinha mandado o libanês tocaiar os acenos que ele trocara com um cara, ainda antes de minha chegada. Alguém ali pularia em cima de mim se eu tentasse matá-lo. Quando ele disse como pretendia fazer, não estrebuchei. Era melhor do que eu esperava. Dei-lhe um guardanapo de papel e o fiz anotar aquilo tudo. Depois, pedi que assinasse o documento, que o fotografasse e me desse o original. Uma derrapada e voltaríamos ao zero. Ele anotou e partimos para o cumprimento do avençado. Efetivamente, ele cumpriu tudo. E vejam o quanto era irrisório: só deu para cobrir o aluguel de uns meses. Agora já posso fazer planos para o futuro e presentear minha faca de quarenta mil ienes a quem dela quiser fazer bom uso. Pensei, contudo que, quando esse dia chegasse, quando ficasse livre dessa pendência, tomaria um champanhe onde quer que estivesse. Mas não foi isso o que aconteceu. Preferi observar as coisas da África e esquecer banhos de sangue, pais de santo e sashimis. Hoje penso: por muito pouco não desgracei a vida, mas acho que o teria feito com serenidade no coração. Por trás disso, só uma força motriz: o amor ao princípio. Quem disse que só temos renda nos punhos?
VIII – Durban e a África oriental
Eis uma cidade graciosa, mas a costa é muito saturada. Mais parece um balneário antigo como Waikiki, em Honolulu, ou o Guarujá. Em algumas partes, já lembra Camboriú, em Santa Catarina e, no verão, imagino que eles também tenham as mesmas loiras de tirar o fôlego. Um espetáculo à parte é a pesca da sardinha nessa época do ano. Cardumes imensos, de dezenas de quilômetros, passam por esse trecho do Índico e atraem miríade de predadores marinhos. Os indianos daqui se esbaldam. Descem aos milhares às praias para a pesca. Não calhou de ver esse espetáculo, a temporada já está perto do fim. Mesmo assim, se olho o mar daqui do quarto, vejo meia-dúzia de chalupas pequenas com uns quinze indianos cada uma. Acostumados ao esfrega-esfrega de seu gigantismo populacional, devem se sentir confortáveis numa embarcação dessas. As ondas penteiam as areias permanentemente e, apesar dos tubarões – um deles quase almoçou um surfista em Cape Town quando eu estava lá e só se falava disso -, os surfistas não perdem a fleuma. E imaginem que aqui temos tubarões brancos. Por ocasião do imenso terremoto indonésio que gerou tsunamis em várias regiões do Índico, a água aqui chegou à garagem dos prédios. Entrei por engano num asilo de velhos e o que vi me deixou impressionado. Parecia de um horror tétrico.
De resto, posso dizer que volto satisfeito com o saldo da imersão. Li livros, conversei com gente de negócios e da academia, troquei os livros já lidos por novos, estudei bastante a fundo a presença chinesa no continente e agora tenho um panorama bem concreto sobre a África subsaariana que quero visitar no futuro, se o Chanceler assim quiser. Estava carente de repertório, mas agora não mais. Ora, com fatos sobre os quais discutir, o interesse surgirá. Ademais, era uma questão também de agenda íntima. É fácil se manter ao dia com os demais continentes. Mas com a África é difícil porque não se tem acesso a fontes confiáveis de informação. E este é o único país do continente que tem material em abundância, e olhe lá. Fiz tudo dentro de um orçamento baixinho embora tenha passado bem. Por muitos que tenham sido os contatos feitos, me impressiona como o caderninho me remeteu a uma agenda interna de que não me dava conta enquanto estava em Brasília ou escrevia no computador. De meu relatório, constará uma avaliação sobre a indústria siderúrgica sul-africana que não tem salvaguardas contra a chinesa. Com a demanda em baixa por lá e querendo evitar desligar os altos-fornos, eles estão fazendo dumping onde podem. Eis uma informação relevante. Mas silenciarei sobre o apanhado geral desses apontamentos. Noblesse oblige.
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Fernando Dourado em um dos seus pontos altos de sarcasmo e divertida gabolice. E informação útil, sem dúvida. E sugere que, além do dumping da siderurgia sul-africana, há mais informação útil em seu relatório.