A maioria dos críticos de cinema, não só no Brasil, considera o filme “Aquarius” de Kleber Mendonça Filho uma obra prima. Opinião compartilhada por Teresa Sales em artigo recente publicado na Revista Será? (“Aquarius”, 14 de outubro). Lamentavelmente não consegui sentir nem perceber tanto encanto e beleza no premiado filme. Como simples espectador, diria apenas que achei o filme bom, talvez mesmo médio, nada espetacular, melhor que o “Som ao redor”, é verdade (aliás, não gostei nada deste primeiro sucesso de Kleber Mendonça), porque tem um roteiro consistente e envolvente. O filme desperta uma grande simpatia pela personagem central na sua luta contra a especulação imobiliária que recorre a métodos desonestos e violentos para expulsa-la do seu apartamento. Simpatia fácil de conquistar na medida em que se trata do combate da solitária sexagenária contra os poderosos capitalistas. No geral, o filme é interpretado como uma representação do conflito urbano em torno do uso e ocupação do solo, a disputa entre a especulação imobiliária que descaracteriza a cidade e a conservação do bairro expressa na preservação do velho edifício. Mas Clara, a proprietária do único apartamento que a construtora não conseguiu comprar, não se mobiliza pela consciência social ou por uma preocupação com a qualidade do espaço urbano como o movimento “Direitos urbanos”. Sua resistência é estritamente pessoal e reflete seus próprios valores e interesses individuais: continuar vivendo no espaço cheio de recordações onde construiu sua vida e criou seus filhos. Neste sentido, a guerra entre Clara e a construtora seria uma briga entre o direito da cidadã pelo seu espaço pessoal e o propósito comercial da empresa. O interesse coletivo não está presente na sua corajosa e teimosa resistência. Nem o interesse do restante dos ex-proprietários e ex-vizinhos que decidiram vender seu imóvel, com seus próprios interesses (tão legítimos quantos os de Clara), menos ainda os interesses coletivos da cidade numa eventual conservação de um patrimônio arquitetônico.
Aparentemente o edifício Aquarius não teria (na ficção) este valor arquitetônico ou histórico; em 2003, o Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural rejeitou proposta de tombamento do edifício Oceania que serviu de inspiração para o filme. Mesmo que se tivesse este valor não parecia interessar a Clara levar sua luta para um terreno mais amplo dos interesses coletivos da cidade. O filme tem, assim, o mérito de não mistificar Clara como uma militante dos direitos urbanos. Não permite, portanto, que se interprete a postura de Clara como a defensora dos direitos da cidade contra a perversão destrutiva da especulação imobiliária. Embora o eixo central do filme seja a briga de Clara com a construtora (a velha disputa do bem contra o mal), o conflito principal é outro: da senhora que se recusa a vender e se mudar do imóvel com os outros proprietários que preferiram, por suas conveniências também individuais, vender seus apartamentos. Uma operação comercial simples, venda de um apartamento, se transforma numa grave querela porque todos eles venderam seus imóveis a um único proprietário, no caso a construtora, e não receberão os valores enquanto não tiver sido construído o novo prédio; afinal, a construtora está interessada mesmo é no terreno à beira mar. O que é impedido pela resistência de Clara, seu direito legítimo contra o direito igualmente legítimo do restante dos ex-proprietários. A divergência de interesses se manifesta na agressividade de um jovem ex-vizinho, aparentemente expressando um sentimento do conjunto, em discussão com a teimosa e saudosista senhora.
O interesse coletivo da cidade não aparece em nada no filme. Seja porque o edifício Aquarius não tinha valor arquitetônico, seja porque Clara não estava absolutamente preocupada com a questão urbana. Embora o filme não aborde este conflito urbano, vale à pena refletir sobre as características urbanísticas e sociais de Boa Viagem, um dos mais ricos e modernos bairros do Recife utilizado pelo cineasta como locação para Aquarius. Para o bem ou para o mal, queiramos ou não, Boa Viagem não tem nada mais a ver com o aprazível bairro de casas e pequenos e antigos edifícios dos anos sessenta que guardariam a memória e a história da cidade, sendo Aquarius um dos últimos representantes deste passado. A “força da grana que ergue e destrói coisas belas”, como dizia o poeta Caetano Veloso, já mudou radicalmente o desenho do bairro. Com uma ressalva: esta força da grana não está apenas, nem principalmente, nas construtoras com o seu afã de ganhar dinheiro; ela reside, antes de tudo, numa emergente classe média e numa nova burguesia com dinheiro suficiente para comprar apartamentos caros que lhes permitem usufruir da beleza da praia e da vida urbana adensada. Apesar de algumas prováveis violências arquitetônicas, a mudança urbana de Boa Viagem permitiu uma ampla oferta de habitação e a formação de uma orla de grande beleza urbana (e arquitetônica), das mais belas do Brasil. Cabe à sociedade (cabia mais ainda no passado), através das instâncias de regulação urbana, definir as regras e os parâmetros para ocupação do espaço que permitam o adensamento urbano sem desorganização do espaço nem a degradação edificações do patrimônio de valor histórico ou arquitetônico. Com todas as deficiências da regulação e possíveis distorções urbanas, o crescimento de Boa Viagem nas últimas décadas transformou o bairro numa quase cidade média adensada com as suas incontestáveis vantagens para a vida urbana. Os entusiastas do filme Aquarius provavelmente vão discordar desta reflexão sobre Boa Viagem e os resultados positivos do adensamento. Mas podem dizer com razão que a mesma foi estimulada pelo instigante roteiro do filme, pelo que está explícito e pelo que deixa à especulação dos espectadores.
Atualização: o processo de tombamento foi retomado pela fundarpe
O historiador inglês E. P. Thompson há décadas argumentou que as experiências de resistência individuais inspiram e fornecem base a experiências comuns de resistência coletiva. A própria gênese do movimento operário na Inglaterra, berço da Revolução Industrial – argumenta ele – mostra isso. Por isso, Clara não precisa ser militante de movimentos de direitos urbanos para sensibilizar, com sua postura altiva, nossa simpatia e admiração.
Sérgio,
Li certa feita um compêndio comentado sobre Albert Camus. A certa altura, o autor deixou de lado a sobriedade ensaística e disse: “Ler Camus é ter vontade de lhe apertar a mão”.
Pois bem, como um aperto de mão me parece muito pouco para o que nos une, aqui segue um abraço apertado por esse texto que desmistifica os ares de ativismo e resistência que muitos querem dar à postura de uma simples mulher que passou dos 60, e se apega a seu apartamento como um gato a uma casa.
Aliás, esse tema é bem manjado. Em primeira mão, te antecipo que é exatamente sobre o quê versará o próximo filme de Jabor. Vou além. Na Xangai dos últimos anos, vimos algo aí sim de realmente estonteante. Em foto antológica, se vê uma obstinada velhinha emparedada em seu sobrado vertical e estreito, todo ele cercado por arranha-céus nababescos.
Nem por isso, alguém veio engalaná-la de títulos de resistente ou heroína. As coisas são como são. Se assim fosse, teríamos uma pletora de heróis de todos os matizes nas mais diferentes searas da vida.
Temos que parar de achar que errar nas concordâncias é um ato de resistência contra os predadores da Terra.
Aquele abraço,
Fernando
De fato, a resistência obstinada de Clara também prejudica os outros condôminos, que talvez tivessem necessidade de vender seus imóveis, por razões as mais justificáveis. Nesse aspecto, faltou a Clara o sentimento de solidariedade que alguém com consciência social – como nós todos, que giramos em torno desta revista – teria. Também não me agradou o tipo da heroína, que “paga amor a varejo”, apelando inclusive para a vulgaridade na convocação. (Mas aqui recomheço que a questão é mais de natureza subjetiva minha).
Mas acho que o filme, no essencial, mostra a tragédia de um indivíduo, com suas aspirações, diante das imposições do progresso da civilização. Progresso esse que tem um componente destrutivo, que não podemos deixar de reconhecer, embora devamos tentar atenuar.
Tem razão, mesmo, o designer e crítico dinamarquês Poul Henningsen: “Toda arte política é ruim, toda boa arte é política.” Aquarius , um filme da “mocinha” que resiste o ataque de “bandidos” que só pensam em lucro, está na primeira categoria: uma sequência de chavões e personagens caricatos. A “mocinha” é avó e aposentada. Vejo que aposentou cedo: nem é tão velha e é bem bonita, ainda entra em festa sozinha e sai dela com o homem mais bonito entre os presentes (ainda que canastrão). Está sempre com roupa estilosa e descolada, participa de sessões de relaxamento mais descoladas ainda, vai à praia e entra n’água sem medo de onda, e até dá uma paquerada “light” p’ra cima do salva-vidas que toma conta do pedaço de praia em frente à sua casa.
Mas aí o filme tem que mostrar a luta dela contra as construtoras capitalistas, e surge o lado “pobre velhinha” massacrada por “jovem empresário com MBA nos Estados Unidos”. De velha a personagem só tem mesmo sua teimosia em não deixar o apartamento onde sempre morou, teimosia que beira a autodestruição e chega a arruinar os demais condôminos do pequeno prédio que se recusa a deixar. De fato, mudar de uma casa para outra requer alguma energia, você arrisca uma tendinite arrumando livros e discos, e toda a tralha de objetos de decoração e quadros que contêm lembranças de muitas etapas da vida. Mas a heroína ainda está em idade de saber que há empresas que fazem a mudança incluindo colocar no destino tudo arrumado como estava no local de origem. Pois a heroína sabe até o telefone do garoto de programa que ela paga para ter sexo! Além disso, os filhos adultos queriam ajudar, e a heroína é dona de outros imóveis e um patrimônio que, como acusa a filha irada com a birra infantil da mãe, constituem um patrimônio que ela não deve ter juntado simplesmente com sua antiga atividade profissional de jornalista.
O jovem representante da incorporadora que compra todos os apartamentos do pequeno prédio não só tem MBA, como se considera mais branco que a velhinha sexy, cuja pele considera mais escura que a sua e aponta como sinal de vida dura; e atua como gangster, usando medidas violentas, como bacanais nos apartamentos já vazios, e espalhando cupim nesses apartamentos. Além disso, como descobre a pobre velhinha em sua resistência à venda, há algo duvidoso no passado da empresa, que agora a velhinha ameaça divulgar. Aliás, na guerra de resistência da velhinha aparecem mais chavões: o amigo jornalista que ajuda a investigar os podres da incorporadora, claro, trabalha em um grande jornal “comprado, todo, desde sempre”. Aliás, jornalista e velhinha só empreendem uma “luta social” contra alguma falcatrua pregressa da incorporadora agora, quando se trata de defender seus próprios interesses. Até o respeito à lei a velhinha só descobre agora: contrata uma advogada para ajudá-la a chantagear a incorporadora, mas a lei de condomínios ela não considera digna de ser respeitada. E o uso de violência no contra-ataque?! Como justificar violência tamanha?! Alegando um câncer?!
Há mais incongruências. Vou parar aqui. Já está comprido demais. Mas é que não iam deixar que eu escrevesse simplesmente: achei o filme bem ruimzinho. Preciso matutar muito para entender como alguém pode achar que é bom filme e que é boa sua mensagem política. Aliás, na sessão em que fui, 8:10 da noite de uma sexta-feira em S.Paulo, metade dos assentos estavam desocupados.
Helga,
Pela segunda vez nesse semestre, você me deixou sem palavras. E isso não é lá muito comum. Parabéns pelo comentário! Dê um jeito de colocá-lo no seu Facebook e me informe. Adoraria mandá-lo para algumas pessoas de Recife, de São Paulo e do mundo. Ele merece.
Aquarius deu mesmo o que falar: três artigos diferentes inclusive mais comentários.
Interessante é notar que o assunto sobre o uso da propriedade por seus donos, já havia sido mencionado em “águas de esmeralda”,vejam os comentários, reflitam e comparem..
Clemente não gostou da compra de sexo por Clara, (eu jamais faria isso ,mas defendo o direito das mulheres de atender seus desejos sexuais como lhes aprouver, sejam jovens ou velhas), já Helga, implicou do começo ao fim com a “velhinha” e acabou confundindo a personagem com a bela e chique atriz Sonia Braga.
Sei que os articulistas da revista costumam se agradar mutuamente e não gostam de críticas, mas não resisti em fazer a sugestão de que revejam o assunto em pauta.
Em tempo: Elza Bernardi, minha amiga desde os anos 60, morou em Recife com o marido alemão, justamente naquele edifício Oceania; ficaram emocionados ao reverem o prédio no filme, e no domingo passado aqui na cidade, relembramos as festas, mas também o fato dela ter sido chamada pelos militares para depor , por conta da prisão minha e do nosso querido e saudoso amigo Hamilton Soarez.
Não fiquem zangados afinal não passamos de “velhinhos”rsrs..
Uma comentarista nos informa que não paga sexo mas considera direito da mulher se valer da prostituição masculina. Suponho que considere igualmente direito do homem se valer da prostituição feminina. Desconfio que, além de velhinha, sou antiquada, pois me espanta a “leveza” com que o neofeminismo do século XXI trata a questão da prostituição. E já que estou no tema, aproveito para anotar mais uma incongruência desse filme de mocinha e bandidos que é Aquarius: as cenas de sexo são quase todas introduzidas de modo abrupto, sem uma continuidade de enredo que as justifique, apenas para dar uma animação em alguma outra cena que começou a ficar repetitiva e cansativa.