Era esse o nome da fazenda, aparecendo como tal num pequeno ponto do mapa da Paraíba. Mas minha mãe, alegando ser sinônimo de palhoça, insistiu em mudar. Depois de muita discussão doméstica, concordamos com “Aleluia”, e placa foi feita com esse rótulo. Mas o povo simples do local não o incorporou, e agora retomo a antiga denominação, que o capricho feminino tentou mudar.
José Américo de Almeida, eleito Governador da Paraíba em 1950, já no meio do mandato, quando pôde livrar-se dos compromissos políticos de campanha, nomeou meu pai – então agrônomo diretor do Departamento de Produção Agropecuária – Secretário da Agricultura. Verdade que a Secretaria era também de Indústria, Comércio, Viação e Obras Públicas. Mas, naquele tempo, pouco havia a fazer – e foi feito – nesses outros campos, a não ser em obras públicas, como a instalação do primeiro parque de exposição de animais do Estado e a recuperação do Teatro Santa Rosa, cujo interior era todo em pinho de Riga, madeira importada, que se teve de resgatar de outras velhas edificações.
Ora, ocorreu que o Governador tinha um compromisso em Campina Grande, para onde só se podia ir por estrada de barro, em viagem demorada. E o meu pai convidou o Chefe de Estado e sua pequena comitiva para almoçar em Caiçara, que ficava pouco além da metade do caminho. Lá estávamos nós, sua família, passando as férias de julho, e fomos avisados que iríamos ter a honra de receber Sua Excelência.
A casa ficava no alto de uma colina, de frente para um “caminho carroçável” que levava até Água Doce, atravessando dois riachos. Por ali passavam, no domingo, cavaleiros e pedestres que iam para a feira da “rua”. Os conhecidos, às vezes, subiam a colina para dois dedos de prosa com o Doutor Evandro, mesmo recusando o convite para apear-se:
– Carece não, a demora é pouca…
Da balaustrada do pequeno terraço, meu pai conversava com eles. A casa era modesta, piso de cimento, telhas-vãs, quartos separados por meias paredes, sem água encanada nem luz elétrica. Mas nada disso era importante para os nossos ilustres convidados. A preocupação era com o que seria servido no almoço, logo dissipada pelo bom senso da minha mãe e a experiência do dono da casa.
O problema era que as matronas sertanejas, quando visitadas por notáveis da capital, sentiam-se na obrigação de oferecer um cardápio mais sofisticado. E a “pièce de résistence” acabava sendo a maionese, muitas vezes com efeitos desastrosos para os comensais. Na visita a Caiçara, foram logo tranquilizados por meu pai: iriam comer feijão verde, farofa de jerimum caboclo, bode, galinha guisada, pratos saudáveis do interior.
Nesse tempo, eu tinha doze ou treze anos, mas já produzia composições em prosa e havia “cometido” alguns sonetos, seguindo a tradição de beletrismo de mãe e avô materno. Era o embrião de intelectual da família. E minha mãe teve a má ideia de me encorajar a mostrar minhas aptidões aos visitantes:
– Quando o povo chegar, não vá ficar encolhido pelos cantos. Cumprimente, converse com eles!
Ela não sabia que não se deve forçar os tímidos a contrariar sua natureza. Quando, com grande esforço, conseguem romper a casca do retraimento, eles perdem a medida da desenvoltura, excedem-se, caem numa extroversão bisonha e postiça. Foi o que se deu comigo.
Quando o Governador subiu os três degraus que levavam ao terraço, seguido de dois ou três acompanhantes, eu estava diante do portãozinho, de mão estendida, todo empertigado. O Doutor Zé Américo correspondeu ao meu gesto de maneira indiferente, com uma mão mole, que não apertava nada. (Incompatível com a imagem de destemor e energia de quem comandou as tropas da Polícia Militar no assédio ao “Estado Livre de Princesa”, em 1930, e encarou, desarmado, os jagunços de Américo Maia, que ameaçavam impedir o seu comício em Catolé do Rocha, na campanha em que se elegeu Governador, vinte anos depois).
Outro visitante repetiu o seu gesto. Mas o terceiro, ignorando a minha mão estendida, fez um afago em minha cabeça. Foi o bastante para me devolver à condição de garoto, adventício no mundo dos adultos, em brusca tomada de consciência da minha irrelevância.
O almoço transcorreu tranquilo, como deveria ser, e no breve descanso pós-prandial, de volta ao terraço, o nosso ilustre convidado perguntou pelo “escritor” da família. Fui apontado, mas, já então recolhido à minha insignificância, não esbocei qualquer reação.
Já na saída, meu pai mandou chamar o administrador da fazenda:
– Diga a Gouveia que venha aqui, cumprimentar o Governador.
Seu Gouveia, que morava a pouca distância, apresentou-se, embrulhado como pôde, cerimoniosamente. E o velho Zé Américo, já sabedor do passado do “capitão”, perguntou, de forma amistosa:
– Como é, Gouveia, ainda tem bandido por estas bandas?
A resposta foi prudente:
– Eu não sei dizer a Sua Excelência, não…
Findo o mandato no Estado, e depois de imprevista derrota em eleição para Senador da República, Zé Américo recolheu-se, solitário, à casa da praia de Tambaú. Até a sua morte, com mais de noventa anos, Doutor Evandro ia visitá-lo, nas tardes de domingo. Nutria por ele uma grande admiração, só ligeiramente abalada quando o velho, a pedido do filho general, deu uma declaração de apoio à Revolução de 1964. Mas, mesmo com tanta assiduidade e tanta presença ao lado do antigo chefe, não foi citado nas memórias dos seus últimos anos, escritas por Maria de Lourdes Lemos de Luna, sua secretária particular e administradora da casa. Meu pai não era político.
***
Só agora fui ler “Causos” VI e VII, juntos. Interessantíssimo. Tão longe da minha realidade, mesmo a de 60 anos atrás, mesmo a do pedaço do interior paulista que cheguei a ver então, que não poderia comentar. Mas é bom de ler e concordo com os que já disseram que aguardam mais “Causos”, incríveis, e que depois gostariam de vê-los todos reunidos em um livro. Dá um livro precioso. Podia inclusive ser leitura complementar às aulas de História do Brasil.
A Revista Será Em boa hora publica o “causo” paraibano contado pelo colega de Economia e da Sudene,Clemente Rosa, sempre brilhante em verso e prosa. O relato confirma sua vocação de escritor desde a infância em Caiçara, questão de DNA. Viva!
Mais uma história deliciosa, cheia de tempero e fino olhar. Impossível não pensar em José Lins do Rego. Ao evocar o pai, mais parece o outro grande romancista paraibano ao falar do coronel Zé Paulino, do Pilar.
Aliás, apesar da diferença de idade, queria um dia ler suas impressões sobre alguns paraibanos ilustres. Começo pelo já aludido escritor de quem deves saber algumas histórias publicáveis. E tenho certeza de que algo também terias a nos contar sobre Celso Furtado, Sivuca, Ronaldo Cunha Lima, Newton Rique, João Câmara e tantos outros.
Amo a Paraíba, sua gente, praias, quitutes e interior. Vamos lá, Clemente, mãos à obra. Mais uma história antes da retomada da temporada de vôlei em Formosa.
Abraço
Amigos, seus comentários me encorajam! Aguardem pelo menos mais três causos. Depois veremos.
Helga, saber que os meus textos lhe despertam interesse é motivo de honra e alegria para mim.
Formiga, muito bom vê-lo como leitor da nossa revista. É prestígio para todos nós, editores e colaboradores.
Fernando, dos outros sei pouco, mas sobre Celso Furtado, uma das grandes referências de minha vida, tenho várias coisas escritas. A melhor talvez seja uma palestra na Academia Paraibana de Letras, por ocasião de sessão de necrológio dele, que oportunamente lhe mostrarei.
De Zé Lins do Rego, cuja obra conheço quase toda, mas que morreu muito cedo, conheci apenas seus sobrinhos, netos do Senador Massa, que tinha casa de veraneio em Formosa.
Obrigado a todos!
Meu caro Clemente Rosas. Atrevo-me a comentar(?), junto aos que o fizeram antes de mim.(junto e antes, não sei se deu certo). Que gostosura ler os seus”causos”,
com certeza, eles nos remetem ao passado dos nossos “causos” de nordestinos.
Trovabraço
Complementando meu comentário: o Senador Antonio Massa, da República Velha, era sogro de Zé Lins.
Caro Nealdo: contar com leitores qualificados é um privilégio. Muito obrigado pelo comentário.