Em língua tupi, a palavra quer dizer “pele branca”. Nunca soube se era seu nome de registro ou apelido, mas não lhe destoava. Entre os mestres jangadeiros das praias paraibanas, quase todos negros, mulatos ou caboclos, ele era moreno claro. Alto, desempenado, forte, com merecida fama de valente, era o “capitão” de Gaivota, a jangada do meu tio Nelson, elegante e veloz como poucas.
Meu pai e meus três tios maternos o conheceram na mocidade, viveram com ele algumas aventuras náuticas e me deram testemunho de suas proezas. Alguém já o vira, sozinho, em alto mar, colocar no seu furo um mastro de bote, com a vela enrolada. Quem conhece o balanço de um bote pesqueiro em mar aberto, e o peso do seu mastro, bem pode avaliar a façanha. E em matéria de brabeza, não foi só uma vez que meu tio Mário, delegado, foi tirá-lo da cadeia, por escaramuças com parceiros. Na mais grave delas, um duelo a faca, teve o abdômen rasgado por um golpe, e as tripas se projetaram para fora. Recolheu-as com a mão esquerda e manteve-se firme, sem largar a peixeira da outra mão.
Em desavenças mais duradouras, seus inimigos tremiam com a ameaça de resolver o caso no mar, onde não há socorro nem testemunhas. Como armas, além da peixeira, só a araçanga, espécie de clava para matar peixes mais agressivos, fisgados no corso, como o agulhão de vela, as bicudas, cavalas e albacoras. Mas quando ia pescar com meu pai e meus tios, era bem humorado, brincalhão e, algumas vezes, temerário.
Numa dessas pescarias, ao voltar do “mar de fora”, desprezando as passagens das “barretas”, o mestre resolveu cruzar por cima da linha de arrecifes, o que era possível para embarcações de fundo chato, mas apenas com a maré cheia. As ondas quebravam por cima da jangada, mas havia água suficiente por baixo, sendo necessário apenas equilibrar o peso, para que ela não embicasse. Mas, naquele dia e hora, a maré estava meia, e quando os “”argonautas” se deram conta, os arrecifes se entremostravam. No momento exato, uma marola inesperada elevou a jangada, evitando o choque. Comentário de Pititinga:
– Gaivota faz “cacunda” pra passar em cima da pedra!
Doutra feita, imprudência semelhante fez a embarcação virar, jogando n’água tripulantes e apetrechos. Enquanto meus tios, em alvoroço, procuravam recolher caniços, samburá, iscas e peixes já pescados, quem foram vislumbrar, já sentado no lombo da jangada, e de riso solto: Pititinga!
Fui conhecê-lo melhor na sua velhice, quando as grandes jangadas de paus roliços já haviam desaparecido. Ele sobrevivia precariamente, pescando peixinhos e arrancando polvos das pedras, numa jangadinha de empurrar com vara. Em raro momento em que o vi sem camisa, pude constatar as quatro ou cinco grandes cicatrizes na barriga, evidência das pelejas de faca de que tanto ouvira falar. Pálido, algumas vezes bêbado, com feridas nas pernas que não saravam pela exposição constante à água do mar, era ajudado pelos veranistas. E os que com ele conviveram na mocidade, como meu pai, tinham a paciência de ouvi-lo, quando aparecia, “chumbado”, para conversar.
Quanto à turma jovem, sempre que havia festa, churrasco ou feijoada, nós o convidávamos, para tocar o zabumba e “puxar” as letras de “coco”, a dança preferida da família, nas temporadas de verão. Ainda hoje temos boa memória dessas letras, falando de porto, de mar, de peixes, de morenas “flores da noite”, da vida à toa dos praieiros.
A última vez que lembro ter visto Pititinga foi numa rua central de João Pessoa, onde ele não ia quase nunca. Estava ali, talvez, para receber tratamento de favor de algum médico com casa de veraneio em Cabedelo. Embrulhado num casaco roto, pés descalços, estranho ao meio, com o caminhar balançado dos marinheiros, não lembrava em nada o mestre jangadeiro imponente, com o chapéu de palha de abas dobradas em bico, na parte dianteira, para reduzir o efeito do vento, cuja imagem eu guardava na memória.
Morreu pouco depois, quando o mundo em que nasceu e viveu também morria. A exploração das matas acabou com o pau de jangada, como, séculos antes, aconteceu ao pau brasil. Junto às jangadas, foram-se também os botes veleiros, vencidos pela concorrência dos barcos a motor e pela escassez do peixe nas áreas pesqueiras mais próximas. A urbanização das praias fez desaparecer os imensos coqueirais, e com eles a disponibilidade de palhas para as choupanas que os proprietários deixavam construir, à vontade, em suas terras, na convicção ingênua de que a fumaça das cozinhas dos pescadores fazia bem à plantação.
De tudo ficou apenas a lembrança. Mas no patrimônio intangível da Praia Formosa, Pititinga terá sempre lugar de destaque.
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Clemente, Mais uma linda história, narrada com brio e elegância. Lendo-a senti nas narinas a salinidade do mar e me veio à memória os passeios de jangada com profissionais que eu mesmo fiz em São José da Coroa Grande, no litoral sul de Pernambuco. Em tempo: pititinga, na Bahia, é um peixinho pequeno e delicioso que é servido com aperitivo.
Clemente,
Como é saboroso ler seus causos paraibanos! Pela leveza e precisão da escrita. Porque você nos leva a lugares e tempos que de algum modo também foram nossos. Daqui a pouco já está do tamanho de um livro.
Obrigado, amigos. Mas temo que não cheguem a dar um livro.
Vamos ver.
Lindo esse relato. Um pedacinho dos coqueirais e jangadas cheguei a ver em Arembepe, 1962/1963, quando ainda era preciso atravessar um areião p’ra chegar lá. Mas é claro que já era muito diferente dos “Causos”. Só vi um menino pequeno subindo no coqueiro para tirar coco lá em cima!
Vai dar livro sim. Não precisa ser livro grosso, ora essa.