Leitura em trem - autor desconhecido

Leitura em trem – autor desconhecido

 

Nos primeiros dias de 2020, uma história alarmante varria a Europa: uma variante do coronavírus fizera vítimas em Wuhan. Ninguém sabia precisar o impacto disso no resto do mundo. A expectativa era que a propagação fosse estancada na China, onde as autoridades sanitárias costumam exercer um controle draconiano nessas ocasiões. Governar um formigueiro de 1,4 bilhão de almas impõe uma mão de ferro. Mas dessa vez foi diferente. A chegada do vírus à Europa colocou o mundo em alerta. Em Belgrado, Sérvia, eu driblava o frio com goles de síljivovica caseira, ia ao balé e acompanhava com preocupação o noticiário. Asmático e com flagrante sobrepeso, eu achava que o vírus era uma ameaça real. E estava certo.

Numa manhã de muito sol e frio enregelante, embarquei num carro para Timisoara, na Romênia. Passeando na Piata Unirii, uma das mais belas da Europa, sentei num banco com a amiga Nadia Christodor, geriatra de reputação mundial. Ela confirmou que vinha recebendo notícias inquietantes dos seus colegas de Bucareste sobre o vírus que brotara na Ásia. Na despedida, foi enfática: “Nunca te disse que tenho outros dons além da medicina clínica. Mas o fato é que os tenho. A presciência é um deles. Ouça bem o que vou dizer: emagreça, caminhe muito e se proteja. E saiba que este ano você vai ler um livro que o encantará tanto quanto um bom vinho. Aconteça o que acontecer, conte comigo. Preciso ir. Minha sogra vai morrer hoje.” E, de fato, a mãe do marido morreu sem aviso prévio.

Dias mais tarde, em Paris, sentado a uma mesa do Café de Flore, li uma resenha no suplemento literário do Le Figaro sobre um livro que vinha fazendo grande sucesso de público nos Países Baixos. Escrito originalmente em holandês, relatava a história de uma família de judeus ortodoxos, moradores de Antuérpia, que contratara uma moça para dar aulas de reforço aos filhos. A crítica não entrava em detalhes, mas disse o suficiente para que eu fosse até a livraria L ?écume des pages, e pedisse um exemplar ao vendedor Thibault, um cúmplice de velha data em garimpar pérolas nas prateleiras bem sortidas. Como ia viajar para o interior da França, temia não achá-lo lá. Thibault voltou com um exemplar. “Era o último!”. U-lá-lá!

Uma hora mais tarde, bem no meio do Pont Royal, uma amiga espanhola, uma versão de 50 anos de Penélope Cruz, pediu para que eu a fotografasse apoiada na mureta da ponte. Como forma de ter as mãos livres para manusear o telefone, eu lhe dei o saquinho da livraria contendo o livro. As fotos se sucederam. Clic, clic, clic. Faceira, ela sugeriu que eu parasse, mas continuei. Até que… até que ao fazer um gesto brusco para tirar os cabelos da parte posterior do cachecol, o cotovelo a traiu e o livro desapareceu nas águas do Sena. Pluft! Penalizada, ela não sabia o que dizer. Mas ora, eu não ia estragar a noite por causa do incidente, embora tenha deplorado perder o livro – por mais que aquele rio seja um túmulo honroso.

No dia seguinte, eu estava muito ocupado para ir à caça nas livrarias, mas mesmo assim tentei comprar Mazal Tov na FNAC da Rue de Rennes e, mais tarde, numa pequena livraria do V ème, ao lado da fonte Cuvier, na saída do Jardin des Plantes. Em ambos os casos, não havia disponibilidade porque a resenha do jornal incendiara a procura. “Temos um público judaico em Paris, Monsieur. Ele é ávido em reconhecer o que é bom e prestigiá-lo.” Na sexta-feira, o amigo Daniel Levy, antigo representante da empresa em Paris, me ofereceu um jantar num apartamento do Parc Monceau. Ao final, Madame Levy, sempre amável, me presenteou com um livro. “Sei que gosta de ler. Este saiu agora e adorei.” Que coincidência. Era Mazal Tov. 

Tarde de sol. Embarquei num trem da Estação de Bercy para Vichy, onde ia ficar uns dias, com uma vaga ideia de tentar perder peso numa estância hidromineral, por difícil que seja conceber gastar dinheiro na França para passar fome. Amo os trens. Feliz, comecei a ler Mazal Tov. Bem à frente, atraída pelo título, uma senhora me perguntou sobre o livro. Devia ter 80 anos, senão mais. “Do que trata, Monsieur?”, perguntou. “Estou no começo, Madame. Mas é delicioso. Tudo o que envolve adolescentes em conflito me fascina. E depois, gosto dos ambientes multiculturais. Imagine uma moça não-judia e liberal que vai trabalhar na casa de judeus ortodoxos em Antuérpia.”

A viagem chegava à metade, mas a excitação da linda dama explodiu como se tivesse acabado de fazer um amigo. Só as pessoas que leem sabem do poder dos livros. Em torno de uma boa história, constrói-se um universo de cumplicidades. Interessada em saber mais sobre a matriarca de Mazal Tov, alimentei a curiosidade. “Será que no final isso vai dar certo, Madame? São tantas as diferenças culturais.” Ela me olhou com alguma emoção. Conferiu o horário. Uma lágrima escorreu do olho esquerdo. Ela tirou um lencinho do bolso do cardigan grená e pediu para examinar a capa em que um judeu chassídico passeava com um guarda-chuva. Parecia que ela acariciava um gatinho. Mas era só o presente de Madame Levy.

“É claro que vai dar certo, Monsieur. Diferenças culturais podem sim aproximar as boas almas. Veja o meu caso. Moro em Clermont-Ferrand. Sou da Alsácia, mas me mudei para cá quando meu marido veio trabalhar na Michelin. Ele morreu, mas eu fiquei na região. Sou judia. Perdi meus pais durante a Guerra, o senhor pode imaginar como. Fui criada por uma cristã, amiga de maman. Ela nunca me levou à missa. Veja, ela trocava cartas com o Cardeal Lustiger, que era judeu. Nos anos 60, conheci meu marido em Israel, um hebreu da Mesopotâmia. Iossi tinha amigos muçulmanos aqui e em Haifa. Ambos sempre amamos a França e a Europa. Ele morreu falando de Bagdá. Tudo é possível com amor. Adoraria ler este livro. Amo esse título, imagino que saiba que representa tudo de bom!”.

No trem, o alto-falante anunciou a parada de Vichy. Precisávamos nos despedir. Pensei: como negar a essa senhora, que tinha quase a idade de mamãe, a alegria de ler um livro cuja história a fascinou? O que me custaria ir à livraria em Vichy – deveria ter uma – e comprar outro? Para Madame Dahan, tão espontânea e digna, certamente seria mais difícil ir a uma livraria em Clermont-Ferrand. Já agasalhado e com a malinha no chão, esperei que o trem estivesse quase parado para lhe presentear com o livro. Posto daquela forma, no último segundo, ela não teria tempo para recusar. “Voilà, Madame. É um presente. Espero que o leia com alegria e saúde. Au revoir“. Ela se levantou para um abraço. “O senhor é nobre de alma.”

Na sexta-feira, 7 de fevereiro, passei o dia fazendo compras em Vichy. O apartamento era bem equipado e muitíssimo bem decorado. A única coisa que incomodava era um mural intrigante que tomava uma parede imensa da sala. Ele retratava uma sereia nórdica, de cabelos louros e olhos tão azuis quanto um lago. Eles pareciam acompanhar o movimento da casa, como se me vigiassem. Trabalhando à mesa, de vez em quando me virava para encará-la e tinha a impressão de que a sereia desviava o olhar. Ora sorria, evasiva; ora parecia enfurecida, com as mandíbulas quadradas. Nas duas livrarias da cidade – Bourbonnaise e Carnot -, Mazal Tov estava esgotado. Com essa eu não contava. Afora o vírus, outra preocupação: um furacão estava a caminho.

Almocei no restaurante do cassino, que era muito agradável. Comi um chucrute royal com salsichas Montbeliard, Frankfurt e Morteau, além do jarrete de porco. No copo, vinho alsaciano. Começara bem mal a dieta na cidade das águas milagrosas. O repolho estava no ponto ideal de acidez e os grãos de pimenta preta estalavam nos dentes. Na saída, achando que não merecia sobremesa, apenas um café, perguntei ao garçom marroquino se não havia outra livraria ali perto. Ele indicou À la Page onde, efetivamente, ouvi, inconsolável, que o último exemplar de Mazal Tov tinha sido vendido pela manhã. Mas a gerente contra-atacou. “Se não se incomodar em levar o da vitrine, sobra um.” Em quase êxtase, comprei-o.

É engano pensar que havia uma conexão entre o que a doutora Christodor dissera na praça Unirii, de Timisoara, com aquele jogo de gato e rato em que se transformou a relação com o livro. Três anos depois, é fácil estabelecer uma relação de causa e efeito entre o vaticínio da médica-vidente com os eventos que serão narrados no próximo bloco. Mas na época, minha intuição não apontava minimamente para isso. Primeiro porque sempre fui encantado por livros, talvez desde os dez anos. Segundo porque logo esqueci o que ela disse. Terceiro porque estava convicto que se houvesse àquela altura um livro que pudesse imprimir um novo rumo à vida, certamente seria algo de finanças, biotecnologia ou neurociência. Errei.

No dia seguinte, 9 de fevereiro de 2020, o noticiário do jornal La Montagne dava conta de que o vírus se espalhava pelo Sudeste Asiático e, aparentemente, estava na raiz de algumas internações na Itália. Depois de encher o armário e a adega de todos os mantimentos cabíveis a uma temporada de duas semanas naquele apartamento com vista para o rio Allier, tudo agora conspirava para que eu pudesse ler o livro que vinha me escapando das mãos. Ademais de tudo, precisava de algo que me distraísse durante a  passagem da tempestade Ciara, que varreria a região central da França a 120 km/h. A noite seria gélida. Acendi a lareira, preparei um chá e abri Mazal Tov, bem sob medida para os ventos uivantes. Enfim, paz.

Começada a leitura, a partir do ponto em que a interrompera no trem, naquele exemplar que agora estava com Madame Lea Dahan, fiz uma constatação animadora. A estrutura do livro era ideal para aquele momento. Escrito em capítulos curtos, no geral, o formato era perfeito para quem não gosta de interromper a leitura no meio da história. Os capítulos ajudavam a respirar, a fazer pequenas pausas para pegar um pedacinho de chocolate ou para me servir de um copo de vinho. Ainda não chegara à vigésima página quando uma rajada empurrou a porta de ferro do balcão, que destravou a porta interna, brutalmente. Por pouco a vidraça não se destroçou. O estrondo ecoou como se um avião tivesse rompido a barreira do som.

Então, os papéis sobre a mesa revoaram. A tampa do computador se fechou com o impacto da lufada gelada. Um relâmpago clareou a noite e tive a impressão de que todos os pequenos objetos do apartamento entraram em alerta máximo. Um elefante de jade com os fundilhos voltados para a porta pareceu se mexer. Os olhos da estátua de Buda do aparador cintilaram e lhe deram um ar severo. Uma cabeça de cavalo preto, escultura que surgiu de trás das cortinas que voavam em desespero, caiu no chão. A sereia da parede piscou. Percebi nela um ar divertido, como se eu recebesse um castigo merecido. O alarme do microondas disparou, avisando que a pipoca estava pronta. Era o caos. Levaria muito tempo para retomar a leitura.

O que mais a noite reservava?