Clemente Rosas

Cobra como animal de estimação.

Quando, já no meu segundo ano de Faculdade de Direito, resolvi prestar serviço militar, recusando, tanto o “jeitinho” brasileiro para escapar da incorporação, como a opção pelo CPOR, que me exigiria dois anos no Recife, configurei um caso raro em nossas Forças Armadas.  Eu era o único recruta com nível universitário no quartel.  Por isso, e pela prática de esportes, sempre muito valorizada em qualquer estabelecimento militar, era tratado com alguma deferência pelos oficiais.  O quartel era o 15º Regimento de Infantaria, o 15 RI, novo nome do 22º Batalhão de Caçadores, 22BC, palco do sangrento episódio da Revolução de 30.  Sua arquitetura, inclusive, conservava-se inalterada, trinta anos depois.

Mas havia outra particularidade que me diferenciava naquele meio, como, aliás, ocorre até hoje na maioria dos ambientes que frequento, e que me vem da infância.  Meu pai, agrônomo, além da sua fazenda, administrava duas outras, de propriedade da Companhia de Tecidos Paraibana, a “Fábrica de Tibiri”, localizada no município de Santa Rita, hoje Região Metropolitana de João Pessoa.  Em razão de suas visitas aos campos desses estabelecimentos, era-lhe frequente encontrar inofensivas cobrinhas, que levava para casa, para brincarmos com elas.  E assim crescemos familiarizados com ofídios, sem aquele pavor comum à maioria das pessoas, que não distingue entre espécies venenosas e não venenosas, agressivas ou mansas.

De fato, cobrinhas verdes, “corre-campo”, muçuranas, até mesmo pequenas jiboias, são inofensivas.  Já a cobra-cipó, que se mimetiza com galhos secos, embora não venenosa, é agressiva.  Quanto às peçonhentas, só há quatro gêneros no Brasil: crotalus (cascavel), botrops (jararaca e urutu), lachesis (surucucu “pico de jaca”) e elapidae (coral). Todas facilmente identificáveis, com exceção da coral, que tem também espécies não venenosas.

Quando, já promovido a cabo, estabeleci contato com o Cabo Bezerra – hoje respeitado ficcionista em João Pessoa – desenvolvemos uma rica amizade, alimentada por conversas sobre política e sobre ofídios.  Levou-me um livro a respeito, e eu lhe mostrei foto famosa do Instituto Butantã: uma muçurana engolindo uma cascavel.  As muçuranas – pretas, lustrosas, de barriga esbranquiçada – além de mansas, são serpentes “do bem”: têm imunidade para o veneno das cascavéis e de outras espécies “do mal”, e as devoram.

Ora, aconteceu que fomos acampar, para exercícios militares, numa área de florestas do município de Alhandra, perto da capital.  Sendo reduto de Mata Atlântica, a presença de cobras era de se esperar.  E começaram os incidentes, provocando sustos e algazarras na tropa, comandada por uns poucos oficiais.  Entre eles, um, com quem vivi o episódio aqui reportado, cujo nome preservo, por cavalheirismo.

Era um jovem tenente que trazia, da Academia Militar, a fama de brilhante.  Só tirava dez.  Mas não tinha a admiração dos recrutas, nem dos praças mais antigos.  Era, ao que se comentava, virgem, condição desqualificante naqueles tempos preconceituosos.  E tal condição afetava sua postura: tímida, insegura, de pouca energia.  Era portador, como outros jovens do “sexo forte” em situação semelhante, da “síndrome do camburão cheio”, na classificação gaiata de um colega de Universidade, estudante de Medicina.  (Hoje, prefiro imaginá-lo general, reformado e cheio de filhos e netos.)

E foi em um fim de tarde que apareceu uma cobra, no meio das barracas.  Logo formou-se em volta um círculo de excitados recrutas, ganhando coragem para avançar e matá-la.  Aproximando-me, apanhei suavemente a cobrinha verde, mostrando a todos a sua natureza inofensiva.  Mas o tenente, atraído pelo tumulto, vinha chegando:

– Mate a cobra, Cabo Ribeiro! (era este o meu “nome de guerra”, segundo sobrenome escolhido à minha revelia, como era de praxe).

Contestei:

– Mas tenente, a cobrinha é mansa.  Veja!

E encostei a bichinha no peito, abaixo do queixo, como quem agasalha um pequeno animal de estimação.

Segurando o capacete com as duas mãos na frente do corpo, como um escudo contra presumível bote de animal feroz, pálido, procurando dar firmeza à voz, o oficial repetiu o comando:

– Cabo Ribeiro, mate e enterre a cobra!

Ordens são ordens, e a primeira virtude do soldado é a obediência.  Mas, num impulso de raiva, inconformado, sacudi a cobrinha no chão e pisei forte em cima, com o pesado coturno militar.  Dei as costas e saí marcando os passos, como uma criança malcriada.

À noite, já recolhido à barraca e de cabeça fria, comecei a conjeturar sobre a punição que me esperava.  Até que recebi uma convocação:

– Cabo Ribeiro, o tenente quer falar com você.

As barracas de comado eram mais amplas, podia-se entrar em pé, e comportavam mesa e cadeiras.  O tenente estava sentado, meio de costas para a entrada, dando uma impressão de profundo cansaço.  Não se voltou, quando bati os calcanhares e colei as mãos estiradas às coxas, em posição de “sentido”, nem me mandou ficar “à vontade”.

– Como é isso, cabo?  Você gosta de cobras?

Expliquei-lhe a minha familiaridade com elas, adquirida na infância, e a desnecessidade de matá-las, indiscriminadamente.

Mas como sabe se são ou não venenosas?

Prossegui falando sobre as nossas poucas espécies venenosas, e como distingui-las: além do inconfundível chocalho das cascavéis, são todas escamosas, foscas, cabeça destacando-se do corpo, e, sobretudo, movem-se lentamente, sendo rápidas apenas no bote.

Com um profundo suspiro, e para a minha surpresa, o tenente deu por encerrada a conversa:

– Tá.  Pode voltar pra sua barraca.

Depois disso, ao longo da vida, tive poucas oportunidades de reencontrar minhas amiguinhas.  Como executivo de uma empresa industrial em implantação, fui apresentado a uma serpente maior, de cerca de um metro, presa num recipiente de vidro, como “uma perigosa urutu”, cobra que nem existe no Nordeste.  Era uma bela muçurana, que levei para casa, para que meus dois filhos a conhecessem.  Causaram susto aos vizinhos, circulando com a muçurana pendurada no pescoço, mas tivemos que lhe dar liberdade.  As cobras podem passar dias, até meses, sem comer, mas é difícil alimentá-las em cativeiro.  Só reconhecem como alimento animais vivos.

Mais tarde, quando universitários, e já morando sozinhos, meus filhos criaram, por algum tempo, uma pequena jiboia, alimentando-a com roedores ou pintinhos.  Pelo sentimento de piedade para com as pequenas vítimas, acabaram também soltando a devoradora, nas matas de Dois Irmãos.

Minha fama de amante de serpentes foi efêmera, como quase tudo neste mundo.  E, na vida urbana a que todos acabamos condenados, não sei se, algum dia, ainda voltarei a ter contato mais estreito com elas.