Um dia um adolescente gay apaixonou-se por mim. Chamava-se também Fernando. Como reza o chavão discriminador, era uma bicha louca. Aliás, sempre me perguntei por que o homossexual brasileiro é de ordinário representado nas artes (cinema, teatro, música…) e sobretudo nas comédias e programas de humor, para não falar no anedotário popular e desabrido, dessa forma caricatural e ofensiva. Mais perturbador ainda é constatar que muitos gays se comportam de modo a enquadrar-se nessas formas de representação. Identificam-se, noutros termos, com a projeção do agressor, daquele que os discrimina e rejeita. Como Sartre observou, o judeu portador de todas as deformações raciais e morais que justificam sua supressão não existe; é uma invenção do antissemita. O mais grave é que muitos judeus acabam vestindo a natureza repulsiva inventada pelo antissemita e assim fazendo negam em si próprios sua natureza essencial, que é a de todo ser humano.
O mesmo processo de redução ideológica se repete no estereótipo do homossexual, assim como no estereótipo de todos os condenados e suprimidos da esfera da “normalidade” humana. Conheci alguns desses estereótipos no mundo da minha infância: o camponês rebaixado à condição de bicho semiescravo, a bicha louca ou lacrada dentro de armários invisíveis, a adolescente desfrutável, a mulher desonrada, a Bovary dos canaviais (como foi minha mãe), o garanhão, o corno manso, o matuto, sempre negativamente contraposto ao citadino, o coronel do latifúndio, o usineiro. A literatura, através das misteriosas veredas da imaginação mais verdadeira do que a realidade empírica mistificadora, a literatura lavou meus olhos e meu coração ao desvelar a humanidade dos seres humanos comprimidos nessa rede de estereótipos que prevalece ainda no mundo. Infelizmente, continuamos a representar o outro baseados antes na realidade da empiria mistificadora do que nas camadas humanas invisíveis que nos traduzem como modos múltiplos e complexos de ser humano. Para ser ainda mais realista, outros diriam pessimista, piso num terreno movediço demais para me pronunciar em nome de qualquer princípio de progresso iluminista. Se é fato que ultrapassamos muitos desses preconceitos e estereótipos, em compensação cunhamos outros que atendem à nossa necessidade de liberação da nossa crueldade e agressividade constitutiva. Freud tem razão. Somente os órfãos incuráveis da utopia continuam acreditando que um dia inventaremos uma humanidade reconciliada.
Quando vivi na Inglaterra, detive-me muitas vezes na consideração do problema do homossexualismo enraizado nas memórias da minha infância. Desatando a imaginação comparativa, espantou-me de início aferir a profunda diferença de representação do gay na cultura inglesa e na brasileira. O que me pareceu mais espantoso foi considerar que cultuamos ainda hoje uma ideologia de liberação sexual do brasileiro contraposta à rigidez puritana dos ingleses. No entanto, ainda que discriminada legalmente na Inglaterra até meados do século passado, a homossexualidade lá, tal como a conheci, goza de um estatuto legal e de uma tolerância e reconhecimento maiores do que o observável na nossa cultura “sem culpa”, expressão, desde os tempos coloniais, de que “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Quem quiser que acredite, assim como há quem acredite que somos uma democracia racial. Ou ainda que somos um país cuja história é incruenta, pois as desigualdades e antagonismos se misturam de forma criativamente integradora. O problema nosso, nisso como em muitas outras coisas, é que as relações cordiais, no sentido usado por Sérgio Buarque de Holanda, que só para os ignorantes é uma ideologia justificadora da nossa “história incruenta”, com frequência se sobrepõem às relações legais. Não me detenho para esclarecer esse mal-entendido relativo ao conceito de cordialidade na obra de Sérgio Buarque porque já dediquei aqui nesta revista um artigo à consideração deste problema quando escrevi sobre Raízes do Brasil.
Voltando a Fernando, ele me amava enquanto eu o repudiava. Ele me assediava com sua delicadeza, sua carência de amor de homem, enquanto eu o humilhava e me sentia agredido pelo que me propunha ou de mim desejava. Um dia morreu num acidente de trem quando vinha para o Recife. Senti sua morte, mas não a real dimensão da culpa que veio muito mais tarde, quando minha consciência, já mais esclarecida pela alteridade escrita na literatura, revelou-me camadas humanas que eu ignorava. Para ser exato, essa mudança ocorreu quando li, na Biblioteca Pública de Afogados, no Recife, De Profundis, de Oscar Wilde. Para quem não sabe, é uma obra escrita na forma de uma longa carta para Lord Douglas, o grande amor de Wilde. Fiquei chocado ao descobrir, lendo esse opúsculo, que “o amor que não ousa dizer seu nome”, eufemismo célebre procedente do próprio Wilde, é um amor tão humano quanto as formas de amor legitimadas por nossa cultura. Foi aí que sobreveio a culpa, pois minha memória regrediu no tempo revelando-me o quanto fora preconceituoso e cruel ao rejeitar Fernando, o quanto fora cego e intolerante ao humilhar ou simplesmente rejeitar tantos homossexuais que conheci no internato onde estudei em Palmares.
Voltei a reler De Profundis quando vivi na Inglaterra. Desta feita, a versão original da obra. Aliás, de acordo com os editores do volume The Portable Oscar Wilde, a primeira edição integral e fiel ao texto original escrito por Wilde. Surpreendeu-me a decepção decorrente desta releitura, em certo sentido apenas uma leitura ou nova leitura. Julgo agora compreender melhor minha decepção, que pouco tem a ver com o texto em si. Este é até melhor, já que restaurado à forma do autor. Decepcionei-me simplesmente porque a importância maior da obra, para minha posição de leitor singular, derivava das circunstâncias biográficas e mentais demarcadoras da minha primeira leitura. É por essas e outras que toda obra é também uma criação do leitor. O leitor não lê apenas para saber que não está sozinho, frase luminosa que muitas vezes tomei de empréstimo a William Nicholson; o leitor lê para mudar sua vida ou acrescentar a obra à consciência da sua vida. É por ler desse modo que ele reinventa a obra e nesse sentido retraduz o autor.
Suponho que o leitor de hoje leia Oscar Wilde isento da imagem de autor maldito e assim confira à obra que escreveu a prioridade que deve ocupar em relação à biografia. Durante muito tempo, porém, o leitor comum foi atraído para aquela através desta. O que mais fascinava o leitor era a vida dissoluta do autor, sua perversão, sua coragem de viver “o amor que não ousa dizer seu próprio nome”, o processo legal para o qual foi arrastado e cujo desenlace se resume na sua desgraça pública, a condenação à prisão sob o regime de trabalhos forçados e a ruína que foram seus últimos anos de vida. Hoje, suponho ainda, a obra se impõe por si própria e o estilo epigramático de Wilde, saturado de paradoxos e jogos de palavras agudamente deliciosos, o intraduzível witticism inglês, expressão do melhor decadentismo estético da época, sobrevive por força de suas virtudes literárias. Tornou-se afinal possível retratar a vida do escritor dentro das linhas de “normalidade” que o restituem à humanidade espontaneamente reconhecida num escritor heterossexual. Detendo-me apenas no exemplo do cinema, expressão da melhor cultura narrativa do século 20, bastaria comparar Os crimes de Oscar Wilde (The trials of Oscar Wilde), filmado em 1960, e Wilde, de 1997, baseado na biografia escrita por Richard Ellman e dirigido por Brian Gilbert. Para bom entendedor, sem trocadilho, os títulos das duas obras são por si sós bastante reveladores.
Apenas 37 anos separam os dois filmes. No entanto, quanta diferença entre ambos, a partir do próprio título das obras, como assinalei. Por nos conhecer bem acima do pouco que sabemos e queremos saber, Freud não se iludia acerca do progresso humano. Por isso, ao saber dos seus livros ardendo nas chamas das fogueiras da inquisição nazista, evidência ainda amena da catástrofe que se anunciava, limitou-se a dizer: “What progress we are making. In the Middle Ages they would have burnt me; nowadays they are content with burning my books”.
Graças à estante do meu tio, fundei no espaço da minha solidão uma ilha imaginária dentro do mundinho de Igarapeba regulado pelo tédio e a repetição. Foi a partir daí que me afastei gradualmente da vida de dissipação da vila, uma dissipação que por certo tornava a vida mais suportável: o salão de bilhar, onde a cachaça se misturava à fofoca, às bravatas sexuais tão caras ao nosso machismo, e o futebol acalorava as discussões fúteis e arengas sem propósito. Melhor ainda, claro, era praticá-lo no campo de futebol, também nas peladas improvisadas em plena Rua do Comércio. Os banhos de rio no geral associados ao voyeurismo e à masturbação à sombra das árvores ou entre as frestas de portas e janelas. A força do sexo, vibrando na carne trepidante de vida, é em última instância incivilizável. As normas da família o abafam, também as da religião, da escola, de toda uma complexa rede de controles e repressões, mas ele irrompe dos becos e frestas mais obscuras, vaza por vias até impressentidas. É uma batalha vencida a da civilização, compreendida no sentido preciso de repressão sumária da sexualidade à margem das práticas socialmente aprovadas e consentidas. Quem ceder à vontade delirante de suprimi-lo, não importa em nome de que ideal supremo, vai fatalmente adoecer, pois seus sintomas irreprimíveis encontram sempre um meio de viver no corpo, ainda que seja através da doença.
O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semiadormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroía o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada do meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura. Nesse momento, a literatura era ainda provavelmente uma via de escape da realidade insípida, uma fuga do tédio indescritível nas fronteiras mesquinhas de uma vila. Mais tarde descobri que ela, no seu sentido mais pleno, é na verdade uma porta de retorno esclarecido à esfera irrecorrível e necessária da experiência. O leitor esclarecido não lê para fugir da realidade que lhe parece insuportável, mas para melhor compreendê-la e vivê-la com a lucidez de quem se sabe mortal e assim passa a exercitar-se na arte de habitar o presente. Hoje, quando sei que estou ficando velho, procuro ainda aprender que o presente é imenso e é o único tempo real. Por ser imenso, ele decanta e atualiza o que foi isento de nostalgia ou consolação regressiva. Por fim, sei do fim que me espera e procuro acolhê-lo como condição da necessidade que me define.
Evidentemente, as reflexões que intercalo na narrativa, como as do parágrafo precedente, não me ocorreram no tempo a que regridem minhas memórias de leitor. Talvez convenha ainda esclarecer que a mudança de mentalidade decorrente da minha experiência de leitor é fruto de um processo que em muitos casos se estende através de anos. Considerando um exemplo específico acima narrado, o relativo à minha percepção ética da homossexualidade, com certeza não me bastou a leitura transformadora do De Profundis, de Oscar Wilde. Não me passa pela cabeça supor nem induzir o leitor a concluir que os processos de mudança de mentalidade que vivemos são automáticos, muito menos se consumam num simples ato. Ser de memória, deliberadamente imantado à linha de tensão entre presente e passado, pois tenho hoje consciência de que todo ser humano é portador de uma história, há muito aprendi que toda memória é sempre uma reconstituição do passado deformado pelas condições do presente. O passado não é nunca o passado refletido no presente; é sempre o passado que o presente reflete.
O lastro de valores e convicções que internalizamos através de um processo de socialização no geral inconsciente, indissociável do meio social, demanda experiências e revisões muito complexas, não raro prolongadas e dolorosas, para que enfim uma mentalidade cultural renovada se cristalize. Reforço este argumento lembrando a lucidez habitual com que Montaigne nos seus Ensaios ressalta o quanto o ser humano é moldado pelos hábitos. Ensaiar um estudo de compreensão da mentalidade de um povo é antes de tudo ensaiar as formas e processos através do qual a realidade histórica se transforma retendo as linhas mais fortes e resistentes do passado, dos hábitos e tradições sedimentados no leito recoberto pelo fluxo perpétuo das águas. O fluxo das águas, metáfora da mudança permanente das sociedades no tempo, está sempre fluindo, mas sempre sobre o leito que imprime direção ao movimento. É por isso que esses processos se enquadram na categoria historiográfica da longue durée, como dizem os estudiosos dessas questões. Muita gente da minha geração subestimou a complexidade desses processos, além da força poderosa da tradição, porque na nossa juventude fomos embalados por uma concepção revolucionária da história que era na verdade uma projeção mítica do nosso desejo de mudança acionado por condições históricas hoje suprimidas do horizonte no qual se enquadra a experiência da juventude atual.
Prolongando ainda as considerações acima esboçadas, vivi por dentro, nas camas e fora delas, as mudanças radicais de comportamento que irromperam nos anos 1960. Foi sem dúvida uma década muito turbulenta, tão turbulenta que muitos a encararam como uma autêntica revolução. Sem dúvida, muito do que era autêntica e explosivamente novo naqueles anos revestia um caráter de mudança revolucionária consolidado pelo desdobramento do processo de mudança então detonado. Isso me parece verdadeiro sobretudo quando avaliamos a mudança radical da condição da mulher dentro de um intervalo de tempo relativamente muito curto. Em uma ou duas gerações a mulher conquistou direitos e ocupou espaços na sociedade absolutamente impensáveis quando recuamos um pouco no passado, notadamente num país de poderosas e seculares tradições patriarcais como o Brasil.
É também uma banalidade observar que todos esses processos de mudança cobram um preço bem alto àqueles que neles se empenham. Importa no entanto, reiterar essa banalidade porque a mentalidade corrente, forjada pelo hedonismo consumista, alude a esses processos, diria que à realidade em geral, como se tudo dependesse do nosso desejo e vontade e toda fruição de prazer não implicasse algum tipo de preço ou consequência. Basta olhar à volta com um mínimo de atenção para perceber que tudo isso não passa de grosseira inconsciência ou mera ilusão vendida pelo mercado, única ideologia soberana no nosso tempo. As mudanças implicam custos, frequentemente altos e dolorosos. Qualquer mulher que ousou transpor a fronteira do passado patriarcal sabe o quanto precisou lutar e sofrer para conquistar direitos e privilégios hoje generalizados. Reiterando outro lugar comum, no capitalismo não existe almoço gratuito. Há quem atribua a frase a Margaret Thatcher. Como se tornou lugar comum, já não importa a fonte, mas a verdade do que diz. Acrescentaria apenas que o dito não se aplica tão somente ao capitalismo, mas a qualquer regime necessário de organização da vida coletiva. Em suma, tudo tem preço e alguém tem sempre que pagar a conta.
Muito do patriarcalismo que moldou nossa mentalidade está ainda infelizmente muito vivo. Parece-me ilusório acreditar que esse passado negativo pode ser superado dentro do horizonte previsível. O Brasil é um país de ritmos de mudança notavelmente lentos. Mesmo nos momentos de crise provocados por intensa pressão social, no geral predominam as forças conservadoras. Não é acidental o fato de o mais importante e influente intérprete do Brasil ser um intelectual de perfil nitidamente conservador. Refiro-me sabidamente a Gilberto Freyre. É inegável que foi antes de tudo um genial inventor do Brasil, uma personalidade extremamente complexa e contraditória, assim como a obra definitiva que legou à posteridade. Não tenho dúvida, entretanto, de que nele e na sua obra, pois que são em muitos sentidos inseparáveis, prevalecem os valores do Brasil patriarcal, que ele captou e interpretou de forma absolutamente única. Portanto, quem como eu aspira ao ideal de viver num país mais igualitário e civilizado, lutando ou não para mudá-lo, vai ter que esperar ainda muito tempo. Como a longo prazo todos estaremos mortos, lembrando uma frase antes muito citada, não estarei por aqui quando o Brasil, o eterno país do futuro, escrever nas suas fronteiras o romance que tanto sonhei ler, idealmente adicionando-lhe uma frase que gravasse minha passagem por esse mundo.
Meu caro Fernando, já lhe disse uma vez que seus textos são tão profundos que inibem os nossos comentários. Estamos tendo agora lições de psicologia social, de sociologia, quase “de omni re scibili et quibusdam aliis” (que alguém me corrija o latim e perdoe a petulância).
Quero aqui, portanto, apenas abordar uma questão pontual. Você atribui a expressão “o amor que não ousa dizer seu nome” a Oscar Wilde. Mas já lí um poema de um autor francês, cujo nome não retive, em que tal expressão é, aparentemente, introduzida, como último verso da composição: “l’amour qui n’ose pas dire son nom”. Você poderia me esclarecer alguma coisa sobre isso?
Posso, se necessário, descrever como se desenvolve o poema, concluindo com a fórmula em discussão.
Meu caro Clemente: Você é um cavalheiro até para introduzir uma objeção, factual ou hipotética. Sempre conheci e li noutras fontes a frase-eufemismo atribuída a Oscar Wilde. No entanto, não excluo de modo algum a possibilidade de que proceda de outra fonte. Uma das coisas que já me cansei de constatar é exatamente a natureza apócrifa de tantas frases célebres que repetimos. No caso em questão, suponho que a frase consta do próprio texto que cito (a famosa carta intitulada De Profundis). Aliás, ela é também repetida por Stephen Fry, que interpreta magnificamente Wilde no filme homônimo, também citado nas minhas memórias. Poderia, assim, talvez constar dos próprios autos do processo. Somente poderíamos sanar sua dúvida conferindo a data da obra do autor francês que você menciona como a fonte original da minha citação. Vale lembrar que o processo e subsequente prisão de Wilde ocorreu no fim do século xix. Ele morreu em 1900, se a memória não me trai. Muito grato pela leitura sempre generosa, Clemente, e tratemos de esclarecer essa questão pontual.
Fernando, li o “De Profundis”, e acho que a frase em questão não está nele. Eu a encontrei, como já disse, num poema citado em um livro sobre sexualidade, de um especialista. O poema transcrito imagina uma cena com dois jovens, um de aspecto feliz e descontraído, que se apresenta como o amor heterossexual, e outro, triste e retraído, que se identifica como o outro amor, aquele que não ousa dizer o nome. A transcrição do poema é apenas o mote para a abordagem da questão, pelo especialista. Li isso há muito tempo, mais de meio século, quando o preconceito era bem mais forte do que hoje.
Infelizmente, não tenho competência para essas investigações, por meio eletrônico, que descobrem tudo. Se alguém que nos lê for bom nisso, agradeceria que nos descobrisse o nome do poeta francês e o seu texto tão referido.
Clemente: Também confesso faltar-me competência para esses exercícios de erudição. Aliás, sendo mais preciso, pouco-me com eles na medida em que têm interesse substancial para aquilo que escrevemos ou lemos. Além disso, minha limitada experiência de leitor da história da cultura e das ideias já me demonstrou o quanto as fontes de citações célebres, fiquemos nestas, são discutíveis, quando não simplesmente erradas. Por exemplo: a célebre exortação de Marx e Engels inscrita no Manifesto Comunista (“Trabalhadores de todos os países, uni-vos”, acrescento que o próprio texto varia) é originalmente de Proudhon. A inimizade ideológica que os separou, afora outras razões, levou os autores do Manifesto a apagar a origem real da exortação. Poderíamos multiplicar exemplos. No entanto, em consideração a você, escavei um pouco esse poço sem fundo e descobri que, segundo a Wikipedia, a frase que citei consta de um poema de Lord Alfred Douglas, o infame amante de Oscar Wilde, cujo título é Two Loves. A frase em inglês é: “The love that dare not speak its name”. Aliás, já a li como “The love that doesn´t dare say its own name”. Um abraço, Clemente.
Como é bom ler o que é escrito,pleno de vida.
Maravilha, Fernando, um primor de trajetória intelectual. De quebra, você ainda nos brindou com o parágrafo mais bonito que foi publicado em língua portuguesa em quaisquer recantos da lusofonia do planeta em 2017, quiçá na década. Reli-o algumas vezes e não tardarei a sabê-lo de cor. De tão exuberante e belo, vou reproduzi-lo para o leitor preguiçoso, aquele que vem direto aos comentários. Talvez assim ele se anime a lê-lo por inteiro, como você merece.
“O tédio das primeiras horas da tarde, quando o sol retinia sobre as fachadas e telhados das casas semiadormecidas, rendia os corpos áridos à lassidão que corroía o cotidiano da vila. Penso, no entanto, que me tornei o único habitante venturoso de Igarapeba quando descobri o mundo da imaginação humana comprimido na estante empoeirada do meu tio Edmundo. A chave da estante e a solidão fruída na cadeira de balanço da varanda à sombra do sol e da rotina sem alma fundaram o paraíso secreto que me converteu para sempre num explorador do mundo reinventado pela literatura”.
Meu querido xará: No mínimo por conveniência, quando não por hipocrisia, tributo necessário que pagamos à civilização, evitamos comentar elogios do leitor. O seu, porém, excede a generosidade que eu poderia esperar. Por isso não resisti à tentação de lhe endereçar algumas palavras de profunda gratidão, embora sabendo que a qualidade do parágrafo citado está antes na leitura do leitor sensível e demasiado generoso. Muito grato, Fernando.