Clemente Rosas

Turma escola pública de 1925.

 

Na minha infância, além dos grupos escolares públicos, de bom nível, não havia colégios particulares para o ensino das primeiras letras.  Somente professoras.  Solteironas ou casadas  (e, às vezes, arrimo dos maridos), seus estabelecimentos eram vistos como as escolas de Dona Natércia, de Dona Alice, de Dona Maria José e outras, sempre lembradas, por razões diversas, pelos que as conheceram.

O Grupo Escolar Epitácio Pessoa ficava perto de nossa casa, e por lá passamos os cinco irmãos, na fase de pré-alfabetização e de alfabetização.  Mas apenas minha irmã mais velha e o irmão caçula tiveram lá participações notórias, graças à dedicação de uma pessoa especial: Adamantina Neves.

Dona Adamantina não se limitava a ensinar letras e números.  Organizava encenações, despertava talentos nas crianças sob sua guarda.  Seu mister abrangia a concepção dos espetáculos, a coreografia, as falas, a direção artística e tudo o mais.  No caso de minha irmã, lembro de duas apresentações.  Uma em que as meninas figuravam as praias paraibanas, cada uma cantando as belezas de sua representada (no caso de Liana, obviamente, a nossa Praia Formosa).  Outra, uma espécie de auto de Natal, em que ela fazia o papel de uma cigana.

Quanto ao irmão caçula, franzino, cabelos claros, coube, noutra ocasião, o papel de confeiteiro.  De aventalzinho branco, com aquele gorro alto dos chefes de cozinha, cantava:

Sou confeiteiro

Afamado e bem dengoso

Meu trabalho é gostoso

Não preciso de dinheiro

Faço balas saborosas

Docinhas, deliciosas

Eu as dou ao mundo inteiro

Vou trocando por carinho

Essas balas delicadas

Eu oferto aos brotinhos

Que são minhas namoradas

Minhas balas doidivanas

Das campinas têm a cor

Nelas as balzaquianas

Vão encontrando o amor

Talvez a boa lembrança que tenho dessa canção inocente se deva a uma mesquinharia que fizemos, eu e o mano Nelson, com nosso pequeno Mateus.  Por isso, quero aqui exorcizá-la.

 No trecho em que o confeiteiro falava em “dar suas balas ao mundo inteiro”, ele devia meter a mãozinha numa mochila e atirar os bombons sobre a plateia, de umas quarenta ou cinquenta crianças.  Sabedores disso, nós o intimamos, quase sob ameaças, a jogar os confeitos na nossa direção.  Resultado: tal foi a preocupação do jovem ator que ele quase esquece letra e música da estrofe indicada.  E após o espetáculo, sua primeira atitude foi procurar saber se havíamos sido bem contemplados na distribuição das balas.

Dona Adamantina foi das professoras de melhor conceito naquele tempo, e muitos lhe devem as luzes do saber.  Certamente já não vive, pois mesmo a sua cigana e o seu confeiteiro não estão mais conosco.  Este, ceifado a bordo de um avião por uma embolia pulmonar, quando voltava de seminário sobre ciência do solo, sua especialidade agronômica.  Como os bons solos agrícolas são os que produzem ingredientes para os confeitos, podemos conjeturar que seu futuro foi, de alguma forma, compatível com o personagem interpretado.

Quanto à cigana, honrou apenas as excelências do mar tranquilo de Formosa, como nadadora “master” de qualidade, vencida, enfim, por um AVC, em pleno abraçar das águas.  Mas quis o destino que ainda tivesse tempo de reencontrar, muitos anos depois, Adamantina, que havia então assumido, na vida real, o papel antes atribuído à sua aluna.  Aposentada com míseros proventos de professora, e recolhida a um bairro modesto da cidade, passou a dar cartas e dizer a sorte aos inquietos e carentes de conforto.  Sua imaginação brilhante e seu carisma a ajudaram nessa nova missão, menos nobre, por certo, mas sempre caridosa e consoladora.