1 – O nome faz o homem?
Até os 15 anos de idade, José Umbelino Gomes Farinha amaldiçoava o pai todo dia por lhe ter dado um nome de batismo tão ridículo quanto ingrato. Ora, por muito que se esforçasse em ser identificado simplesmente como José, certo é que o Umbelino tinha uma força gravitacional forte. José tinha de monte na escola. Umbelino, bem, era singular. Em seu tremendo empenho para baixar o perfil, pouco ajudava que os professores estacassem diante da palavra um pouco jocosa na hora da chamada. “É Umbelino mesmo, filho?” E então até os novos colegas desatavam a rir. Na hora do recreio, todos já conheciam seu nome e o repetiam com certo sadismo: “Umbelino, você sabe onde é a lanchonete, Umbelino?” O mesmo acontecia com o Gomes. Sendo o nome da mãe muito comum, o foco se voltava para o sobrenome paterno, o indefectível Farinha, à época umbilicalmente associado à cocaína. Nessa toada, muitos anos de peleja se passaram e ele não conseguiu jamais ser o Zé Gomes com que sonhava. Nas atividades recreativas era Umbelino e, vida universitária afora, foi Umbelino Farinha. Quando não, maldosamente, “o Belino do Pó”. Tudo ficou mais fácil, porém, quando passou a fingir certa naturalidade. Assumir o nome com um sorriso fez com que as chacotas cessassem, o que não o impediu de ir às lágrimas no dia em que Heloísa, a noiva, o acariciou com ternura e lhe sapecou ao ouvido um “Vem, Zezinho”. Isso ele jamais esqueceu. Sabia que um bom desempenho naquela hora era crucial para deixar de ser Umbelino e não se fez de rogado. Agarrou-se à chance com disposição e vigor, reconhecendo ali a porta da redenção. Um ano depois, casado e feliz, os novos amigos – e até alguns dos antigos – passaram a chamá-lo de acordo com o tratamento que lhe dava Helô. Dessa forma virou Zé, Zezinho, Zezão e, mal sabia ele, logo seria identificado como “Químico José” no crachá.
2 – O telefonema
Foi numa noite de maio dos anos 1990 que José Umbelino recebeu o telefonema mais importante daquela década. Tendo voltado do laboratório para sua sala, depois de delicadas experiências em torno do ponto ideal de aplicação de vernizes e colas industriais, eis que o telefone tocou e, ainda vestindo bata branca e com os óculos de segurança levantados sobre a testa, atendeu-o àquela hora atípica. Alguma ocorrência na fábrica? Será que era Heloísa? Não. Com voz simpática e se dando ares de amigo, um headhunter da empesa PMC se identificou e, sem dar margem a hesitação, perguntou se não poderiam marcar uma hora para conversarem: “Nosso cliente é uma indústria expressiva no setor. Acreditamos que temos uma oportunidade interessante para oferecer. Será que poderíamos nos ver aqui em nosso escritório a essa mesma hora na segunda-feira?” Ora, José Umbelino já fora abordado outras vezes e sabia que era dar prova de amadorismo pedir detalhes sobre o empregador ao recrutador porque este não daria pistas. Anotando o endereço na enorme agenda Exame que tinha à mesa, Umbelino varreu com os olhos o escritório aconchegante onde tinha sua base e, estranhamente, começou a sentir saudades antecipadas daquelas noites em que fazia os últimos apontamentos da longa jornada e seguia para casa, onde Helô o esperava com um sorriso e um par de novidades. Gostava de trabalhar ali, na multinacional alemã. Desde os primeiros anos do curso de química, fazia coro com os colegas que um bom futuro estava assegurado a quem conseguisse uma posição em uma das quatro irmãs, todas gigantes mundiais. O slogan de uma delas – “Se é Bayer é bom” – aplicava-se na verdade às demais. Como era pouco provável que elas abordassem profissionais da concorrência germânica, talvez a oportunidade fosse em uma empresa belga, suíça ou mesmo francesa.
3 – A reação de Helô
Mulheres são seres muito estranhos, disso desconfiava seriamente Zé Umbelino. Quando tudo vai bem, dificilmente elas enxergam no cenário uma razão plausível para que se operem mudanças. Na esfera profissional então, essa era uma regra de ouro. Quem garante que em outra empresa não surgiria uma colega de trabalho interessante que desviaria o marido da boa trilha do casamento? Que mérito havia em mexer em time vencedor? Acaso não seria a estabilidade empregatícia um ponto de partida promissor para uma gravidez tranquila? Por outro lado, ele também sabia que a resistência inicial podia se transformar em candente entusiasmo e apoio se tudo desse certo. Nessas circunstâncias, as esposas (como as mães) serão sempre as primeiras a reinventar o discurso original derrotista de forma a ganhar um pedacinho dos créditos e apagar as pistas da sabotagem explícita ou implícita que fizeram ao primeiro anúncio. E acreditarão, à custa de repetir, que jamais se opuseram a uma mudança. Apenas tinham cumprido o dever que lhes ditara a biologia: ser conservadoras para melhor proteger a prole a caminho. Se Umbelino fracassasse, contudo, era quase certo que passaria anos a ouvir o invariável “eu bem que falei”. É por isso, em parte, que um homem não pode falhar. E que a fortuna da mulher decorre do suor e das angústias agregadas de dezenas, senão centenas de homens que superaram percalços e ousaram. Mas essas elucubrações ele guardava para si. O certo é que até ela se empolgou quando soube como fora a entrevista. Conquanto não fosse uma multinacional, o que podia significar uma empresa brasileira – dessas onde a lealdade era mais valorizada do que a performance -, o salário era bom e ele já entraria como diretor da área de Pesquisa e Desenvolvimento. Do anúncio do desligamento até o início nas novas funções, o casal tirou dez dias de férias nos Lagos Chilenos. Helô estava orgulhosa do marido. Ao cabo de alguns meses, poderiam pensar em aumentar a família.
4- Integração
“O que posso dizer a você, e me permita chamá-lo assim porque tenho idade para ser seu pai – não é por desrespeito à sua função, longe de mim -, é que todos aqui se tratam pela titularidade. Você será o Químico José. Vou hoje apresentá-lo ao Economista Freitas, nosso diretor financeiro. E o Engenheiro Artur o receberá no começo da tarde para falar das unidades fabris. Dr. Marcelo responde pela área jurídica. Os doutores, portanto, são os advogados e os médicos do trabalho. Por respeito aos acionistas, eles também são tratados por doutor, mesmo o mais jovem deles. Os portões de acesso fecham rigorosamente às oito horas e se espera que os diretores estejam no interior da fábrica quinze minutos antes. É uma praxe que veio do Físico Alexandre, de saudosa memória, nosso antigo presidente. Todas as chamadas telefônicas profissionais e mesmo privadas precisam ser solicitadas às nossas operadoras que são seis para atender o complexo todo. Se aprovado por dois diretores, reembolsamos combustível em caso de uso de carro próprio. O Engenheiro Armando, nosso superintendente, não vê com bons olhos os celulares que começam a aparecer nem tampouco relacionamentos íntimos entre funcionários. Nosso mundo se divide entre os assalariados e os integrantes da chamada folha de pagamento confidencial, a que eu tenho acesso. Sim, eu sabia que você me perguntaria isso. Cheguei aqui em novembro de 1947. São muitos os funcionários com 20 anos de casa, mas poucos com mais de 30. Com mais de 40, então, somos só 6. Para toda comunicação com o exterior, as mensagens de telex, telefax ou mesmo cartas precisam passar pelo crivo do tradutor. É norma. Se houver algum compromisso profissional na cidade, se recomenda informar os pares com 2 dias de antecedência e a mim com 3, para que eu possa providenciar a logística”. Assim falou Reginaldo, pau para toda obra da cúpula e míope até a medula.
5- Conversa em casa
José Umbelino Gomes Farinha, doravante o Químico José, fez o que todo homem de bom senso costuma fazer nessas circunstâncias. Chegando em casa, louvou o lado bom da nova posição e minimizou o negativo. O que mais o afligia era entender como uma mentalidade tão paternalista e uma cultura tão conservadora poderiam fazer face aos tempos que se anunciavam. E que direito tinham alguns de seus pares de dizer certas patranhas com o mais soberbo dos ares? A que mais o marcou foi a força rebarbativa do Engenheiro Macedo ao afirmar que ali dentro, pelo menos, a direção era contra a globalização. Menos mal que ninguém lhe dissera que a lei da gravidade fora revogada e que uma bola de papel lançada ao lixo ascendia ao céu. Se Heloísa sentiu que alguma coisa não estava saindo exatamente como ele queria, não passou recibo e tratou de minimizar as reticências, atribuindo-as tão somente às dificuldades naturais da adaptação. E nesse ponto, talvez ela não estivesse de todo equivocada. Nos seis primeiros meses de fábrica, o Químico José manteve o currículo atualizado e chegou a despachá-lo aqui e acolá em resposta a classificados de jornal. Ao melhor amigo, segredou em rara noite de bebedeira: “Estou no mercado, cara, aquilo não é lugar para mim”. Mas pouco a pouco, uma mudança de expectativa passou a se operar. Pois gostava sim de pegar a estrada de manhãzinha, fumar um cigarro no caminho e escutar o noticiário do rádio. De longe, mesmo que estivesse de olhos vendados, já sentia os vapores da indústria, não raro alvo da perseguição de ambientalistas. Mas até isso soldava os laços entre as pessoas. Tinham um inimigo comum e tudo o que não queriam era interdições, dias parados ou qualquer intercorrência que levasse ao corte de postos de trabalho. Apesar de chamado para participar de dois processos de seleção, o Químico José se recusou a ir adiante e decidiu que ficaria ali.
6 – Tempo-rei
Nunca passara pela cabeça de Heloísa que José fosse um dia se sair com semelhante proposta. Mas quando ele a repetiu, ela não teve mais nenhuma dúvida da veracidade. Disse ele em tom neutro que tinham duas alternativas pela frente. Na primeira, ele se mudaria para uma casa que a empresa lhe daria gratuitamente no distante subúrbio onde se localizava. Ele ficaria lá de segunda a sexta-feira. Tal arranjo lhe permitiria fazer alguns plantões – obrigação da segurança da fábrica – e se poupar de uma viagem diária de cem quilômetros de ida e volta naquele trânsito que vinha se tornando infernal. A segunda possibilidade era que ela Heloísa, e os dois filhos do casal, Bernardo e João, se juntassem a ele e fossem também viver nos costados das caldeiras, delas separados por um muro. Tanto poderiam alugar o apartamento da cidade como mantê-lo para os fins de semana. Poupador agressivo, José disse que a renda extra não fazia diferença nas finanças da família. Quando Heloísa rebateu que aquilo era um delírio tremendo e que por hipótese alguma ela sacrificaria a boa escola das crianças, entre outras regalias arduamente conquistadas, para viver num lugar ermo e até perigoso, José aquiesceu com bonomia e disse que de certa forma já esperava aquela resposta. E sem dar margem a muita conversa, afirmou: “Eu vou só. E virei ver vocês nos fins de semana”. O desespero de Helô não podia ter sido maior. Será que ele arranjara uma amante? De onde vinha aquela devoção à fábrica? Já não era tempo talvez de prospectar outras oportunidades? Já não estavam ficando para trás os tempos dos empregos vitalícios? Ou será que ele não vinha percebendo que as empresas valorizavam cada vez mais os profissionais rodados, portanto mais versáteis? Mas nada disso ela falou com calma. Pelo contrário. Mal as crianças foram dormir, ela invadiu seu pequeno escritório doméstico e, pela primeira vez em 14 anos, seis meses e vinte e nove dias, recorreu à forma que o humilhava: “Você pode me explicar o que está se passando, José Umbelino Gomes Farinha? Você não vê que está colocando em sério risco nossa história de vida? Será que você não se percebe?”
7- O enigma
O casamento ainda durou dois anos. Nos fins de semana em que ele se recusava a visitar a família alegando necessidade de acompanhar novas pesquisas no laboratório, Helô chegou a levar as crianças para ficarem juntos na casa feiosa, cuja única vantagem era contar com os vigilantes do complexo fabril, o que diminuía os tremendos riscos de se morar naquelas bandas, paulatinamente tomadas pelo narcotráfico. Depois disso, se separaram sem que ele criasse quaisquer entraves ao processo. Muito pelo contrário, dir-se-ia que estava aliviado por poder doravante se dedicar àquela entidade sinistra que tantas ressalvas lhe suscitara na alma, no dia que foi fazer a integração pelas mãos do diligente e já falecido Reginaldo. Foi então que a vida social de José Umbelino Gomes Farinha passou por aberrante encolhimento. Nas confraternizações anuais do pessoal da faculdade, por uma razão que ele desconhecia, passaram a chamá-lo Umbelino de novo, como se não tivesse havido um longo interregno em que fora simplesmente Zé, Zezinho ou mesmo Zezão. Era como se a separação de Helô lhe tivesse trincado a blindagem identitária. Melhor assim. Livre das peias sociais que tanto o incomodavam, o Químico José era visto nas noites de fim de semana trancado no laboratório ou mesmo vagando pelas alamedas enormes que outrora abrigaram uma indústria importante, agora reduzida a um terço do que fora e fadada a ser vendida a um grupo imobiliário que a deslocaria, em favor da construção de um shopping na imensa área. Foi, portanto, com consternação que a comunidade remanescente de ex-funcionários da empresa soube que o Químico José atirou friamente no oficial de justiça que veio lhe entregar um auto de interdição nominal, suspendendo o funcionamento da planta por questões de proteção do rio. Ninguém entendeu aquela reação estapafúrdia e despropositada. Ao saber do sucedido, os filhos, envergonhados, não se apressaram em prestar solidariedade ao pai. E Heloísa, agora casada em segundas núpcias com um advogado de renome, disse ao novo esposo que nada daquilo a surpreendia. Jose Umbelino Gomes Farinha está recolhido numa unidade prisional de Taubaté e é muito estimado pelos colegas que o chamam, a pedido dele, de Umbelino. Para o diretor do presídio, é “o químico”.
Nossa! que tragédia. Foi só o que me veio à cabeça ao terminar a leitura.
O bom é você ter chegado ao fim!
Sim, você consegue criar suspense, Fernando Dourado.
Ótimo.
Para alguns, identidade definida e segurança são o objetivo da vida. Ainda que na forma de prisão.
Obrigado pela observação perspicaz, Claudio Fernandes. Ela ajuda o próprio cronista-escritor a meditar sobre o que lhe foi brotando da ponta dos dedos.
Abraço
Fernando, saudações,
O que mais impressiona nesse texto é observar como simples gestos, muitas das vezes inocentes, como o de prestar uma homenagem – o de dar o nome a um filho ou filha – podem se transformar numa bagagem de peso absolutamente insuportável para alguns, levando o destino desses à desenlaces dramáticos.
Me fez recordar uma passagem do livro “A Brincadeira”, o primeiro do escritor checo, Milan Kundera ( “A Insustentável Leveza do Ser” ), onde o protagonista termina passando anos na prisão, em regime de trabalhos forçados, ao enviar um inocente cartão postal à uma amiga, criticando ironicamente o Partido Comunista.
Impressionante como gestos tão banais podem ser – amarga e tragicamente – tão determinantes em nossas vidas.
E você, mais uma vez com grande maestria, nos brinda com um texto de triste – e até talvez previsível desenlace – mostrando a infinita fragilidade ( ou seria gigantismo?! ), que é a alma e natureza humana.
Abraço forte,
Meu amigo querido,
Fico feliz que você tenha lido “A fábrica”, gostado e a associado às suas reminiscências literárias.
Por razões que só descobri recentemente, nunca li Milan Kundera, muito menos seu livro mais notório. Motivos para conversar pessoalmente.
Sua lembrança é forte estímulo para que preencha essa lacuna.
Abraço fraterno,
Fernando