Tibério Bontempo, 43 anos, caminhou lentamente até o meio do parque e, apesar de ter trilhado um longo declive, chegou resfolegante ao banquinho onde costumava sentar para apreciar o panorama. Àquela hora da manhã, a paisagem humana era composta por garis uniformizados em macacões de cor laranja, alguns alunos do colégio italiano que matavam aula e um ou outro casal de homossexuais que extrapolavam os códigos amorosos em longos beijos de boca aberta, o que mais parecia uma tentativa de duas serpentes de querer engolir uma a outra. Essa era a parte animada da paisagem. A inanimada era composta por impávidas estátuas brancas de divindades gregas, todas de uma alvura repousante sobre o fundo de verde intenso. Gostava dali. Olhando o relógio, viu que ainda faltava meia hora para seu principal compromisso diário. Para espantar a ansiedade, descalçou as alpercatas e coçou um pé com o outro, especialmente entre os artelhos. Cumprimentou o jardineiro que o conhecia de vista e comentou que o dia parecia estar custando muito a passar. Pouco antes da hora aprazada, às onze e meia, Tibério se levantou e caminhou para a rua de baixo, sempre um pouco ofegante. O restaurante deveria estar abrindo as portas para os primeiros clientes.
A mesa a que gostava de se aboletar era estratégica. Equidistante da cozinha e do banheiro, tinha a vantagem de ficar encoberta por uma ramagem de verde que lhe velava parcialmente o rosto, mas deixava o prato em bom ângulo de visão para os atarefados garçons que logo mais começariam a desfilar por ali, armados dos espetos bem fornidos de todas as delícias que, só de pensar, já faziam Tibério salivar. Salivava com tanta profusão que se valia de um guardanapo para limpar a baba que lhe escorria pelas laterais da boca. Será que era bem-vindo à churrascaria? Sim e não. Sim porque ninguém podia desprezar um freguês de comparecimento diário, inclusive nos fins de semana. Um pouco menos porque ele era o primeiro a chegar e o último a sair, o que tipificava uma fonte de prejuízo, dado apenas estatístico, é verdade. Isso porque para cada esfomeado como Tibério e seu apetite gargantuesco, havia dez mocinhas que se contentavam com um naco de assado e um prato de folhas. Em tempos de incertezas para o churrasco, era bom que cada casa tivesse seu mascote. Distribuindo bom dia para todos os lados, ele se sentou e tratou de tirar as alpercatas para deixar os pés respirarem. Era parte do rito de ficar à vontade.
Indiferente ao bufê de salada, aceitava contudo que o simpático garçom paraibano lhe fizesse um prato de verdes. “Faz bem comer alface e brócolis, Tibério. Ajuda a digestão”. Normalmente ele mal se servia das hortaliças, mas vez por outra fazia uma deferência ao bom Inácio que já sabia o que deveria trazer na sequência: “Batata frita, polenta, farofa de ovo e arroz branco – do jeito que você gosta. Tudo quentinho. Na hora de repor é só acenar. O carreteiro ainda não está pronto, mas logo que sair, eu venho te servir. Já vou trazer a jarrinha de limonada suíça sem açúcar”. O robusto cliente então abriu o jornal diante de si, pouco acima do prato, e se valendo da boa visão que Deus lhe dera, começou a ler as notinhas de política, como se adiasse um encontro. A essa altura, já contemplava o espeto de linguiça com peito de peru enrolado em bacon. Serviu-se com gosto. Então deu um banho copioso de pimenta caseira sobre o prato atapetado de farofa e partiu para destrinchar o caderno de fatos da cidade: Chilena é encontrada morta em apartamento da Zona Norte. Na sequência, a notícia detalhava que a polícia permanecia sem pistas sobre a autoria do assassinato. “D. Matilde Barca vendia cosméticos, viajava de vez em quando, era sozinha e chegou desacompanhada”, declarou Isonel, o porteiro de Patos, por caso primo de Inácio, o garçom da churrascaria. E seu amigo especial.
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Se havia um homem que era a quintessência da frugalidade, ali estava ele. Se dentro desse homem, podia residir uma alma espartana, pois bem, era o caso de Tibério Bontempo. Filho de pai e mãe desportistas – ele fora bom jogador de basquete e ela uma tenista bem ranqueada na juventude dourada -, as viagens sucessivas às represas da Zona Sul logo desenvolveram no adolescente um gosto pronunciado pela vela. Se a altura do pai não lhe dera desenvoltura para a prática de esportes náuticos, Tibério não tardou a ser acolhido por uma família de origem escandinava que passava os fins de semana à procura dos melhores ventos. Com a anuência dos pais, o adolescente adaptou o regime de treinamento aos hábitos dos Sörensen e não era raro que já estivesse na cama às nove da noite da sexta-feira, depois de uma ceia frugal, mal chegavam ao clube. Nem mesmo seus mentores na nova modalidade eram tão austeros consigo próprios como Tibério conseguia ser. Pelo contrário, o casal de irmãos dinamarqueses gostava de tomar cerveja até perto da meia-noite e a irmã dizia que a adrenalina do despertar por si só já curava qualquer ressaca. No fundo, as demandas da excelência na vela lhe deram ótimo pretexto para ficar à margem das noitadas de flerte e papo furado. Preferia dormir depois de um bom banho e acordar ainda de madrugada.
Quando o sol aparecia no horizonte, em qualquer estação, Tibério obedecia ao rito que se fixara ainda na juventude. Depois de um pequeno copo de suco de limão com mel – se fosse segunda, quarta ou sexta – ou de outro grande de suco de maçã que ele também preparava na hora – se fosse terça, quinta ou sábado -, saía para 20 minutos de alongamento, ao que se seguiam outros 50 de corrida. Só então tomava banho e preparava o copioso café da manhã, para cuja elaboração prescindia de qualquer ajuda. Desde que fora estudar engenharia na prestigiosa faculdade do interior, quase um quarto de século atrás, ele fizera da independência uma religião. No clube, a rotina não era diferente. Não obstante o preparo físico hercúleo, Tibério era não raro acometido de resfriados e leves estados febris, o que não é incomum em atletas de alta performance. Desde a morte do pai, assumira a frente da pequena construtora, apesar de ter feito carreira nas grandes, à distância do empreendimento familiar. A viuvez precoce da mãe, contudo, de par com uma relação que ela logo engrenou com um amigo da família, fez com que cedesse a seus apelos e assumisse o que seria seu de direito, se assim quisesse. Daí tomou gosto pelas possibilidades de crescimento que se abriram.
Aos 43 anos, como seria de se esperar, um homem como Tibério Bontempo certamente tivera chances de namorar. Sem ser, contudo, um sujeito dado a conquistas e seduções, contavam-se nos dedos de uma só mão as pretendentes que tivera. A primeira fora Marta Palmeira, uma nordestina de muita firmeza e algum encanto por quem ele se desiludiu sem grande pesar. No fundo, antipatizava com as tradições políticas do estado de onde ela vinha e o sotaque pronunciado de Marta estava associado ao que Tibério mais repudiava. A segunda, que o desvirginou, foi Hana Klug. O romance poderia ter tido sequência se ela não tivesse largado o curso no meio e decidido morar no exterior. No fundo, ele ficou aliviado. A terceira era uma colega de trabalho de uma área de suporte. A quarta – dos relacionamentos o único que chegou a lhe despertar vontade de constituir uma família -, ele conhecera nos Jogos Olímpicos, mas um dia ela lhe disse que se apaixonara por uma mulher. Que pena. Por fim, achou uma boa fórmula na pessoa de uma certa Matilde Barca, uma chilena que se sentara à mesa ao lado num pátio de shopping e lhe perguntara a queima-roupa se era casado. Com sotaque, disse: “Se for, tenho algo que interessa à sua mulher. Do contrário, tenho algo para você”. E apertou os olhos amendoados com lascívia.
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No dia em que completou 43 anos de vida, Tibério Bontempo desembarcou pela primeira vez numa capital nordestina. Filho de mãe soteropolitana e pai da província da Basilicata, Itália, Tibério chegou ao porto de Salvador três anos depois do previsto. Isso porque a intenção era conhecer a terra da mãe ao completar 40 anos, de preferência na companhia dela. Ocorre que poucos dias antes do embarque no enorme navio, quando estava a caminho de casa na Zona Oeste da capital, ele foi alvejado por dois tiros, O primeiro lhe varou o abdômen e por muito pouco não o deixou paraplégico. O segundo atingiu-o no ombro e quase não houve gravidade. O mais irônico é que Tibério Bontempo, que voltava do consulado onde obtivera boas notícias para a obtenção da cidadania italiana, nada tinha a ver com a confusão que se instaurara entre 2 chefequetes do tráfico do bairro que teriam se cruzado na porta de um bar. Sentindo-se mutuamente provocados, sacaram as armas e, diante da intervenção inesperada de populares que os apartaram, erraram flagrantemente a direção dos tiros, fazendo com que ambas as balas que castigaram Tibério tenham vindo cada uma de uma arma diferente. Ao saber da notícia, Rosa Nascimento Bontempo sofreu as pressões cranianas que antecedem um AVC e este resultou fatal. Doravante Tibério era órfão de pai, que mal conhecera, e de mãe, com quem vivera até o fim.
Entendendo os motivos de força maior que levaram ao cancelamento da viagem, a agência houve por bem isentá-lo de quaisquer multas de remarcação e, atendendo à petição do advogado, lhe concedeu adiar o cruzeiro para quando parecesse oportuno, assim como manteve o direito a um passageiro acompanhante. A viagem até o Rio de Janeiro foi tranquila e Tibério não se abalou a descer na escala que fizeram em Ilhabela, no litoral norte paulista. Preferiu permanecer a bordo, se esforçando para levar a cabo um tomo de “À procura do tempo perdido”, de Proust. Já lera em algum lugar que não era recomendável embarcar nessa aventura no ruge-ruge das atividades de gerente comercial de uma agressiva rede de vendas em domicilio de cosméticos. Tibério não sabia bem se era devido ao balanço do mar ou ao torpor que o acometia depois das refeições copiosas, mas costumava adormecer na espreguiçadeira enquanto Matilde, a namorada, alternava idas à academia, momentos de flerte no cassino que abria as portas quando o navio descolava do cais e, parece, escapadas até o labirinto dos funcionários com um certo garçom mexicano. Quando se aproximava, perguntava: “É sobre o quê mesmo esse livro? É grosso, mas o título é bom. Tem a ver com a nova linha de produtos anti-envelhecimento que vamos lançar?”.
Foi sobretudo depois de ter visitado a cidade de onde viera a mãe, mais precisamente ao cabo da confraternização que tivera com tios e tias que só então conhecera, residentes no bairro da Federação, que Tibério retomou o navio de volta a Santos de humor irritadiço e, por assim dizer, quase hostil à tripulação italiana que o tratava com irônica deferência:”Buona sera, Signore Bontempo“. Se alguma coisa ficou da leitura de Proust foi que não fizera bom negócio ao convidar a vulgar Matilde Barca para ter uma opção de sexo à mão. Daí talvez estar comendo além da medida, se encharcando com venenosos anéis de cebola frita e se empanturrando no restaurante dito mexicano que não fechava as portas mesmo porque não as tinha. Quando passou por Cabo Frio e o navio sacudiu a mais não poder, Tibério tomou a decisão de que dispensaria a chilena desde que atracassem e, mais ainda, a demitiria da equipe de promotoras de vendas. Tinha que fazê-lo com sutileza para que as pessoas não associassem a desgraça da colega a uma experiência amorosa mal-sucedida com o chefe. A observância da discrição não impediria que o fato se tornasse público num mundo de tantas imagens e registros. O processo não foi tão simples quanto ele pensava, mas teve desfecho satisfatório. Pelo menos assim lhe pareceu por alguns dias.
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A Zona Norte vinha pouco a pouco perdendo os ares de oásis de segurança que tanto a distinguiam do barril de pólvora da Zona Sul paulistana. O delegado Tibério Bontempo, filho de janistas de sete costados, nascera e crescera na Vila Maria, nos limites de Guarulhos. Casara com Marisa, uma loirinha que vinha de um clã conhecido no vizinho Jaçanã e cujos pais chegaram a trabalhar com a família do piloto Ayrton Senna, num empreendimento vizinho. O policial sempre dissera que jamais sairia dali pois para ele já tinham bastado os anos em que esteve lotado no Capão Redondo onde a adrenalina era tanta que chegava a dar vigorosas cafungadas na cocaína que apreendia, para dar uma levantada no ânimo. Aos 43 anos, já não tinha mais saúde nem disposição para isso. Melhor, portanto, andar pela sombra e dar explicações satisfatórias ao secretário da prefeitura, mais do que ninguém escandalizado com as repercussões daquele noticiário negativo. Até os comerciantes lhe vinham negando um cumprimento e as cortesias de bacalhau e vinho verde para a Páscoa já não lhe chegavam à porta como presente de vizinhos agradecidos. Sempre podia pedir transferência para o interior, mas não era prudente recuar a essa altura da vida. Ademais, era ali que tinha sua rede, o maior patrimônio imaterial de um policial.
O dia amanhecera ainda poluído pelo noticiário que tomara conta da cidade. Nada menos que duas chacinas tinham acontecido a metros da casa de seus sogros, o que o levava a cogitar de duas hipóteses: ou os criminosos não eram do bairro. Ou, se eram, estavam empenhados em desmoralizá-lo. Para evitar que essa hipótese se concretizasse, tinha algumas pistas, mas não seria pela imprensa que resolveria o impasse. Pior do que os repórteres que, mais do que nunca, estavam colocando sua jurisdição na mídia, o perturbavam aqueles jornalistas truculentos do noticiário televisivo. Não era prudente despachar seus repórteres de mãos vazias porque seria servido de banquete no ar para milhões pelo pior ângulo. Por outro lado, o que dizer sobre casos que permaneciam insondáveis? Em seu socorro, já na tarde-noite da terça-feira, chegou-lhe às mãos um dossiê tranquilizador. Uma chilena fora esfaqueada e desfigurada na Voluntários da Pátria, a curta distância da estação Santana de metrô. Morava sozinha e seria fácil identificar suspeitos pelo serviço de vigilância. Aparecera em boa hora a tal Matilde Barca, fosse ela quem fosse. A resolução pronta daquele caso lhe daria uns dias de trégua para ir arás dos meliantes que vinham incendiando os recantos de sua infância e arruinando a reputação que construíra de homem severo, mas conciliador, quando possível.
Foi Rossi, seu adjunto, que entrou na sala coçando a cabeça e, parecendo zonzo, disse que a polícia tinha feito um trabalho de varredura incomum e que as pressões tanto da prefeitura quanto do governo do estado tinham surtido efeito. Mostrando as fotos do corpo e o laudo do IML ao delegado, Walter Rossi conhecia o chefe e resolveu não agravar a lufada de maus ventos que varriam aquelas bandas de bucolismo e paz perdida. “Seguinte. As câmaras do circuito fechado estavam desligadas e o tal Isonel, o porteiro, não soube dizer a razão. O celular dela também não foi achado, mas o dinheiro estava na bolsa. Como várias equipes se ocuparam do caso, todo mundo foi atrás do cara com quem ela parece ter se relacionado. Os caminhos apontam, lamento dizer, para um certo Tibério Bontempo. Sim, isso mesmo. O secretário está a caminho e pediu que você também se juntasse aos que estão na sala de espera para interrogatório individual”. Em transe, o delegado seguiu o adjunto e não se beliscou porque pretendia ver o filme até o epílogo. Seria o fim do crime perfeito? Chegando à sala, lá estavam três homens. O mulato transpirava e resfolegava. O segundo, atlético e bronzeado, tinha a cabeça entre as mãos. O mais tranquilo era um gordinho que mascava jujubas. Incrédula, a autoridade ficou muito tempo contemplando os 4 documentos de identidade, inclusive o do delegado anfitrião, sem saber nem por onde nem por quem começar.
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Fiquei mais confusa que sei lá quem, já que não consegui destrinchar quem é quem.
Vi que apareceu um leitor inverossímil de Proust. Wooly, como classificávamos na ONU alguns dos textos. Mas lá era uma ofuscação linguística para permitir que cada um interpretasse o texto como lhe aprouvesse.
Fiquei mais confusa que sei lá quem, já que não consegui destrinchar quem é quem. Wooly!
Helga,
Obrigado.
Dia desses você escreveu no Facebook: “Eu li Leonardo Padura todo, todos de Philip Roth, Orhan Pamuk, Thomas Brussig, Vargas Llosa, um montão de Bernhard Schlink e Ingo Schulze, de Kazuo Ishiguro só falta “The buried giant”. E só Pamuk não foi na lingua original, que turco eu não sei”.
Então pergunto: seria mesmo muita pretensão que meus ensaios em prosa pudessem calar fundo em leitora tão eclética, não é mesmo? Isso não me impede de tentar. E de, mais do que nunca, celebrar os elogios que você já me fez. Mas temo me repetir e pago o preço que for pela reinvenção.
Uma hora chego lá.
Fernando
Fernando, no Face é só provocação, porque v. me chamou de “iconoclasta” por não querer ler Proust. Não tenho a menor pretensão de crítico literário. A economista que virou crítico literário é só mesmo a Eliana Cardoso. As minhas reações aos seus contos nada têm de analítico, é puro “shooting from the hip”, não é p’ra levar a sério. O que achei engraçado é que o Marco Antônio Pontes também ficou confuso com os Tibérios.
O melhor que pode acontecer a um conto, novela ou romance é o leitor terminar e querer ler outra vez. Pois me aconteceu reler e reler ‘As vidas paralelas…’ e na segunda releitura desistir de entender e encetar a quarta vez, só para fruir.
O melhor que pode acontecer a um conto, novela ou romance é o leitor terminar e querer ler outra vez. Pois me aconteceu reler e reler ‘As vidas paralelas…’ e na segunda releitura desistir de entender e encetar a quarta vez, só para fruir.
Muito obrigado, Marco Antônio.
Por essa eu não esperava. Mas talvez fosse tudo o que quisesse ouvir para não desistir da ousadia e de algum experimentalismo.
Abraço,
Fernando
Gostei imenso Fernandito! Como sempre tem todos os bons ingredientes, historia insólita, retrato social garrido, gastronomia, sentido da observação agudo e reviravoltas incríveis. parabéns! Devias envia-los a Chiado para o dia do Livro.
Obrigado, minha querida Pascale. Cada dia estou mais convencido de que esse passatempo de botar palavras uma atrás da outra para ver no que dão quando combinadas, só vale a pena se ousarmos a mais não poder. E se desafiarmos a lógica e a sabedoria convencionais. Só assim podemos cair nas graças de uma leitora eclética como você. Saudades.
Fernando