Fernando da Mota Lima

O Menino e a Morte.

Os livros foram meus agentes civilizadores, também os modelos éticos incogitáveis no ambiente em que vivi. É provavelmente por essa razão que sempre me senti a pessoa errada no lugar errado, no tempo errado, na família errada, no país errado. Mario Vargas Llosa se indaga num dos seus ensaios críticos se acaso a literatura o tornou um ser humano melhor. Embora admita a impossibilidade de fornecer ao leitor uma explicação convincente, conclui por responder afirmativamente. Endosso seu ponto de vista. Aliás, um dos móveis agora confessos que percorrem as linhas e entrelinhas destas memórias é minha ambição por certo malograda de persuadir o leitor eventual de que me tornei melhor, ou menos falível, graças aos livros e em particular à literatura.

Um dos veios narrativos que distinguem a tradição literária alemã é o do bildungsroman, ou o romance de formação. É uma tradição tão notavelmente associada à literatura alemã que não vai no uso do termo próprio, bildungsroman, nenhum laivo de pedantismo. Usei-o simplesmente por já ser corrente na linguagem do leitor bem formado e informado. Talvez o romance que de imediato mereça associar a essa vertente da literatura alemã seja Demian, também Narciso e Goldmund,  ambos de Hermann Hesse. Hesse é outro autor que me influenciou de forma profunda e também me caiu nas mãos por obra do puro acaso. É também um outro caso exemplar da ambiguidade que permeia a recepção de todo grande escritor literário. Adotado nos anos 1960 pelo movimento hippie e segmentos radicalmente românticos e pacifistas da nova esquerda, acabou lido por razões evidentemente alheias, quando não opostas, a muitos sentidos objetivamente apreensíveis na sua obra.

Embora escreva estas páginas inteiramente baseado nas minhas memórias de leitor, consultei ocasionalmente algumas das obras cuja leitura vincou mais profundamente minha memória, mudou minha vida e justamente por isso são aqui consideradas. Não escrevo sobre elas como crítico literário; escrevo meramente como um amador, um leitor apaixonado dos livros. Adicionalmente, procuro demonstrar em algum grau a importância que os livros podem exercem sobre nossas vidas. Noutros termos, menciono e ocasionalmente comento, seguindo o andamento arbitrário da memória, apenas algumas obras que importam por se converterem em experiência. Impregnado dessas preocupações decorrentes da composição destas memórias, andei percorrendo minhas estantes, folheando e até relendo algo do que aqui tomo como matéria de escrita. Foi assim que repeguei meu exemplar da edição brasileira de O Lobo da Estepe e deparei com uma nota muito sugestiva do próprio Hermann Hesse acrescida ao final da edição compulsada, que é a 15ª., Editora Record. Que me lembre, não constava da edição que li no tempo que aqui rememoro. Aliás, todas as minhas releituras deste livro foram da edição inglesa. A nota é tão oportuna, reflete tanto do que tenho salientado em algumas passagens destas memórias que não resisto à tentação de transcrever alguns trechos:

“… Na maior parte dos casos o autor não constitui a autoridade mais indicada para decidir até que ponto o leitor compreende e onde começa a incompreensão. Não são poucos aqueles a cujos leitores sua obra parecia muito mais clara do que a eles próprios. Além do mais, as incompreensões até que podem ser frutíferas sob certas circunstâncias”.

Hesse segue discutindo sua obra dentro desta perspectiva ressaltando que nenhuma delas foi tão incompreendida quanto O Lobo da Estepe. Esboça algumas explicações, mas finda por deixar o assunto em suspenso, até porque a nota tem a extensão de menos de duas páginas. Dentre as explicações que cogita, ressalta o fato de grande parte dos leitores da obra ser constituída por jovens, os mesmos que acima caracterizei sumariamente como românticos, radicalmente pacifistas, diria ainda místicos da natureza seduzidos pela milenar tradição espiritual do Oriente. Como sabemos, Hesse, em particular sua obra Sidarta, foi talvez a fonte que mais concorreu para a moda espiritualista que se disseminou entre os jovens ocidentais, repercutindo também no Brasil. Completando minhas observações ainda baseadas na nota escrita por Hesse, ele próprio corrige a explicação que insinua ao lembrar que também os leitores da sua geração incorreram em incompreensões igualmente desconcertantes quando consideradas em relação aos sentidos objetivos da obra e às intenções do próprio autor, conclusão que extraio das entrelinhas da nota. Esclarecendo que este e os dois parágrafos precedentes são de inserção posterior, retomo abaixo o fio da memória.

Um dia, por volta de 1970, um amigo ofereceu-me de empréstimo um exemplar de O Lobo da Estepe. Meu amigo era espírita, sua mãe médium e portanto avessa à amizade que me ligava ao filho, pois sabia das minhas “ideias perigosas”. Não é de estranhar o fato de o livro chegar às minhas mãos embrulhado em enfáticas credenciais espíritas. Fiquei tão desconfiado que aceitei o empréstimo apenas por amizade, pois o amigo a quem me refiro era então meu melhor amigo. Lidas as primeiras páginas, dei-me conta de que adentrara nas páginas da mais alta tradição romântica alemã. Talvez este juízo crítico seja anacrônico, mas tenho perfeita memória de que já conhecia várias fontes críticas e históricas da literatura alemã, notadamente Otto Maria Carpeaux, quando li  este romance de Hermann Hesse. O fato de o meu amigo e sua mãe o lerem praticamente como se fosse apenas uma obra espírita denota quanto são tortas e ambíguas as formas de recepção de uma obra literária, sobretudo quando, sendo de grande qualidade, como era o caso, é composta por camadas significativas que se superpõem, se mesclam, se entrelaçam. Por isso o leitor a lê ajustando-a a seus horizontes mentais, seu desejo e expectativas. O fato com frequência concorre para deformar significados objetivos aferíveis na obra. Na aba positiva da recepção, entretanto, a obra se renova, se enriquece, torna-se outra quando subordinada ao crivo singular do leitor. Desdobrando esta aba, nas mãos do grande leitor, aquele refinado por anos e anos de leitura inteligente, sensível e penetrante, a obra se amplia revelando sentidos alheios à própria consciência e intenção do autor. Em suma, o autor põe, o leitor dispõe e ao cabo do processo que enlaça autor-obra-público a obra, o termo médio desta trindade, muitas vezes se transfigura no trânsito do primeiro para o último fator constitutivo da realidade ontológica da obra compreendida no sentido que lhe confere a sociologia da arte.

Não resisto à tentação de retomar a anedota relativa a meu amigo espírita e sua mãe porque seu desfecho é de uma ironia dolorosa. Zelosa de proteger o filho da má influência de um amigo ateu, às voltas com ideias de esquerda, ela tudo fez para nos afastar, sem contar a hostilidade comprimida com que me acolhia nas poucas vezes em que visitei sua casa ou precisei me relacionar com ela. Anos mais tarde soube da desintegração moral da família, que deve ter sido torturante para uma mulher já velha e inteiriçada na sua concepção intransigente do espiritismo. O filho mais velho tornou-se gay e foi morar com outro homem, o que para ela foi com certeza um golpe terrível; a filha adotiva engravidou envolvida numa relação amorosa ilícita. Por fim, meu amigo foi demitido da justiça federal devido a crimes de corrupção e morreu vítima de alcoolismo. Não tive qualquer tipo de participação nessa história tão infeliz. Relato apenas o que me foi transmitido por amigos comuns, gente ligada a esse círculo de relação do qual me afastei poucos anos depois da minha primeira leitura de O Lobo da Estepe, quando decidi separar-me da minha família para viver meu próprio bildungsroman, se é que posso forçar a tal ponto a história que vivi comparando-a à história bem mais exemplar dos protagonistas dos romances de formação.

Prisioneira das suas convicções intolerantes e também cômodas, já que a isentavam de duvidar, de interpelar eticamente sua vida, a mãe do meu amigo jamais conceberia a ideia de que a literatura possa desempenhar na vida das pessoas uma função formadora, servir como fonte inspiradora de uma ética humanista. Como acima observei, não tenho dúvida de que os livros, aqueles que verdadeiramente me formaram e portanto são os únicos que importam, foram meus agentes civilizadores, os modelos éticos incogitáveis no mundo em que vivi. Nessa fase de minha vida, temi muitas vezes sucumbir à adversidade: desintegração ética e econômica da minha família, os riscos e temores paranóicos decorrentes da atmosfera dos “anos de chumbo” impostos pela ditadura militar, doença grave e antes de tudo a pura e simples necessidade de sobrevivência material. Via meu pai envelhecendo, completamente falido em termos econômicos e morais, afundado na sua impotência, e via muito mais, a começar pelo ambiente imediato da família, que me era doloroso suportar.

Nas horas de solidão e desamparo, não me lembro de quantas vezes fui animado pelos livros. Quando sobreveio minha doença cardíaca, decorrente de uma febre reumática que emitiu sinais de alarme várias vezes ao longo da minha juventude sem que ninguém, sem que nenhum médico desconfiasse da bomba sendo montada no meu organismo, senti-me tão desamparado que tive um acesso de histeria no momento em que repus os pés na casa da minha família. Chorei feito bezerro desmamado, um choro que era sintoma aberrante de orgulho ferido, medo, desamparo. Jurara a mim próprio nunca mais voltar, pois acima de tudo jurara a mim próprio fazer de mim um homem capaz de suportar sozinho o peso da vida. Voltei por não ter onde cair morto, como diz a voz popular. Estava desempregado, sem um vintém no bolso, removendo meus cacos de um apartamento às bordas do Hospital das Clínicas na Cidade Universidade sem ter para onde ir, quando comecei a afundar na doença que mudaria minha vida durante os  próximos quatro anos.

Fui literalmente salvo por Rejane, minha namorada, e sua família, que com uma generosidade impagável acolheram-me na sua casa no Bairro Novo, Olinda. Fui também salvo por  Ednaldo Batista, professor de medicina da UPE (Universidade de Pernambuco) e médico-chefe do plantão do Hospital da Restauração. Quem me levou a ele foi Lilian, irmã mais velha de Rejane, então cursando o último semestre  de medicina e estagiária do hospital. Como noutras vezes aconteceu, fui salvo pela bondade dos estranhos. Quando vi o filme Uma rua chamada pecado (A streetcar named desire) baseado na peça de Tennessee Williams, e ouvi esta frase: the kindness of strangers, dita pela protagonista Blanche de Bois (Vivien Leigh), compreendi muito bem o que queria dizer. A frase está impregnada da minha vivência, que mais tarde ganhou maior peso significativo quando li a biografia do próprio autor, Tennessee Williams.

Em alguns momentos dramáticos de minha vida, quando olhei à minha volta e desamparado me dei conta de que tudo me faltava, o acaso providencial entregou-me às mãos salvadoras da bondade dos estranhos. Esta forma de bondade é a que mais me desconcerta e me leva a corrigir minha visão negativa do ser humano por ser por definição desinteressada ou gratuita. O estranho não sabe quem sou, nada espera de mim, nada me pede de volta. Sua bondade, por conseguinte, é totalmente isenta de cálculo ou interesse. Ednaldo nunca quis nada de mim, nada que pudesse lhe dar de volta como instrumento de troca ou comércio de relações. É um homem tão bom, tão desprendido no exercício de sua humanidade desinteressada que, anos mais tarde, quando eu era já professor da Universidade Federal de Pernambuco, e portanto tinha condições de lhe pagar uma consulta, ele se recusava a receber meu cheque (juro que era cheque com fundos). Misantropos leitores da misantropia de Cioran, acreditem na experiência de um “misantropo teórico”: existe, sim, a bondade humana, transparente e desinteressada como a crucifixão histórica ou mítica (provavelmente esta, ainda que decorrente daquela) de Jesus Cristo.