Ivanildo Sampaio

Detalhe de máquina de datilografia.

Li, dia desses, num site de menor importância, uma nota pequena e perdida que falava de Adolfo Bloch, um judeu ucraniano que chegou ainda garoto no Brasil e que fundou e dirigiu uma das maiores editoras de revistas da América Latina, responsável por títulos como Manchete, Fatos & Fotos, Pais e Filhos, Ele e Ela, Amiga, Tendência e tantas outras. Descendente de uma família de gráficos, obrigada a deixar a cidade de Jitomir, na Ucrânia,para fugir dos constantes pogroms que infelicitavam a vida de todos os judeus, a família de Adolfo chegou no Rio de Janeiro em 1922 – e, segundo ele, tinha como único patrimônio um velho pilão, onde se manipulava a  parca comida a que cada membro tinha direito, naqueles dias de fome, de incertezas, de quase miséria.

Trabalhei na Bloch por mais de cinco anos e tive com “seu” Adolfo muito poucos encontros: a relação dos repórteres com a cúpula da empresa se dava muito mais através dos diretores corporativos, principalmente Arnaldo Niskier e Murilo Melo Filho. Quando havia algum impasse, se recorria à arbitragem de Pedro Jack Kapeller, o “Jaquito”, diretor-superintendente, sobrinho de Adolfo e o terceiro homem na escala de mando do Sistema, logo abaixo de Oscar Bloch, o vice-presidente, também sobrinho de Adolfo, mas que não tinha dele a menor simpatia. Oscar era vice-presidente porque era o segundo maior acionista, e pronto. Mas, como eu disse, tive poucos encontros com Adolfo, e não me sentia bem quando alguns colegas, com a irreverência de todo repórter, caiam de pau em cima dele, pois  por “seu” Adolfo – sempre  fui  carinhosamente atendido,  nos poucos  pleitos que lhe coloquei.

Um deles mostra bem o lado humano de “seu” Adolfo, “queimado” pelas células do “Partidão” que dominavam as redações dos jornais do Rio de Janeiro, naqueles tempos negros da ditadura, embora na própria Manchete trabalhassem vários militantes da esquerda mais radical.  Pois bem, numa época de comunicações precárias recebi, numa segunda-feira de manhã, na Redação darevista, no Rio, uma mensagem enviada pelo teletipo da Sucursal do Recife, dando conta de que minha mãe havia sido hospitalizada em regime de urgência, num hospital de Campina Grande, o quadro era grave e a família esperava urgente a minha presença. Não havia o sistema DDD de telefonia, uma ligação interurbana demorava horas para ser completada, o telex era o que havia de mais moderno para comunicação à distância. Fiquei desesperado.

No final dos anos 60, a Bloch já tinha instalado no subúrbio de Parada de Lucas, zona Norte do Rio, o seu gigantesco parque industrial, com rotativas imprimindo revistas em quatro cores com padrão igual ao das melhores publicações do mundo. A gestão da empresa, no entanto, se dividia por duas sedes: parte na Rua Frei Caneca, onde tudo começou a partir de uma pequena gráfica que, segundo a lenda, imprimia talões para os grandes bicheiros cariocas; outra parte na Praia do Flamengo, num majestoso edifício de 10 andares projetado por Oscar Niemayer – onde estavam as redações de todas as revistas, além dos gabinetes da alta direção. Adolfo Bloch, às segundas-feiras, costumava iniciar seu expediente despachando ainda nas velhas instalações da Frei Caneca, onde também ficavam o Departamento Jurídico e a controladoria da empresa.

De posse do telex, tomei um carro da reportagem e corri para a Frei Caneca. Encontrei “seu” Adolfo no corredor do acanhado prédio e disse que precisava falar com ele urgente. “Quem é você?” – ele perguntou. “Sou seu repórter”, respondi – “vim transferido do Recife tem uns três meses. Passei a semana em Santos, fazendo uma reportagem sobre o futuro das Docas. Hoje de manhã, quando cheguei na Redação, encontrei essa mensagem”. E mostrei para ele o telex enviado pela Sucursal.

Adolfo me mandou entrar no seu gabinete, perguntou o que eu queria e o que pretendia fazer. Disse a que tinha dois períodos de férias vencidos e não gozados; que queria receber um deles em dinheiro – e também precisava de uma passagem aérea Rio-Recife-Rio, com a data de regresso em aberto. Diante da nebulosa informação sobre o estado de saúde da minha mãe, era impossível prever meu regresso.

Adolfo Bloch mandou que chamasse à sua sala o chefe do Departamento de Pessoal, que imediatamente liberasse o período de férias solicitado e que, no lugar de uma passagem aérea de ida e volta Rio-Recife-Rio, me fossem liberadas duas passagens, uma delas emitida no nome da minha mãe: “Você vai trazer a sua santa mãe para o Rio, aqui tem médicos muito melhores do que no Recife, ela chegando aqui a gente cuida dela”. Agradeci comovido e saí de sua sala, mas pedi do departamento responsável que emitisse apenas a passagem no meu nome – era uma maluquice aquilo que “seu” Adolfo havia proposto.

Daí porque, como eu disse lá em cima, não me sentia bem quando, nas rodadas de chopp que aconteciam entre os repórteres nos fins de semana, alguém iniciava mais um capítulo para falar mal “dos Bloch”. Com Oscar e Jaquito, se eu não engrossava o coro, também não os defendia. Mas, com “seu” Adolfo, era diferente, na minha frente, não.

Tempos depois deixei a empresa, onde fiz amizades que sobreviveram ao fim de todas as revistas – e quando, no Rio de Janeiro, revejo, na Praia do Flamengo,  os dois prédios espelhados criados por Niemayer e olhando para o azul da Baía da Guanabara, não dá para esquecer que a Manchete era uma redação onde se abrigavam talentos de todas as cores, credos e naturalidades – uma grande caravela que carregava, naqueles anos de chumbo, umas dezenas de insensatos que pretendiam mudar os destinos do mundo.