O Brasil é país do improvável. A Revolução de 1930, feita por tenentes, para acabar com oligarquias, virou ditadura. Chefiada por um político civil, Getúlio Vargas. Até 1945.

A redemocratização de 1945 foi propiciada pela vitória dos países aliados contra os nazistas. O regime democrático durou dezenove anos, até 1964. Interrompido pelo golpe militar. Que implantou uma ditadura. Desfechada por generais insatisfeitos com o legado Getulista. Alimentado pela esquerda. Trevas que duraram vinte e um anos. Até 1985.

O estágio atual da democracia, no Brasil, dura desde 1985. Escapou de um golpe de Estado este ano, 2023. Celebra, portanto, trinta e oito anos de existência civil. Como o país conseguiu escapulir do golpe este ano?

Por três razões:

Uma, não existiu, agora, como em 1930 e em 1964, lideranças militares que comandassem o movimento golpista;

Duas, não existiu, agora, como ocorreu nas duas vezes anteriores, apoio popular maciço que desse suporte da sociedade ao golpismo;

Três, existe, agora, uma institucionalidade jurídica, fundamentada pela maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF e do Tribunal Superior Eleitoral – TSE, que sustentou a fronteira legal contra as investidas do ex-presidente Bolsonaro.

Quer dizer, criou-se, em 2023, uma circunstância política benigna à democracia. Tal circunstância produziu, ao mesmo tempo, ausência de liderança militar golpista, presença de suporte civil ao regime democrático e forte institucionalidade jurídica no STF e no TSE, em favor da democracia vigente. A nação amadureceu. Encerrou o crepúsculo de falsos profetas. E renasceu na alvorada de encontro consigo mesma.

 1 Do sonho de derrubar oligarquias (1891–1930) ao pesadelo da ditadura do Estado Novo (1937-45).

A República Velha desenrolou-se de 1891, com a proclamação republicana, a 1930, com o movimento tenentista. A inspiração dos revolucionários de 30 foi a existência de um consenso social: a necessidade urgente de modernizar politicamente o país.

Na prática, significava o seguinte: de um lado, reduzir a influência das oligarquias estaduais, que eternizavam o atraso. E dificultavam o avanço de ideias modernas. De outro lado, eliminar o voto de bico de pena, que ocultava a prática de corrupção eleitoral mediante alteração de boletins da eleição. Por asseclas de coronéis políticos do interior.

Em 1932, São Paulo ergueu-se contra Vargas por uma Constituição. Em 1934, Vargas foi eleito, pelo Congresso Nacional, nos termos da Constituição reclamada pelos paulistas. Em 1937, Vargas decretou o Estado Novo, nome da ditadura que aboliu o federalismo, inibiu a liberdade de imprensa, acobertou violência política. E patrocinou a incineração das bandeiras dos estados. O Estado Novo finda, em 1945, com a vitória dos aliados e a derrota do nazifascismo.

Vargas tinha o apoio do Exército nas pessoas de dois generais: Gois Monteiro, ministro da Guerra, e Eurico Dutra, sucessor de Vargas, na presidência. Ambos com respaldo interno na força armada.

2 Do fim trágico de Vargas (1950 – 54) ao otimismo pessedista de JK (1955-59).

O que faltou a Vargas sobrou em JK: apoio das classes médias, sensibilizadas com a indústria automobilística. E otimismo gerencial, na construção da capital mais moderna do mundo.

E o que sobrou em Vargas faltou a JK: suporte dos militares. A oposição a JK era comandada por Carlos Lacerda. Que tinha aliança com oficiais da Aeronáutica. E sonhavam com o golpe contra Juscelino. Que enfrentou, com êxito, duas revoltas promovidas por oficiais da Aeronáutica: a de Jacareacanga, em fevereiro de 1956, na Amazônia. Derrotada e com perdão para os revoltosos. E a de Aragarças, em dezembro de 1959, em Goiás. Igualmente derrotada pelo governo JK. E também perdoados os sublevados.

O apoio militar a JK foi principalmente do general Henrique Dufles Teixeira Lott, líder inconteste do Exército. E contava com a simpatia dos generais de reconhecida liderança, antigetulistas, Osvaldo Cordeiro de Farias e Juarez Távora.

 3 Da turbulência dos anos 60 (1961 e 1964) à nova redemocratização (1985).

Os tenentes dos anos 30 transformaram-se nos generais dos anos 60. Antigetulistas, anti trabalhistas, nacionalistas. Engoliram Jango Goulart em 1961. Sob a forma da pílula parlamentarista. Afinal, expelida em 1964.

Jango foi um presidente sem nenhum suporte militar. O Exército reconheceu nele rala qualidade de chefe de Estado. Mas, não, de chefe de governo. O golpe de 1964 foi o desague natural de insatisfação dos militares. Que vinha desde 1954 e 1961.

Os generais, na grande maioria, estavam unidos por um nacionalismo de feição Nasserista. E estavam emulados por anti esquerdismo que formava arco de Norte da Sul, de Miguel Arraes a Leonel Brizola. Não terá sido difícil dar o golpe. Difícil foi governar a complexidade chamada Brasil. De 1964 a 1985. Por vinte e um anos. E, mais difícil ainda, desembarcar do poder.

Quem foram os vencedores de 1964? Primeiro, os militares, antigos tenentes de 30, tornados generais em 64. Em segundo lugar, a extrema direita ligada à UDN de Carlos Lacerda. E a grupos econômicos e políticos (IBAD) relacionados ao governo dos Estados Unidos.

A saída da ditadura de 64 foi negociada pelos civis com os militares. Do lado civil, um combativo deputado, Ulisses Guimarães. E um hábil negociador, Tancredo Neves. Do lado militar, um estrategista, geopolítico, general Golbery do Couto e Silva. E um operador de campo, severo, realista, então presidente, Ernesto Geisel.

A fórmula engendrada pelos militares foi a de uma distensão segura, lenta e gradual. Desenvolvida nos mandatos de Geisel (1975-79) e de João Figueiredo (1979-1985). Segura, para os padrões da política do Exército. Lenta, de modo que os militares tivessem sempre o domínio dos fatores que influíam sobre a política. E gradual, porque modulada segundo o mapa de limites e possibilidades definido pelo Alto Comando. Diga-se, Geisel.

 

4 Faltaram líderes militares para dar o golpe (2023).

Lula não venceu a eleição de 2022. Bolsonaro a perdeu. Quem o disse, de outro modo, foi o senador Ciro Nogueira. E perdeu porque patrocinou muitas perdas aos brasileiros. O político que gera perdas, perde eleição. O político que gera ganhos, ganha eleição.

Na perspectiva do Exército, Bolsonaro foi pix sem fundo. Ninguém conhece melhor o ex-presidente do que a força armada. Por isso, faltaram, em 2023, os generais que compareceram em 1964.

Por outro lado, esteve presente, no triênio 2021-22-23, a institucionalidade judicial. Para corrigir os excessos ilegais do Executivo. E garantir o cumprimento da Constituição federal. Ou seja, os generais não professaram o discurso vão do golpe. E os juízes foram fiéis à Lei e à democracia. Dando ao art. 142 da Constituição a interpretação legítima que o legislador lhe atribuiu.

No Brasil, Poder Moderador é a Constituição federal.