Helga Hoffmann

Sábado que passou houve muita comemoração na Turquia, para marcar o primeiro aniversário do fracassado golpe militar de 15 de julho. O presidente Recep Tayyip Erdogan voou de helicóptero entre Ancara e Istambul para reviver momentos do golpe. Em Istambul falou à multidão com bandeiras turcas e retratos de Erdogan na ponte sobre o Bósforo, que fora tomada em 15 de julho de 2016. A ponte agora se chama “dos mártires de 15 de julho”. Chegou acompanhado das famílias das vítimas, para os quais inaugurou um monumento “dos mártires de 15 de julho”, e prometeu “arrancar a cabeça desses traidores”, os golpistas, e obter do Parlamento o restabelecimento da pena de morte.[1] Atacou a oposição, a mídia internacional, as potências estrangeiras em tom religioso: “Eles não tiveram misericórdia quando apontaram suas armas para meu povo. O que meu povo tinha? Tinha suas bandeiras – como hoje – e tinha algo muito mais importante, tinha sua fé.”

Em Ancara, diante do Parlamento reviveu-se, com efeitos especiais de luz e som, o momento em que este fora bombardeado, há um ano: os projetores se apagaram enquanto se iluminava a fachada, Erdogan ao centro, e se ouvia o ronco de um caça F16 e o estrondo de uma bomba. Como em Istambul, quem ligava o celular ouvia uma mensagem gravada do Presidente Erdogan implorando “a compaixão de Deus para nossos mártires”, a recordar que na noite do golpe ele fizera um apelo à nação por meio de um aplicativo do iPhone. Depois de meia noite as mesquitas chamaram às preces, para lembrar como nessa hora na noite do golpe haviam conclamado a população a tomar as ruas em defesa do governo.

Exagero? Em 15 de julho do ano passado um grupo de soldados tentou um golpe de estado com tanques, aviões caça e helicópteros. Erdogan, em férias com a família em um balneário em Marmaris, foi levado em helicóptero por militares fieis do Exército até o aeroporto Atatürk de Istambul, que estava cercado pelos golpistas. Conseguiu pousar no escuro, pouco depois de meia noite, e consta que usou o celular da repórter da CNN-Türk para se dirigir televisivo à população. Por ordem sua, um chamado à prece foi feito dos milhares de minaretes pouco depois de uma da manhã. Multidões atenderam ao apelo da madrugada do domingo e tomaram as ruas nas maiores cidades do país para enfrentar o golpe. Duzentos e quarenta e nove pessoas morreram nessa noite. Muitas das vítimas morreram na ponte sobre o Bósforo, que os golpistas haviam bloqueado e de onde abriram fogo sobre os civis desarmados que haviam atendido ao chamado do Presidente Erdogan e das mesquitas.

Em poucas horas estava vencido o motim dos soldados. A reação fora mais ampla que apenas a de turcos religiosos: todos os partidos, ONGs, jornais e comentaristas se manifestaram contra o golpe ainda enquanto ele se desenrolava.

Pouco depois de sobreviver à tentativa de golpe, Erdogan agradeceu esse “presente de Deus” que inauguraria uma “nova Turquia”. Desde o inicio as autoridades turcas atribuíram o golpe fracassado a Fethullah Gülen, um clérigo que vive nos Estados Unidos, no estado da Pensilvânia, e lidera o movimento “Hizmet” (serviço, em turco), uma rede mundial de escolas e instituições assistenciais. Os “gulenistas”, que se apresentam como muçulmanos moderados, são vistos na Turquia como uma organização subversiva apoiada por governos ocidentais com o objetivo de infiltrar o estado turco, ou ao menos é assim que Erdogan e seus aliados os retratam. Gülen não só nega qualquer participação no fracassado golpe como o chamou de “putsh abjeto”, e os Estados Unidos alegam falta de evidência para justificar sua extradição, conforme pede o governo turco.

A exaltada linguagem louvando “a epopeia de 15 de julho” contra “os inimigos da democracia e do povo turcos” e o esforço dedicado a garantir a presença de multidões na comemoração (incluído transporte público gratuito, estandes de bebida e comida de graça, e indução para o funcionalismo público) servem ao objetivo de canalizar mais poder para a Presidência. Como escreveu a jornalista Hala Kodmani, em Libération, o exagero da comemoração só é comparável à amplitude da repressão. Na véspera do aniversário houve mais uma leva de expurgos e prisões, sob a alegação de que, para proteger a democracia que o povo defendeu contra o golpe, é preciso retirar gulenistas de posições de influência na administração. Um decreto publicado nos termos do estado de emergência que prevalece há um ano (agora prorrogado) demitiu mais de sete mil policiais, soldados e funcionários dos ministérios, conforme anunciou a imprensa oficial. Dentre eles, 302 acadêmicos das universidades. Além disso, foi retirada a patente de 342 militares aposentados. Neste ano, desde o golpe fracassado, já foram presas 50 mil pessoas e mais de 100 mil demitidas. No Judiciário assoberbado de ações e pressionado pelo Executivo para instalar fieis a Erdogan, mais de 5 mil magistrados foram destituídos (segundo um advogado que participava da recente “Marcha por Justiça” do Partido Popular Republicano CHP). O exército turco, o segundo maior da OTAN, foi enfraquecido pela destituição de 150 generais, antes do último decreto.

As medidas para silenciar a imprensa são ainda mais graves, pois levam a que tudo o mais fique oculto ou apareça apenas como narrativa de Erdogan e seu Partido Justiça e Desenvolvimento AKP. Pelo menos 150 jornalistas foram presos no último ano, e mais de 120 permanecem presos, sem contar os demitidos por um simples telefonema da Presidência (como foi o caso da colunista Ece Temelkuran, demitida do jornal Milliyet após criticar o governo turco)[2]. As fontes também podem parar na cadeia: um mês antes das comemorações um deputado do CHP, o maior partido de oposição, Enis Berberoglu, foi condenado a 25 anos de prisão por entregar a um jornal um vídeo do fornecimento ilegal de armas a grupos islamistas sírios pela Turquia. O Partido Popular Democrático (HDP), pró-curdo, o terceiro maior no Parlamento, é o partido com mais vítimas: seu presidente Selahattin Demirtas, 11 de seus deputados, uma centena de prefeitos de cidades curdas e milhares de seus membros estão presos, sob a acusação de terrorismo.

Apesar de estimativas de diplomatas europeus de que um milhão de pessoas podem estar direta ou indiretamente afetadas pelos expurgos, por perda de renda, de domicílio e perda de proteção para si e família, o governo Erdogan não tem sofrido maiores restrições de outros governos. Os europeus tentam evitar o desmantelamento do acordo com a Turquia que reduziu a entrada de refugiados na União Europeia, sobretudo os que chegavam em barcos precários a cruzar o Mar Egeu. Por esse acordo, em vigor desde março de 2016, a União Europeia pode mandar de volta para a Turquia os migrantes que chegam ilegalmente nas ilhas gregas, em troca de redução das exigências nos vistos para os nacionais turcos e ajuda financeira. Por outro lado, uma escalada do conflito político com a União Europeia pesaria sobre a economia turca. A economia turca, que já teve um boom na primeira década do século, está estagnada, a inflação em dois dígitos, a taxa de desemprego em 12,7%, e a lira turca perdendo valor. A União Europeia, em particular a Alemanha, é o principal parceiro comercial, para onde vão 45% das exportações e de onde vêm 40% das importações.

Os americanos são igualmente cuidadosos com esse aliado na OTAN. Há anos tentam organizar operações conjuntas com a Turquia para combater o Estado Islâmico na Síria. As negociações se dão há três anos, com altos e baixos, e sempre foram complicadas: enquanto a Turquia procura impedir que curdos ganhem força na Síria, por temer uma união entre o partido YPG (Unidades de Proteção do Povo Curdo) da Síria e o PKK da Turquia, os Estados Unidos sempre buscaram maneiras de colaborar com a oposição curda na Síria, inclusive o YPG, que tem os grupos mais bem treinados e organizados e com melhor rede de apoio internacional. Além disso, há a preocupação de evitar que se reforce ainda mais e se consolide a nova aliança entre a Turquia e a Rússia no combate ao EI na Síria e nas várias tentativas de obter um cessar-fogo. E assim a diplomacia americana estava esperando o referendo turco de abril deste ano, pois, passada a campanha, Erdogan teria menos incentivo para explorar sentimentos nacionalistas contra os Estados Unidos.

Mais recentemente organizações de direitos humanos e alguns políticos europeus, inclusive Carl Bildt, ex-primeiro ministro da Suécia, se mobilizaram contra a prisão, dia 5 de julho, de 10 ativistas que participavam de uma sessão de treinamento em segurança digital. Entre os presos, o diretor do ramo turco da Anistia Internacional, Idil Eser, e dois técnicos estrangeiros. Um mês antes havia sido preso outro diretor turco de Anistia Internacional, Taner Kilic. A acusação é de terrorismo. A promessa era de que esses ativistas de direitos humanos seriam soltos dia 11 de julho, mas o governo estendeu a detenção por mais uma semana.

O Presidente Erdogan, com a narrativa que criou para o golpe frustrado, justifica o aumento da repressão e reforça o seu próprio poder e o do seu partido AKP. Durante algumas semanas após a derrota da tentativa de golpe celebrou-se a unidade dos turcos contra o golpe militar. Foi como se momentaneamente deixassem de ser lembrados todos os abusos contra o estado de direito que vêm sendo cometidos desde 2004 e se agravaram desde 2015, depois do afastamento do Primeiro Ministro Ahmet Davotoglu, pró-europeu. Tal unidade dissipou-se à medida que o governo ampliou a repressão e surgiram dúvidas sobre os verdadeiros responsáveis pelo golpe.

Quando o partido do governo, AKP, organizou o referendo para aumentar os poderes da presidência, em abril de 2017, os “erdoganistas” trataram de desmoralizar a oposição com acusações genéricas de que esta promovia os interesses das potências ocidentais ou se aliava a terroristas. A vitória muita apertada no referendo revelou um país dividido entre o apoio irrestrito a Erdogan e ao partido AKP e uma oposição que o governo trata de apresentar como ilegítima. A vitória sobre o golpe militar de 15 de julho e a interpretação que lhe dá o governo agravaram a divisão. Ninguém mais acredita que os expurgos e prisões estejam atingindo apenas supostos “gulenistas”. Os canais para expressar discordância tornaram-se tão limitados que o maior partido de oposição, o Partido Popular Republicano, CHP, organizou uma “Marcha por Justiça” entre Ancara e Istambul. A marcha de 430 km começou 15 de junho e foi aparentemente deflagrada pela prisão do deputado do CHP que entregou a um jornal o vídeo do fornecimento ilegal de armas. Nos 25 dias de estrada, a presença variou entre 5.000 e 20.000 pessoas, dependendo das localidades pelas quais passavam; uns 2 milhões se aglomeraram na chegada a Istambul. Até então esse partido CHP, predominantemente urbano e laico, limitara-se ao jogo parlamentar, e alguns de seus deputados inclusive votaram com o governo quando foram presos os deputados do partido pró-curdo HDP. Mas, como disse o presidente do CHP, Kemal Kiliçdaroglu, quando a marcha estava para entrar em Istambul, em 9 de julho: “Tivemos que fazer isso porque ficamos sem opções.”

 

 

[1] A pena de morte foi suspensa na Turquia em 2004, entre as iniciativas para entrar na União Europeia.

[2] Ece Temelkuran, Turkey: The Insane and the Melancholy. Zed Books, Londres 2016.  Essa colunista política e romancista mostra que as tendências autocráticas na Turquia têm raízes históricas longínquas, desde a queda do Império Otomano.