19.11.14
Por precaução, comprei mais um analgésico letal caso aquele dente volte estranhamente a incomodar. Por que digo estranhamente? Ora, porque não há qualquer vestígio de inchaço ou de inflamação na área. Trouxe também uma garrafa de vodka que, sendo amanhã dia de aula, não convém abrir hoje. Mas nunca se sabe o que pode acontecer na Rússia. Comprei também um litro de suco de cereja para cortar a bebida como eles fazem. Mas o melhor de tudo ainda não contei. Passei por uma loja de roupa masculina das imediações do metrô e adquiri de uma vendedora uzbequi duas calças e um pulôver. Foi uma compra de uns duzentos euros e exultei em achar artigos de meu tamanho e, ademais, com alguma qualidade. Só chegando ao calor do quarto do hotel percebi que a qualidade talvez seja excessiva. O que quero dizer com isso? Ora, é por se tratar de roupa feita para o frio ártico, ora essa. Em outras palavras, se usá-la em São Paulo, cozinha o saco e o que mais estiver nas adjacências. Terei os autênticos ovos moles da afamada sobremesa lusitana. Aliás, como os russos exageram no aquecimento dos cômodos, meu Deus. É até compreensível já que o gás não custa quase nada na terra da Gazprom. Mas a calefação central está insuportável. De nada valeu me queixar com veemência na recepção, o que vem se tornando um clássico de meu repertório no leste da Europa. A fulana me olhou como quem dizia: emagreça e vai melhorar. Voltando ao quarto disposto a abrir a trava da janela para refrescar o ambiente, lembrei do trinômio de sobrevivência dos tempos de Stálin: nunca acredite no que os outros dizem. Não demonstre medo e não aceite favores. E, é claro, é bom que tenha alguma sorte. Teria muito mais a contar, mas vou dormir enquanto a dor não vem.
20.11.14
Dormi razoavelmente bem, mas logo cedo encarei um café da manhã sem imaginação de arroz branco, verduras malcozidas, salsichas de aspecto temerário e uma espécie de fritada fofa de claras de ovos que a nada sabia. Estava espirrando bastante. Pudera, o ar do quarto estava condensado. Então voltei para a cama e dei um cochilo complementar. Ao acordar, vi que o arquivo esperado tinha chegado e remeti-o para Julia Adamantova. Mais tarde, trajei-me da forma mais elegante que podia e fui para a universidade que fica logo ao lado, ao cabo de dez minutos de marcha. No caminho, entrei num anexo para um chá reconfortante e foi a providência mais acertada que poderia ter tomado. Isso porque os salamaleques que me esperavam foram longos e extremamente ritualizados. E sempre prezo os momentos comigo mesmo, pois sem eles o dia está perdido. Efetivamente, cheguei à Escola de Negócios da Faculdade de Economia e logo me vi recepcionado por minha amiga Natalia Ekhtievna – que parece exercer um poder excepcional lá dentro na medida em que tem uma ala inteira dedicada às suas fotografias – e por Marina S., uma mulher de uns sessenta e muitos anos que deve ter sido uma das mais bonitas de sua geração. Basta, contudo, que faça um movimento e já se lhe vê o colo completamente enrugado. É da vida. Um amigo russo me disse certa vez que depois da Grande Guerra Patriótica – forma como eles denominam a Segunda Guerra Mundial -, os homens tiveram escolha tão farta de mulheres belas, já que tantos foram os soldados mortos, que isso teria depurado a raça. Ademais das miscigenações. Certo é que abordei minha temática com bastante graça, um inglês pausado e didático, e plena segurança numa metodologia que, posso dizer, é toda minha. Se a alguém puxei, embora sem o brilho do próprio, foi ao saudoso Rubem Franca que sabia fazer abordagens multidisciplinares sem perder o eixo. O que dou, de fato, é o que se pode esperar de uma boa aula. Os alunos dispensaram até a pausa que estava prevista – Julia me disse que isso foi inédito – e, ao final, falei por três horas consecutivas, tendo tido direito a uma dezena de perguntas a aos olhares sedutores de duas pérolas de beleza que, é claro, sempre agregam motivação ao cenário e ao palestrante provecto. Depois conversei com ambas e elas tinham idade para ser minhas filhas, apesar dos ares descaradamente libidinosos. Como é comum nessa geração, elas sempre deixam no ar uma certa propensão ao lesbianismo, na hipótese de estarem diante de um coroa dado a perversões a três. Já era tarde quando voltamos à sala de Natalia. Como acontece em boa parte do mundo, aqui também os ouvintes gostam de puxar o palestrante para uma conversa pós-conferência para afinar o discurso. Um deles, já maduro e com olhos injetados, disse que queria abrir uma distribuição de autopeças no Brasil. Outro, petulante e certamente egresso das forças armadas, veio pedir para lhe achar um parceiro para montar um grande abatedouro na região de Sverlovsk. Tinha U$ 100 milhões em espécie para investir na suinocultura. Uma pocilga bem razoável. Lembrei do ditado russo que fala de passar batom em porcos quando estes simulacros de oligarcas veem arrotar grandeza à custa de fundos ilícitos. Julia – que vai casar com um inglês e, pelo jeito, está mais interessada em Londres do que no pobre rapaz – me trouxe um monte de papel para assinar para efeitos do pagamento dos honorários. Quanto a Marina, esta me pediu para dar uma aula à turma de marketing internacional. Como recusar? Ela disse que os alunos adorariam. Os convites espoucaram depois da aula. Agora tenho outra palestra para dar na Universidade do Povo – pediram que fosse em castelhano – sobre o banco dos BRICS. Vejo que esse acrônimo pegou aqui com uma intensidade bem maior do que seria lícito esperar. Mas a solidariedade aqui é só uma vã retórica. E pensar que tudo isso tinha sido concebido para que as pessoas se amassem. O professor da Universidade do Povo com quem falei, Yuri Moseykin, está empolgado em ter um palestrante que represente uma das nacionalidades contidas no grupo. Tanto melhor. O entardecer na região do Leningradsky Prospekt estava lindo. A luz outonal era de rara beleza, mas Natalia me falou que essa é a época do fim dos sorrisos, terminado o “Verão das Avós” de setembro, quando as babushkas tiram uns dias de férias depois de fazer as compotas de frutas. À noite, efetivamente, caiu o que eles chamam de mokri sneg, a neve úmida que antecede o inverno. O humor melhora um pouco depois que a neve de verdade se impõe porque o branco total levanta o estado de espírito das pessoas. Enfim, russos são especialistas em transformar a vida numa aventura sem sentido. Hoje li que meio milhão de mortes por ano estão ligadas ao alcoolismo. Quando eles querem indicar que alguém bebe muito, dão um peteleco no pescoço. Da mesma forma que quando tocam os próprios ombros com as pontas dos dedos, estão se referindo a um militar de alta patente. De onde sei tanta bobagem? Já nem lembro onde as aprendi. No bar do hotel, uma coroa vestida de puta ficou me olhando. Spasiba, disse eu. Como já li de um autor local, queijo de graça, só na ratoeira.
21.11.14
Hoje o dia foi fenomenal. Acordei cedo e fui para a Universidade de Finanças de Moscou, onde funcionou durante boa parte de seus 95 anos de existência o Instituto de Ciências Sociais do qual é egresso, entre tantos outros, Mikhail Gorbatchov, meu estadista favorito por um certo tempo. Que, por sinal, tem escritório a duas estações de metrô daqui e ainda goza de saúde razoável, além de ter restaurado na Rússia um pouco do prestígio pessoal de que goza no mundo. Mas a maioria o condena sob a alegação de que ninguém come liberdade. Liberdade sem pão, nada vale. Enfim, os auditórios, os anfiteatros, o restaurante, as passarelas e a estrutura de poder, tudo tem um delicioso ar retrô como não se vê sequer em Budapeste ou na velha Berlim Oriental. É claro que estando em sua casa, as referências que ouvi sobre Mikhail Sergueivich foram bastante lisonjeiras, e até o reitor Alexander Ilyinsky, na audiência que me concedeu depois de me dar a maçada regimental dos poderosos, disse que talvez o Brasil esteja precisando de uma perestroika. Engraçado que eles nada falam a respeito de Putin e das próprias necessidades internas de transparência e clareza. Aqui ainda dá cadeia, é tabu. Tudo isso se deu pelas mãos operosas de Marina S. Na verdade, tenho um histórico com loiras dez anos mais velhas, que tiveram um filho homem precocemente, que têm hoje dois netos e gostam de um gole de destilado lá pelas tantas. Falo das esbeltas, comedidas com o que comem e que se cuidam com esmero, apesar de vorazes e sem limites em outros domínios. Pelo menos é o que imagino. Ademais, elas sabem distinguir um homem de uma imitação metrossexual a léguas de distância, e isso, quero crer, conta um pouco em meu favor. Quando me deparo com alguma mulher dessa referência, sinto a descarga de adrenalina e, aparentemente, ela também. Marina está naquele momento de compasso de espera, perscrutando os horizontes para ver como é que encara a penúltima pernada da vida antes de se esgueirar pelas escadarias do metrô com uma sacola com duas ameixas e uma maçã. É como um velho caranguejo do Ártico que tenta sobreviver à correnteza e aos predadores. Até por isso, gostei dela. Os alunos são engraçados. Ficam de pé quando o professor entra na sala, e só sentam a um comando nosso. Entre as aulas, ela fez um lobby pessoal e institucional acirrado. Levou-me também para tomar um café com um jovem enfatiotado chamado Vladimir Tarabrin – diretor do Departamento de Cooperação Internacional – e juntos redesenhamos o mundo. Estou agora oficialmente encarregado de buscar parcerias internacionais para a prestigiosa escola moscovita e só isso seria motivo bastante para dizer que ganhei o dia, independentemente das evasivas do dito rapaz em dizer que os orçamentos já estão fechados, mas que oportunamente me apresentaria uma proposta financeira. Depois fui ao mercado fazer compras de ovas de salmão, arenque defumado e tangerinas. É sempre bom ficar um pouco só. À noite, o programa social recomeçou. Mas isso não é mais assunto para hoje.
22.11.14
A noite de ontem foi bastante surpreendente. Olga K. passou no hotel e fomos comer alguma coisa no bom restaurante do Azerbadjão aqui do lado do hotel Sokol. A conversa foi muito agradável, apesar das patriotadas que incluem uma explicação sobre os dez tipos de salmão de Kamchatka, a grandeza do lago Baikal e sua profusão de água potável de inigualável pureza. Depois tomamos conhaque do Daguestão e brindamos ao futuro de nossa amizade, à paz mundial e às relações entre nossos países. Na saída, achei deselegante abandoná-la na porta do hotel, sabendo que ela iria atravessar o parque escuro para chegar à sua casa. Resolvi então acompanhá-la até o endereço da Leningradsky Prospekt. Ela então me contou que morou a infância toda na região e herdou o lindo apartamento da família por inestimáveis serviços prestados à pátria. No mesmo prédio onde residiam aeronautas, viveram os inventores do Ilyushin, do Antonov e do Tupolev. O maior amigo de seu pai fora Yuri Gagarin, a quem ela chamava de tio. Fiquei maravilhado com a notícia e, depois que ela sumiu na passarela, fiquei um bom tempo contemplando o edifício do outro lado da rua, e pensando na maneira toda única que eles conceberam uma meritocracia. Não posso negar que fiquei emocionado em ter conhecido uma mulher tão próxima do homem que disse: ” A Terra é azul”. Em suma, acabei muito bem o dia.
23.11.14
Hoje, logo cedo, fui de metrô até a última estação da linha vermelha que é a Yugo-Zapadnaia. Lá ainda peguei um micro-ônibus para então chegar à porta da lendária Universidade da Amizade dos Povos, umas cinco paradas depois. Não deixa de ser um momento épico atravessar aquele imenso recuo que eles têm e adentrar o saguão para dar uma aula. Fui recebido calorosamente por Yuri Moseykin, um professor simpático, homem bonito, fluente em castelhano e que nasceu em Kamchatka. Tomamos um trago de conhaque armênio Ararat para aquecer e conversamos sobre o momento político e econômico de nossos países e dos BRICS – tema de minha palestra à garotada da graduação. Continua me comovendo a prática dos alunos locais de se levantarem quando o professor entra na sala. Não vejo isso acontecer no Brasil nem em sonho. A aula foi em castelhano e eles aplaudiram febrilmente. Alguma coisa boa ficou, imagino. Depois voltamos para a sala de Yuri, ele trabalhou um pouco enquanto eu folheava uns livros e saímos para o almoço na região da universidade. De lá já peguei o metrô, baldeei em Teatraksnaia e uma vez acomodado no trem que me traria até Sokol, dei uma cochilada fatal e perdi a parada. Tive que voltar do terminal. Chegando ao hotel, dei um cochilo de uma hora para tentar me restabelecer já que Marina tinha feito reserva no luminoso restaurante Pavillion para as oito da noite. Ela chegou belíssima e tão elegante quanto a czarina em lindo casaco mink. Como é de praxe, pediu segredo sobre nosso encontro social junto às colegas da universidade. Seja como for, tudo foi perfeito. Saltamos na praça Maiakovskaya – minha estação de metrô favorita – e descemos de braços entrelaçados rumo ao Patriasha Prudy, o Lago dos Patriarcas. Marina me mostrou a casa de Bulgakov e me recomendou enfaticamente ler “O mestre e Margarita“. Depois chegamos à praça onde pontificava o laguinho onde Tolstói ambientou a patinação no gelo de Anna Karenina. Lá no fundo, iluminado, estava o restaurante. É dessas visões que nos enchem de amor inexplicável por esse país visguento. Venho aqui há quase 30 anos, já vi calamidades, mas nunca cheguei à Rússia sem sentir um frisson especial. Comemos bem, adorei os peixes defumados. “Peixes gostam de água”, disse ela. E pedimos mais vodka para que eles nadassem dentro de nós. Na volta, ainda paramos de bar em bar, conversamos com os estudantes que vagavam pelas ruas. Ainda conseguimos pegar o último trem. Marina me contou da vida e o fez à moda russa: um monte de verdade para esconder duas mentiras fundamentais. As histórias nunca fecham, mas é bom saber se fazer de desentendido. A certa altura, eu fui direto ao ponto: seu dilema, minha cara, é o mesmo meu. A gente sabe que as opções que fizer dentro dos próximos dois anos terão um impacto definitivo nas nossas vidas nos próximos vinte, que é o que nos resta de pista, oxalá. Daí sermos tão experimentais, tão evasivos, tão nostálgicos e curtirmos tanto uma boa conversa. Ela aquiesceu imediatamente e sorriu com cumplicidade. Disse que deveríamos ter nos conhecidos há vinte anos. Saltamos na mesma estação. A caminho do hotel, sentei no banco do parque e fiquei imaginando quantos homenzarrões já não tinham caído ali bêbados e, soterrados pela neve, só foram encontrados no degelo da primavera. Os russos chamam-nos de “fura-neve”. Vou tentar dormir, mas não será fácil. De qualquer maneira, tenho uma garrafa de vodka colada à janela para absorver a temperatura externa. Na Rússia, nunca se sabe.
Prezado João,
Sei que a boa norma manda que sejamos parcimoniosos, para não dizer avaros, com os cumprimentos cruzados entre colaboradores. Mais inadequados ainda ficam eles quando um escriba se dirige ao Conselho Editorial, nosso Politburo para ficarmos no tema, para lavrar agradecimentos candentes sobre isso ou aquilo. Mas como sou péssimo em cumprir regulamentos – e bote péssimo nisso -, aqui vai meu obrigado pela linda ilustração que encabeça esses meus pobres diários outonais. A folhagem amarelada e o perfil dos templos dá ao texto o que lhe ficou faltando em sobriedade e poesia.
Abraço,
Fernando
Que linda a ilustração que João Rego escolheu! (Escrevi isso antes de ver o elogio do Fernando Dourado à imagem perfeita.) Em texto literário não cabe discutir as ideias no mínimo duvidosas do viajante sobre BRICS ou Gorbatchov. O autor está desenvolvendo um estilo próprio de relato de viagem tão pessoal e peculiar que desconfio que seria possível identificá-lo mesmo que apresentasse o texto sem assinatura. Há sempre uma mistura de fatos como relatados (transporte, restaurantes, comida, álcool, roupa, aparência física das pessoas, clima e temperatura, paisagem natural ou construída) com as considerações filosóficas, existenciais e psicológicas pouco convencionais que se revelam via diálogos do viajante com os mais variados personagens que vai encontrando, relacionados ou não com seu trabalho, ou via observações sobre si próprio quase como se fora um terceiro. É divertido de ler, pelas tiradas “pour épater les bourgeois”. E como nota cada detalhinho, sem perdão! Lembrei que, nas minhas andanças por Moscou na era soviética, um dos choques, para uma jovem que vinha visitar o paraíso comunista, foi ver a quantidade de bêbados pelas estações do metrô e cambaleando na rua, e choque ainda maior, ver como os moscovitas tratavam com consideração, quase carinho, os bêbados. Vejo agora que pelo menos isso não era culpa do comunismo. E se turmas de estudantes aplaudiram palestras em inglês e espanhol, o R está melhor que o B dos BRICS, ao menos no assunto educação.
Nota de rodapé: na 24ª linha de baixo p’ra cima, no dia 20.11.2014, não tinha que ser “vêm”? Eu também noto detalhe.
Helga,
Sem precisar ir até a vigésima-quarta linha de baixo para cima, eu apontaria de cara a sexta no mesmo vetor como prova de que o descaso formal resultou em “conhecidos” quando o certo teria sido dizer “nos conhecido”. Essa e outra derrapada vem ao encontro do que defendi em outro lugar: não se trata de texto literário, ficcional ou mesmo de crônica na acepção brasileira do termo. É diário mesmo, memorialismo puro ou reminiscência. Simplesmente peguei as páginas de meu diário digital, desbastei-as de elementos muito redundantes ou demasiado pessoais, e mandei para a redação onde elas encontraram o olho apurado de João Rego e sua costumeira acolhida.
Como disse por ocasião de um comentário a “From Russia with love” – com que inaugurei essa série -, minha imersão no diário se deveu em grande parte à sua alusão ao centenário da Revolução Russa. Indo contudo ao que interessa, devo dizer que seus comentários foram muito generosos. E olhe que não estou cumprindo meros rapapés protocolares. Pois a ser verdade o miolinho de suas considerações, posso dormir feliz nessa noite de ventos uivantes no Recife. Sobreviver a seu crivo está além do que eu podia esperar dessa transcrição. Só posso atribuir a benevolência ao fato de você ser uma ex-moradora de Moscou e, como tal, ainda estar sensível a tudo o que emane de lá.
Fernando, sua crônica, cheia de verve, como sempre, me fez lembrar minhas breves e modestas passagens por esse mundo: a primeira em 1962, ainda no tempo da URSS, como estudante, a segunda 50 anos depois, como turista, por conta de uma competição internacional de natação de minha filha. Da primeira deixei um ligeiro registro no meu livro de memórias políticas “Praia do Flamengo 132 – Crônica do Movimento Estudantil nos Anos 1961/62”, publicado nesta revista sob o título “Amor em Leningrado”.
Tenho simpatia pelos russos, por tudo o que sofreram,em sua tumultuada história, e sou amante de sua literatura. Ninguém melhor do que você para falar sobre a alma deles, suas fraquezas, suas paixões, sua arte, seu ambiente tão distinto do nosso, e, talvez por isso mesmo, tão fascinante. GRande abraço.
Clemente, Agradeço a sua intervenção. A história russa é desconcertante e o fica ainda mais quando estabelecemos as conexões devidas entre os resquícios de memória ancestral (autoritarismo, xenofobia, imperialismo) e os traços mais aflorados dessas almas irreverentes, imprevisíveis, soturnas e meio circenses com quem cruzamos nas ruas, em casa de amigos, no metrô e até na intimidade das “datchas”. A nos irmanar, o gigantismo territorial, os desmandos das cúpulas encasteladas, a crueldade do dia a dia da vida do cidadão comum e a onipotência das oligarquias. Um abraço.
Fernando,
Fiquei interessado pelos “fura neve”. Acredito ser uma excelente forma de fazer a passagem, no momento certo, sem hospital, nem dando trabalho aos outros. Além do strogonoff, vou precisar da indicação da praça. Sem pressa.
Helinho,
É, pode ser tentador desfalecer num monte de neve daquele e sumir até o degelo. Os parques são inúmeros e uma sugestão romântica pode ser o Gorki, na capital. Na Sibéria, o cardápio ainda é mais tentador pois lá é possível que sequer no degelo o corpo aflore. Mas a pauta do strogonoff é mais animadora. Para você e para quem mais nos lê, recomendo o do restaurante Biblioteka, de São Petersburgo, no lendário Nievsky Prospekt.
Obrigado pela visita.
De tudo, fica um pouco, ensina Drummond em “Resíduo”. O poeta fala dos pedaços de passado que ficam em nós, seres históricos preenchidos de memória. Ela, no poema, não se reduz à competência psíquica, digamos assim, de lembrar: expande-se para o terreno que lhe é próprio, apesar de pouco reconhecido, do conhecimento sobre a vida e as pessoas que integra o nosso jeito de estar no mundo; uma ancestralidade cujo valor só é inconsciente para a tolice pretensiosa da contemporaneidade que acha que o mundo começou com ela. Como é Drummond, o poema é bem mais rico do que descrevo e também se volta para a ancestralidade pequenina de cada indivíduo na sua curta vida tecida pelos fios das reminiscências, rememoradas ou não – esta, como aquela maior, não é uma memória que precise ser lembrada para existir. Penso nisso tentando tatear a costura que os pedaços inteiros de lugares e tempos deixaram em você, meu querido Fernando Dourado Filho, um olhar singular sobre paisagens humanas sobretudo. E, nelas, certa perspectiva arguta pela qual você descreve, sente, percebe, traduz as mulheres. Nem é o caso de concordar ou discordar. Ainda bem. Estou cansada e nauseada com a atmosfera medíocre em que vivemos hoje no Brasil na qual ou você concorda ou você discorda, ou você está comigo ou você está contra mim, nós x eles, bonzinhos x mauzinhos, corruptos x Lava Jato (a instância que vai se tornando tão autoritária quanto o que combati quando defendi o impeachment da mulherzinha): que pobreza autoritária nesses guetos morais que aplainam o pensamento produzindo uma realidade totalitária travestida (como todas as realidades totalitárias) de novo amanhã. Voltando àquele teu olhar, não me sinto compelida a julgar/identificar o acerto ou acerto dele, escolhendo um queto moral/de opinião onde me abrigar com as minhas certezinhas, mas – e eis aqui uma das coisas que o fazem valoroso – me sinto convidada a pensar, a sentir, a viajar junto. Nesta crônica e em algumas outras, flagro este teu olhar que você deita sobre Marina ou Júlia estanques num sexo/gênero, momento e lugar? Não! Sobre mulheres emaranhadas nas respectivas memórias e ancestralidades, nas histórias que compuseram a vida e a trajetória delas até ali (momento e lugar). E tal olhar não se constitui desse modo por meio do relato de fatos pontuais ou específicos; poderia ser, mas resultaria raso: ele vem de uma perspectiva totalizadora e geral sem ser genérico e, assim, somos quase capazes de identificarmos Júlia ou Marina na multidão ou, quem sabe, no espelho. Fascinante.
Querida Vânia,
É um baita privilégio tê-la como leitora, sabia? Além de todas as razões óbvias atinentes ao teu brilho e inteligência, ler um comentário como o acima me ajuda a entender melhor o que eu próprio escrevi. Gostei especialmente no foco que você deu nas personagens femininas. De minha parte, tudo é um exercício para entendê-las.
Beijo,
Fernando
Para mim, o leste europeu tem um glamour especial, um certo mistério, como uma história a ser desvendada. Boa leitura. Parabéns
Concordo com você, Lizá. A atmosfera de velha Europa é de todo sedutora. A história contemporânea de opressão e desencanto fez com que as paisagens urbanas em grande medida se conservassem como eram antes da Guerra. Gosto da diversidade linguística, da gastronomia algo rude, dos homens e mulheres de natureza oblíqua, do bom nível cultural médio da população, dos lindos balés, dos teatros com ares dos Habsburg, dos concertos arrebatadores, dos invernos rigorosos e das meias-estações. Amo o Danúbio, o Volga e o Vístula. A Rússia então é um caso todo especial. Mas tenho uma paixão pela Hungria e forte interesse na traumática história da Polônia. Enfim, gosto de tudo, da Eslovênia à Ucrânia.
Fernando
Gostei bastante deste relato em mais uma passagem sua pela Rússia.
Nao poderia ser diferente pela riqueza de detalhes, a analise e descricao sobre as pessoas que você teve contato. Muito enriquecedor e prazeroso.
E não poderia deixar de elogiar a sensibilidade e competência de Joao Rego na ilustração.
Prezado Glaucio,
Muitos compromissos me desviaram de um caminho que eu vinha trilhando com bastante alegria de forma sistemática durante anos: a manutenção de um diário com apontamentos detalhados sempre que os fatos assim o pedissem. Ver que a riqueza descritiva cativa leitores de seu naipe, me faz pensar seriamente em retomá-los porque nada se compara ao registro regular, feito a quente. De outra forma, não há memória que armazene tanta coisa. Grato pelo seu registro, meu amigo.
Um abraço,
Fernando