Fernando Dourado

Moscow Russia Autumn Sky Rivers Temples – Lyudmila Smaylova.

19.11.14

 

Por precaução, comprei mais um analgésico letal caso aquele dente volte estranhamente a incomodar. Por que digo estranhamente? Ora, porque não há qualquer vestígio de inchaço ou de inflamação na área. Trouxe também uma garrafa de vodka que, sendo amanhã dia de aula, não convém abrir hoje. Mas nunca se sabe o que pode acontecer na Rússia. Comprei também um litro de suco de cereja para cortar a bebida como eles fazem. Mas o melhor de tudo ainda não contei. Passei por uma loja de roupa masculina das imediações do metrô e adquiri de uma vendedora uzbequi duas calças e um pulôver. Foi uma compra de uns duzentos euros e exultei em achar artigos de meu tamanho e, ademais, com alguma qualidade. Só chegando ao calor do quarto do hotel percebi que a qualidade talvez seja excessiva. O que quero dizer com isso? Ora, é por se tratar de roupa feita para o frio ártico, ora essa. Em outras palavras, se usá-la em São Paulo, cozinha o saco e o que mais estiver nas adjacências. Terei os autênticos ovos moles da afamada sobremesa lusitana. Aliás, como os russos exageram no aquecimento dos cômodos, meu Deus. É até compreensível já que o gás não custa quase nada na terra da Gazprom. Mas a calefação central está insuportável. De nada valeu me queixar com veemência na recepção, o que vem se tornando um clássico de meu repertório no leste da Europa. A fulana me olhou como quem dizia: emagreça e vai melhorar. Voltando ao quarto disposto a abrir a trava da janela para refrescar o ambiente, lembrei do trinômio de sobrevivência dos tempos de Stálin: nunca acredite no que os outros dizem. Não demonstre medo e não aceite favores. E, é claro, é bom que tenha alguma sorte. Teria muito mais a contar, mas vou dormir enquanto a dor não vem.

 

20.11.14

 

Dormi razoavelmente bem, mas logo cedo encarei um café da manhã sem imaginação de arroz branco, verduras malcozidas, salsichas de aspecto temerário e uma espécie de fritada fofa de claras de ovos que a nada sabia. Estava espirrando bastante. Pudera, o ar do quarto estava condensado. Então voltei para a cama e dei um cochilo complementar. Ao acordar, vi que o arquivo esperado tinha chegado e remeti-o para Julia Adamantova. Mais tarde, trajei-me da forma mais elegante que podia e fui para a universidade que fica logo ao lado, ao cabo de dez minutos de marcha. No caminho, entrei num anexo para um chá reconfortante e foi a providência mais acertada que poderia ter tomado. Isso porque os salamaleques que me esperavam foram longos e extremamente ritualizados. E sempre prezo os momentos comigo mesmo, pois sem eles o dia está perdido. Efetivamente, cheguei à Escola de Negócios da Faculdade de Economia e logo me vi recepcionado por minha amiga Natalia Ekhtievna – que parece exercer um poder excepcional lá dentro na medida em que tem uma ala inteira dedicada às suas fotografias – e por Marina S., uma mulher de uns sessenta e muitos anos que deve ter sido uma das mais bonitas de sua geração. Basta, contudo, que faça um movimento e já se lhe vê o colo completamente enrugado. É da vida. Um amigo russo me disse certa vez que depois da Grande Guerra Patriótica – forma como eles denominam a Segunda Guerra Mundial -, os homens tiveram escolha tão farta de mulheres belas, já que tantos foram os soldados mortos, que isso teria depurado a raça. Ademais das miscigenações. Certo é que abordei minha temática com bastante graça, um inglês pausado e didático, e plena segurança numa metodologia que, posso dizer, é toda minha. Se a alguém puxei, embora sem o brilho do próprio, foi ao saudoso Rubem Franca que sabia fazer abordagens multidisciplinares sem perder o eixo. O que dou, de fato, é o que se pode esperar de uma boa aula. Os alunos dispensaram até a pausa que estava prevista – Julia me disse que isso foi inédito –  e, ao final, falei por três horas consecutivas, tendo tido direito a uma dezena de perguntas a aos olhares sedutores de duas pérolas de beleza que, é claro, sempre agregam motivação ao cenário e ao palestrante provecto. Depois conversei com ambas e elas tinham idade para ser minhas filhas, apesar dos ares descaradamente libidinosos. Como é comum nessa geração, elas sempre deixam no ar uma certa propensão ao lesbianismo, na hipótese de estarem diante de um coroa dado a perversões a três. Já era tarde quando voltamos à sala de Natalia. Como acontece em boa parte do mundo, aqui também os ouvintes gostam de puxar o palestrante para uma conversa pós-conferência para afinar o discurso. Um deles, já maduro e com olhos injetados, disse que queria abrir uma distribuição de autopeças no Brasil. Outro, petulante e certamente egresso das forças armadas, veio pedir para lhe achar um parceiro para montar um grande abatedouro na região de Sverlovsk. Tinha U$ 100 milhões em espécie para investir na suinocultura. Uma pocilga bem razoável. Lembrei do ditado russo que fala de passar batom em porcos quando estes simulacros de oligarcas veem arrotar grandeza à custa de fundos ilícitos. Julia – que vai casar com um inglês e, pelo jeito, está mais interessada em Londres do que no pobre rapaz – me trouxe um monte de papel para assinar para efeitos do pagamento dos honorários. Quanto a Marina, esta me pediu para dar uma aula à turma de marketing internacional. Como recusar? Ela disse que os alunos adorariam. Os convites espoucaram depois da aula. Agora tenho outra palestra para dar na Universidade do Povo – pediram que fosse em castelhano – sobre o banco dos BRICS. Vejo que esse acrônimo pegou aqui com uma intensidade bem maior do que seria lícito esperar. Mas a solidariedade aqui é só uma vã retórica. E pensar que tudo isso tinha sido concebido para que as pessoas se amassem. O professor da Universidade do Povo com quem falei, Yuri Moseykin, está empolgado em ter um palestrante que represente uma das nacionalidades contidas no grupo. Tanto melhor. O entardecer na região do Leningradsky Prospekt estava lindo. A luz outonal era de rara beleza, mas Natalia me falou que essa é a época do fim dos sorrisos, terminado o “Verão das Avós” de setembro, quando as babushkas tiram uns dias de férias depois de fazer as compotas de frutas. À noite, efetivamente, caiu o que eles chamam de mokri sneg, a neve úmida que antecede o inverno. O humor melhora um pouco depois que a neve de verdade se impõe porque o branco total levanta o estado de espírito das pessoas. Enfim, russos são especialistas em transformar a vida numa aventura sem sentido. Hoje li que meio milhão de mortes por ano estão ligadas ao alcoolismo. Quando eles querem indicar que alguém bebe muito, dão um peteleco no pescoço. Da mesma forma que quando tocam os próprios ombros com as pontas dos dedos, estão se referindo a um militar de alta patente. De onde sei tanta bobagem? Já nem lembro onde as aprendi. No bar do hotel, uma coroa vestida de puta ficou me olhando. Spasiba, disse eu. Como já li de um autor local, queijo de graça, só na ratoeira.

 

21.11.14

 

Hoje o dia foi fenomenal. Acordei cedo e fui para a Universidade de Finanças de Moscou, onde funcionou durante boa parte de seus 95 anos de existência o Instituto de Ciências Sociais do qual é egresso, entre tantos outros, Mikhail Gorbatchov, meu estadista favorito por um certo tempo. Que, por sinal, tem escritório a duas estações de metrô daqui e ainda goza de saúde razoável, além de ter restaurado na Rússia um pouco do prestígio pessoal de que goza no mundo. Mas a maioria o condena sob a alegação de que ninguém come liberdade. Liberdade sem pão, nada vale. Enfim, os auditórios, os anfiteatros, o restaurante, as passarelas e a estrutura de poder, tudo tem um delicioso ar retrô como não se vê sequer em Budapeste ou na velha Berlim Oriental. É claro que estando em sua casa, as referências que ouvi sobre Mikhail Sergueivich foram bastante lisonjeiras, e até o reitor Alexander Ilyinsky, na audiência que me concedeu depois de me dar a maçada regimental dos poderosos, disse que talvez o Brasil esteja precisando de uma perestroika. Engraçado que eles nada falam a respeito de Putin e das próprias necessidades internas de transparência e clareza. Aqui ainda dá cadeia, é tabu. Tudo isso se deu pelas mãos operosas de Marina S. Na verdade, tenho um histórico com loiras dez anos mais velhas, que tiveram um filho homem precocemente, que têm hoje dois netos e gostam de um gole de destilado lá pelas tantas. Falo das esbeltas, comedidas com o que comem e que se cuidam com esmero, apesar de vorazes e sem limites em outros domínios. Pelo menos é o que imagino. Ademais, elas sabem distinguir um homem de uma imitação metrossexual a léguas de distância, e isso, quero crer, conta um pouco em meu favor. Quando me deparo com alguma mulher dessa referência, sinto a descarga de adrenalina e, aparentemente, ela também. Marina está naquele momento de compasso de espera, perscrutando os horizontes para ver como é que encara a penúltima pernada da vida antes de se esgueirar pelas escadarias do metrô com uma sacola com duas ameixas e uma maçã. É como um velho caranguejo do Ártico que tenta sobreviver à correnteza e aos predadores. Até por isso, gostei dela. Os alunos são engraçados. Ficam de pé quando o professor entra na sala, e só sentam a um comando nosso. Entre as aulas, ela fez um lobby pessoal e institucional acirrado. Levou-me também para tomar um café com um jovem enfatiotado chamado Vladimir Tarabrin – diretor do Departamento de Cooperação Internacional – e juntos redesenhamos o mundo. Estou agora oficialmente encarregado de buscar parcerias internacionais para a prestigiosa escola moscovita e só isso seria motivo bastante para dizer que ganhei o dia, independentemente das evasivas do dito rapaz em dizer que os orçamentos já estão fechados, mas que oportunamente me apresentaria uma proposta financeira.  Depois fui ao mercado fazer compras de ovas de salmão, arenque defumado e tangerinas. É sempre bom ficar um pouco só. À noite, o programa social recomeçou. Mas isso não é mais assunto para hoje.

 

22.11.14

 

A noite de ontem foi bastante surpreendente. Olga K. passou no hotel e fomos comer alguma coisa no bom restaurante do Azerbadjão aqui do lado do hotel Sokol. A conversa foi muito agradável, apesar das patriotadas que incluem uma explicação sobre os dez tipos de salmão de Kamchatka, a grandeza do lago Baikal e sua profusão de água potável de inigualável pureza. Depois tomamos conhaque do Daguestão e brindamos ao futuro de nossa amizade, à paz mundial e às relações entre nossos países. Na saída, achei deselegante abandoná-la na porta do hotel, sabendo que ela iria atravessar o parque escuro para chegar à sua casa. Resolvi então acompanhá-la até o endereço da Leningradsky Prospekt. Ela então me contou que morou a infância toda na região e herdou o lindo apartamento da família por inestimáveis serviços prestados à pátria. No mesmo prédio onde residiam aeronautas, viveram os inventores do Ilyushin, do Antonov e do Tupolev. O maior amigo de seu pai fora Yuri Gagarin, a quem ela chamava de tio. Fiquei maravilhado com a notícia e, depois que ela sumiu na passarela, fiquei um bom tempo contemplando o edifício do outro lado da rua, e pensando na maneira toda única que eles conceberam uma meritocracia. Não posso negar que fiquei emocionado em ter conhecido uma mulher tão próxima do homem que disse: ” A Terra é azul”. Em suma, acabei muito bem o dia.

 

23.11.14

 

Hoje, logo cedo, fui de metrô até a última estação da linha vermelha que é a Yugo-Zapadnaia. Lá ainda peguei um micro-ônibus para então chegar à porta da lendária Universidade da Amizade dos Povos, umas cinco paradas depois. Não deixa de ser um momento épico atravessar aquele imenso recuo que eles têm e adentrar o saguão para dar uma aula. Fui recebido calorosamente por Yuri Moseykin, um professor simpático, homem bonito, fluente em castelhano e que nasceu em Kamchatka. Tomamos um trago de conhaque armênio Ararat para aquecer e conversamos sobre o momento político e econômico de nossos países e dos BRICS – tema de minha palestra à garotada da graduação. Continua me comovendo a prática dos alunos locais de se levantarem quando o professor entra na sala. Não vejo isso acontecer no Brasil nem em sonho. A aula foi em castelhano e eles aplaudiram febrilmente. Alguma coisa boa ficou, imagino. Depois voltamos para a sala de Yuri, ele trabalhou um pouco enquanto eu folheava uns livros e saímos para o almoço na região da universidade. De lá já peguei o metrô, baldeei em Teatraksnaia e uma vez acomodado no trem que me traria até Sokol, dei uma cochilada fatal e perdi a parada. Tive que voltar do terminal. Chegando ao hotel, dei um cochilo de uma hora para tentar me restabelecer já que Marina tinha feito reserva no luminoso restaurante Pavillion para as oito da noite. Ela chegou belíssima e tão elegante quanto a czarina em lindo casaco mink. Como é de praxe, pediu segredo sobre nosso encontro social junto às colegas da universidade. Seja como for, tudo foi perfeito. Saltamos na praça Maiakovskaya – minha estação de metrô favorita – e descemos de braços entrelaçados rumo ao Patriasha Prudy, o Lago dos Patriarcas. Marina me mostrou a casa de Bulgakov e me recomendou enfaticamente ler “O mestre e Margarita“. Depois chegamos à praça onde pontificava o laguinho onde Tolstói ambientou a patinação no gelo de Anna Karenina. Lá no fundo, iluminado, estava o restaurante. É dessas visões que nos enchem de amor inexplicável por esse país visguento. Venho aqui há quase 30 anos, já vi calamidades, mas nunca cheguei à Rússia sem sentir um frisson especial. Comemos bem, adorei os peixes defumados. “Peixes gostam de água”, disse ela. E pedimos mais vodka para que eles nadassem dentro de nós. Na volta, ainda paramos de bar em bar, conversamos com os estudantes que vagavam pelas ruas. Ainda conseguimos pegar o último trem. Marina me contou da vida e o fez à moda russa: um monte de verdade para esconder duas mentiras fundamentais. As histórias nunca fecham, mas é bom saber se fazer de desentendido. A certa altura, eu fui direto ao ponto: seu dilema, minha cara, é o mesmo meu. A gente sabe que as opções que fizer dentro dos próximos dois anos terão um impacto definitivo nas nossas vidas nos próximos vinte, que é o que nos resta de pista, oxalá. Daí sermos tão experimentais, tão evasivos, tão nostálgicos e curtirmos tanto uma boa conversa. Ela aquiesceu imediatamente e sorriu com cumplicidade. Disse que deveríamos ter nos conhecidos há vinte anos. Saltamos na mesma estação. A caminho do hotel, sentei no banco do parque e fiquei imaginando quantos homenzarrões já não tinham caído ali bêbados e, soterrados pela neve, só foram encontrados no degelo da primavera. Os russos chamam-nos de “fura-neve”. Vou tentar dormir, mas não será fácil. De qualquer maneira, tenho uma garrafa de vodka colada à janela para absorver a temperatura externa. Na Rússia, nunca se sabe.