Ivanildo Sampaio

Detalhe de máquina de datilografia.

Existiram poucos botecos iguais ao Nike Bar. Não o Nike imortalizado por Dick Farney numa de suas canções, essa era paulista, frequentado por grã-finos, local de encontros de casais enamorados, com o som de um piano ao fundo. Falo do Nike Bar carioca, onde não havia mesa nem cadeiras, plantado numa velha construção da Rua Silveira Martins, entre a Rua do Catete e a Praia do Flamengo, bem ao lado do Museu da República, o antigo Palácio onde numa madrugada de agosto de 1954 o presidente Getúlio Vargas deu um tiro no próprio peito. O Nike Bar que “a turma da Manchete” frequentava e que, por falta de espaço, acolhia parte de suas clientes na calçada e outra parte recostada no balcão, ganhando, portando, o pejorativo apelido de “cu-de-fora”.

Esse Nike do qual falo era um boteco sem charme, de propriedade dos portugueses Oswaldo Simas e Afonso Honório, dois sócios de temperamento absolutamente diferentes – mas que se entendiam e se completavam na administração do estabelecimento, já há algum tempo travando uma luta na justiça para não ser despejado. Era batalha perdida:  uma das grandes incorporadoras cariocas havia adquirido todos os velhos casarões no entorno, só o Nike se recusava a sair, embora o antigo proprietário já tivesse negociado o imóvel. Era lá que nós, aquele imenso contingente de repórteres das revistas Bloch íamos, religiosamente, de segunda a sexta, tomar uma caipirinha antes do almoço, e aqueles que não gostavam de cerveja, um uísque de má qualidade no final do expediente. Não é necessário dizer que todos apoiávamos a luta dos portugueses pela permanência – e despejávamos na incorporadora nossa ira santa contra os barões da construção civil, que desfiguravam a face mais poética do Rio antigo. Quem frequentava o Nike e torcia pelo fim do boteco era o cantor Anísio Silva: ele comprara na planta um apartamento no edifício que mais tarde seria construído no local.

No Nike, a gente “pendurava” a despesa e pagava o acumulado a cada quinzena, descontava cheque pré-datado com os dois portugueses, usava o telefone como se fosse nosso – ninguém era discriminado por Oswaldo ou Afonso.  Nas sextas-feiras, entre as cinco horas da tarde e as oito horas da noite – quando todos nos preparávamos para programas mais densos e alguns, como eu e o repórter João Antônio, já não dependíamos mais da sinuca do Lamas para ocupar as madrugadas, o boteco fervilhava. Tomava-se cervejas disputando cada garrafa no jogo dos três palitos, contava-se piadas, reencontrava-se colegas que estavam chegando de viagem e havia, principalmente, a presença feminina das repórteres das revistas “Ele E Ela” e “Pais e Filhos”, dirigidas por Carlos Heitor Cony e José Itamar de Freitas, respectivamente.  Quase todas incrivelmente bonitas.

Foi numa sexta-feira quente de verão que Adolfo Bloch baixou no Nike. Vinha possesso. Procurava um mecânico que deveria estar no plantão das oficinas e que alguém informou que certamente ele estava no Nike Bar. Quando Adolfo entrou no recinto, todo mundo parou, num silêncio constrangedor.

Com os três pauzinhos na mão e várias garrafas de cerveja enfileiradas num canto do balcão, o mecânico, chamado Ubirajara, porém conhecido como “Bira da Mangueira”, pois tocava seu tamborim todo carnaval na Escola Verde e Rosa, xingava um boliviano de sobrenome La Piedra, também funcionário das oficinas, que lhe batera mais uma vez no jogo de palitos. Bira era antigo na Bloch, vinha dos tempos mais difíceis da Rua Frei Caneca, desde moleque aprendera a consertar antigas linotipos e ali foi ficando, mesmo com a modernização do parque industrial.

Adolfo Bloch partiu como uma fera pra cima de Ubirajara. Uma das compositoras eletrônicas que operavam na Rua do Russel havia parado – o cronograma de produção estava comprometido, procurou-se e não se viu um único mecânico nas oficinas. E Ubirajara ali, tomando cerveja e jogando porrinha…

Sob o nosso olhar silencioso, Bira fechou a conta e voltou para a empresa. Vários de nós resolvemos seguir os dois, para ver como aquilo ia terminar. Empregado na frente e patrão atrás, os dois entraram na área industrial da Rua do Russel, no andar térreo do edifício.

– “Cadê o manual dessa porcaria? ” Indagou aquele mecânico autodidata, torcedor do Flamengo e tamborim da Mangueira, e de imediato Adolfo Bloch lhe entregou um livreto em formato de revista, que acompanhava cada uma das compositoras.

Ubirajara enfia a mão no bolso traseiro do macacão, que era uma espécie de farda para quem trabalhava na área industrial, tira os óculos com uma única haste, equilibra no rosto e começa a folhear o manual. E a gente olhando aquela cena surreal, à meia distância. De repente, “Bira” sacode o manual em cima de uma mesa, abre um sorriso maroto e se volta para Adolfo Bloch, dono e presidente da empresa:

– “Você, tão metido a sabido, né Adolfo? Mas te enganaram, viu?.. Como é que você foi comprar essas máquinas sem olhar direito? Essa porcaria desse manual não dá pra ler… Tá tudo escrito em americano”…

Contam que na semana seguinte a empresa contratou tradutores para fazer a versão dos manuais do inglês para o português, visto que nas oficinas de composição não havia um só funcionário que conhecesse aquela língua “estranha”… Nem o próprio Adolfo.

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