Paulo Gustavo

Marcel Proust (1871-1922).

Proust, como se sabe, era o mais velho de dois filhos de um grande médico francês — Adrien Proust, professor de Higiene na Faculdade de Medicina de Paris e autor de obras importantes sobre o cólera, doença contra a qual traçou um cordão sanitário em torno da Europa. Seus trabalhos e estudos como sanitarista lhe valeram as mais altas honrarias francesas. O irmão mais novo de Proust, Robert, também seguiu a carreira médica. Por sua vez, calhou (!) ao escritor de ser o enfermo da família. Enfermo e hipocondríaco. Ao longo da vida, foi vítima de várias doenças, mas de todas a mais destacada e massacrante foi sua incurável asma. Toda essa circunstância biográfica levou-o a sonhar em escrever um romance que tratasse apenas de médicos. Embora tal projeto nunca tenha se realizado, Proust parece ter levado algo dele para dentro de “Em busca do tempo perdido”. Com efeito, os seus personagens médicos, ainda que não sendo os principais, são um pretexto para uma visão substancialmente irônica dos médicos e da medicina.

Como costuma fazer com seus personagens, Proust enfoca os médicos de diversos ângulos, considera-os sob uma perspectiva social e humana, flagra-os em suas contradições. Mesmo desconstruindo-os, mal esconde seu encantamento com a ciência que professam, medicina da qual dependeu para sobreviver desde criança e na qual pôde observar os avanços do conhecimento técnico de seu tempo. É com imagens e termos médicos que aparecerão muitos dos seus símiles e de suas metáforas. É à medicina que fica a dever toda uma longa meditação sobre o corpo que de ponta a ponta percorre o seu romance. Também à medicina aplica o relativismo e a dúvida que acabam por tornar complexa e difícil a relação entre pacientes e doutores.

“Pois como a medicina é um compêndio dos erros sucessivos e contraditórios dos médicos, recorrendo aos melhores destes, corre-se o risco de solicitar uma verdade que será reconhecida falsa mais tarde. De modo que acreditar na medicina seria a suprema loucura se não acreditar nela não fosse loucura maior, pois desse amontoado de erros se desvencilharam com o tempo algumas verdades.”

Ao caricaturizar com fina ironia a figura do médico por meio de personagens como Cottard e Du Bulbon, Proust joga luz sobre uma característica muito comum à categoria: a suscetibilidade. Os médicos — diz ele — “são suscetíveis”. Isto é, melindram-se com facilidade e “são mais irritados com a negação do seu veredito do que com a sua execução”. Atores de poder e autoridade sobre o corpo, eles não só são ciosos desse domínio como não poucas vezes são ciumentos de seu campo profissional e, portanto, avessos às incursões do leigo sobre o seu território. O que Proust também quer nos apontar é, por outro lado, a costumeira passividade dos pacientes. Tal passividade não aproveita a ambos, antes é o sinal de um desvio ou de uma falha de comunicação. Enfim, é preciso estarmos em guarda diante desse poder “autoritário” dissimulado sob a inquestionável rubrica da ciência.

O médico, na visão proustiana, está como que condenado a chegar atrasado na corrida em que a dor e o sofrimento são, por conta da própria biologia humana, competentes atletas. “A doença é o mais escutado dos médicos: à bondade, à sapiência, não fazemos mais que prometer: ao sofrimento, obedecemos”. Esse inusitado “médico” — a doença — traz uma ordem expressa do próprio organismo ameaçado. A “obediência ao sofrimento” é a um só tempo o indiscutível ponto de chegada e de partida. É o corpo que se revela — enquanto estrutura nervosa e biológica — em toda a sua insuspeitada vulnerabilidade. É “na doença que descobrimos que não vivemos sozinhos, mas, sim, encadeados a um ser de um reino diferente, de que nos separam abismos, que não nos conhece e pelo qual nos é impossível fazer-nos compreender: o nosso corpo”. E é esse corpo que somos obrigados, inescapavelmente, a compartilhar com os médicos e a medicina num diálogo delicado, difícil e complexo.

Num tempo de grandes avanços médicos e de excessiva e corriqueira medicalização da saúde como o que vivemos, convém repensar o papel do médico, cuja aliança com as recentes tecnologias têm se encaminhado para um hiperdimensionamento do seu próprio poder. Também diante da medicina, devemos nos tornar “suscetíveis” não para expor nossos queixumes ou simplesmente desabonar condutas, mas para dizer de nossa cautela proustiana e dos nossos desejos e temores ante esse “ser de um reino diferente”, tão íntimo e tão estranho — o nosso próprio corpo.