Paulo Gustavo
Não é preciso qualquer leitura aprofundada de “Em busca do tempo perdido” para se saber que ela abriga um vasto repositório de reflexões. Muitos críticos o notaram, e vários se debruçaram sobre as concepções de Proust: Roger Shatuck, Milton Hindus, Ernst Curtius, Jean-Yves Tadié, Jean Pouillon… Este último realça a reflexão como um tempo inerente à obra:
[…] na obra proustiana não se encontra apenas um tempo da narrativa, mas também um tempo de reflexão. O papel dessa reflexão, evidentemente, é fazer-nos conhecedores das concepções do autor […] a reflexão explícita é que confere à obra a sua verdadeira dimensão, sendo, por esse motivo, inseparável da mesma e não incorporada ao romance de fora para dentro.
Suponho que Pouillon quer afirmar que a reflexão em Proust é algo que lhe é conatural e sem a qual a “Busca” não seria o que é. Até onde estou informado, está por se fazer um dicionário exclusivamente voltado para a reflexão em Proust e, em particular, para a reflexão de caráter moral. Eu próprio intentei fazê-lo, ainda que de maneira muito tosca e preliminar no apêndice Refletindo com Proust através da Recherche ao fim do meu livro A tartaruga e a borboleta: um caminho para Proust (Bagaço, 2011).
O fato é que o espírito da “Busca” imanta em si mesmo uma reflexão fragmentária que se estende por todo o romance. Digo “fragmentária” porque não é exclusiva de algumas partes da obra, mas como que dissolvida no seu todo. As reflexões sobre os mais diversos temas surgem no contexto de cada situação. E esses temas se repetem em função de diversos entrechos e situações. São em menor número as páginas em que não existem: sua frequência é algo de fato constitutivo do texto proustiano. E isso pela simples razão de que, de par com o romancista, temos em Proust, senão exatamente um filósofo, um pensador.
As reflexões proustianas se inscrevem na melhor tradição dos moralistas franceses: de um La Rochefoucaul, de um La Bruyère, de um Vauvennargues. Observando suas “máximas”, ficaremos surpreendidos com a agudeza dos seus pontos de vista. Talvez o melhor do escritor esteja justamente nessa capacidade de refletir sobre a existência não de uma forma abstrata, mas encarnada. O filósofo Alain de Botton chegou a afirmar (de forma herética, claro, para os cristãos) que haveria mais sabedoria em Proust do que nos Evangelhos.
Sobre esse mesmo tema, um dos maiores estudiosos proustianos, o francês Jean-Yves Tadié, também nos chama a atenção: “Não há em Proust nenhum fato sem interpretação: donde a riqueza inesgotável de uma obra que tem resposta a tudo, em que cada momento da vida humana encontra seu sentido”. De fato, as antenas de Proust, sua “pupila de mosca” (como escreveu o crítico italiano Pietro Citati), parecem não repousar. É uma pupila onívora que se deleita em refletir e pousar sobre temas tão diversos quanto a arte e a tecnologia; a moda e a arquitetura; o desejo e a vida social; a indumentária e a verdade; o fracasso e o rosto humano; a velhice e os hábitos; o amor e a morte. A própria vida em sociedade — um dos seus grandes temas — enseja a reflexão sobre numerosos subtemas, assim como o passar do tempo que nos transmuta, nos absorve e nos associa aos diversos espaços em que vivemos.
A moralidade proustiana, ressalve-se, nada tem de moralista no sentido popular da palavra. Nada de doutrinária ou enfática. “Tornamo-nos morais — diz o herói — quando somos infelizes.” Proust raramente julga, e sua reflexão se encaminha para a tolerância e para uma forma de saber viver. A propósito, é de se notar que esse herói se apresenta muito modernamente como alguém sem preconceito: “[…] há criaturas, com efeito — e fora o meu caso desde a juventude — para quem nada do que tem um valor fixo, verificável por outros, a fortuna, o sucesso, as posições, nada disso conta”. (No Brasil, essa ideia proustiana seria admiravelmente vivida e expressa por Gilberto Freyre).
Sem querer nos impor qualquer filosofia, Proust está sempre aberto para ver o grande espetáculo do mundo em sua oferta fenomênica. Numa passagem das mais citadas da “Busca” ele constata que: “A sabedoria não se transmite, é preciso que nós a descubramos fazendo uma caminhada que ninguém pode fazer em nosso lugar e que ninguém nos pode evitar, porque a sabedoria é uma maneira de ver as coisas”. Como se nota, a sabedoria também está subordinada ao seu solipsismo, pois “o homem é o ser que não sai de si mesmo e, se diz o contrário, mente”. A humildade não é aqui uma virtude, mas uma espécie de condição kantiana inerente à própria visão do pensador.
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