Francamente, se você chegou até aqui, é pernambucano, e ainda não endereçou a este articulista os apupos merecidos, é porque há de ter discernido algum mérito nas crônicas anteriores aqui publicadas, a saber, “Pernambuco para principiantes” e, na sequência, “Pernambuco para experientes“. Já se você, leitor, é de outro Estado, mesmo que dos vizinhos, não há com o que se preocupar mesmo porque a condição de outsider lhe faculta o privilégio de ver o circo arder à distância, o que não é de todo ruim. Pelo sim pelo não, esteja pronto para percorrer nos próximos minutos novas trilhas de nossa programação mental, como dizem os antropólogos sociais. O peso de alguns símbolos e as peculiaridades da mitologia do mais singular dos estados brasileiros o surpreenderão. E, a exemplo do que tem dito um correspondente que não ousa se identificar pelo nome nas páginas de “Será?”, mas que o faz privadamente para o autor, você talvez também ache que “nunca tinha visto nossas banalidades como legado imaterial tão exclusivo”. E pensar que tinha gente que via na cartola, nossa popular sobremesa, o mais proeminente traço distintivo.
Por que, portanto, não abrimos o capítulo por aquele ponto onde as viagens começam e terminam? Pois, no dizer geral, o aeroporto dos Guararapes, hoje também dito Gilberto Freyre, é local pouco trivial. A começar pelo nome de batismo. Pernambucanos se ufanam ao alardear que se trata do único do gênero em que um intelectual é homenageado com tamanho galardão. Que seja. Feia mesmo foi a iniciativa de um Deputado Federal de segunda linha que, curto de ideias e fértil em capachismo, achou de querer batizá-lo de Eduardo Campos, horas depois da morte trágica do ex-Governador. Lembrado de que já trazia o nome do sociólogo de Apipucos, não se deu por vencido. Rindo amarelo e coçando o cocuruto gretado de sol, saiu-se com a quintessência do mau gosto: “Então por que não fica sendo Aeroporto Internacional de Jaboatão dos Guararapes Gilberto Freyre e Eduardo Campos”? Enquanto seu eleitorado sonhava com uma cisterna cheia para matar a sede, o gene recessivo da vassalagem o levava a maquinar esse estratagema torpe. Pernambuco comporta faxina eleitoral de regra no andar de cima. Mas que rincão brasileiro pode prescindir de uma higienização?
Fiquemos, contudo, nos aeroportos mais um pouco. Se você está familiarizado com Changi, em Cingapura; Lantau, em Hong Kong e até mesmo Heathrow, em Londres, sabe que esses aeródromos portentosos oferecem muitas comodidades, mas também algumas limitações, quando comparados com o nosso. Senão me apontem em qual deles um transeunte, que sequer passageiro é, poderá se deleitar com farta programação de MPB ao vivo, das primeiras horas da manhã até a virada do dia, com miríade de músicos que se revezam ao microfone, sem cobrar um só centavo de couvert artístico? Sim, basta ir ao primeiro andar e lá estarão eles num banquinho e com um violão, a entoar: “Espero você voltar, Pra Saigon…”. Tempo desses a mocinha que serve tapioca a bordo de patins (muito embora a mesa mais distante esteja a apenas seis metros do balcão), contou-me que os seresteiros não recebem cachê, mas alguns deles chegam a vender até 15 CD´s ao dia. E, é claro, ela tem seus favoritos: “Depois das onze tem é muito forró. É massa”.
É claro que nem tudo são flores. Apesar de agradável, o aeroporto tem problemas. É quase certo que todo dia uma das escadas rolantes esteja em manutenção. Já calhou de serem as duas. No terreno das inovações e gambiarras, onde mais você verá metade das instalações de embarque ser bloqueada – toda a chamada Ala Norte, o que compreende, talvez, seis portões – em função de um único voo internacional? E que tal baldes espalhados ao longo dos fingers para coletar os pingos de chuva que se infiltram do teto? Aliás, ditos fingers podem ser uma provação excruciante para o passageiro. Entre o terminal e o avião, ambos climatizados a 23°, o viajante será agraciado pelos 42° saarianos que reinam no curso da passagem retrátil, e esta pode durar facilmente dez minutos. Você chegará ao avião espirrando e, se fizer queixa ao pessoal de terra, é claro que eles dirão que o problema é da Infraero, e que nada têm a ver com isso. Apesar de tudo, um pernambucano atestará que não há prazer maior do que pousar no Recife e ver tremular a bandeira do Estado. E confirmará que é doloroso o momento em que o avião decola e, sobre o lado direito, ele vê os prédios de Candeias sumir sob a camada de nuvens.
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Pois já que falamos de música, é forçoso reconhecer que Pernambuco é muito fiel a alguns artistas de quem já não se ouve falar em outros estados brasileiros, quando não no restante do mundo. Assim sendo, pouco importa que Altemar Dutra tenha morrido há mais de 30 anos. Semana sim e outra também, o filho do seresteiro, que traz o nome do pai e algo de seu timbre inconfundível, estará em cartaz e entoará “Velho meu querido velho, Agora já caminhas lento…” Ou a imortal “Sentimental eu sou, Eu sou demais...”. Quem, periodicamente, vem respirar os ares de Boa Viagem, é o cantor italiano Luciano Bruno, sempiterno intérprete de “Champagne” e “Amore Scusami”. Uma festa de casamento não estará completa se não contar com o grande hit de Billy Paul, recentemente falecido, “Me and Mrs. Jones”. Barry White também é um must com “Let the music play”. E em nenhum estado, Maria Creusa é tão reverenciada, cantando Waldick Soriano: “Hoje que a noite está calma, E que minha alma esperava por ti, Apareceste afinal, Torturando este ser que te adora...”. Já se você estiver com saudades de Benito di Paula ou de “The Fevers”, marque encontro com eles no Recife e eles não faltarão. O mesmo vale para “Renato e seus Blue Caps” e uma profusão de clones: Elvis Presley, Tim Maia e Bee Gees.
Nesse contexto, é de bom tom tratar artistas por um nome curtinho que, de certa forma, insinue alguma intimidade. Se nos demais estados brasileiros é comum chamá-los pelo nome completo, tais como Caetano Veloso, Gilberto Gil ou Maria Betânia, em Pernambuco eles são simplesmente Caetano, Gil e Betânia. Se no caso destes, isso não representa maior problema de identificação, a compreensão é menos óbvia quando se trata de Nana, Nara, Jards, Alceu, Edu, Francis, João, Tim, Aldir, Paulinho, Zé, Elba, Geraldo, Tony, Emílio, Nelson, Raul, Chico, Vanessa ou Agnaldo. Um curitibano de grei ficaria perdido. Seja como for, esteja preparado para um coro de muitas vozes, mesmo no mais solene dos recitais. Você pode pagar um salário mínimo para ouvir Marisa Monte, mas não conseguirá se livrar de suas vizinhas de cadeira a impor à cantora o ritmo da interpretação: “Bem que se quis, Depois de tudo ainda ser feliz...” Quando se trata de uma baladinha fácil como “Carinhoso”, até o cantor desiste do microfone porque a plateia em peso assumirá a função, muitas vezes coreografando a melodia arrastada com os braços: “Vem matar essa paixão, Que me devora o coração“. É dose. Repreender esse hábito valerá ao infrator a pecha de fresco e insensível, cuja junção traduz, no glossário da terra, desmancha-prazeres.
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Certa feita, este escriba presenciou o seguinte diálogo entre uma senhora e o filho: “Quem é esse cafuçu?”, perguntou a mãe, indicando com o queixo o sujeito a quem se referia. “É um amigo daqui do interior que mora em São Paulo, mamãe”. “Parece um troço”, rebateu ela. “Engano seu, mamãe. É um homem de negócios muito bem sucedido, além de intelectual respeitável”. Ela não se deu por vencida: “Pois para mim ele pode ter o dinheiro do mundo todo, mas é um maloqueiro. Veste-se como mundiça, fala como ignorante e usa perfume de canalha. O diabo é quem queria ter um amigo dessa laia. Esse aí, meu filho, nem nascendo de novo. Ele não tem um pé na cozinha, não. Tem os dois”. “Mamãe, veja sua neta que nos escuta. Isso é jeito de falar? Essa menina um dia vai ser presa se, quando for adulta, reproduzir seus conceitos do século XIX”. “Vai não, é bom que ela aprenda desde já a separar o joio do trigo. Você com tanta sabedoria e experiência, parece que nunca aprendeu. Que desgosto”. “Mas isso é preconceito seu, mamãe”. “Não, não é não. Isso é conceito mesmo, meu filho. Onde já se viu um homem com semelhante bucho vestir uma camisa de seda azul? E desde quando é maoria, e não maioria? E onde ele aprendeu a dizer coinsciência, e não consciência?”. “Ora, isso é prosódia de matuto, mamãe. No fundo, é português arcaico”. “Arcaico coisa nenhuma, é português dessa ralé da gengiva preta”. Pernambuco imoral, imortal.
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Se você está acostumado ao trânsito de Nova Déli, não deverá ter maiores problemas ao dirigir no Estado. A única agravante é que na Índia as pessoas professam a serenidade e raramente as altercações levam motoristas às vias de fato. No Recife, não há lugar para a satyagraha. Os xingamentos são mais ruidosos e as barbeiragens são pontuadas por um gestual agressivo, pois trazem as pegadas da obediência a um código de honra pouco aparente para o visitante. Por exemplo, se você quer ultrapassar, é bem possível que tenha que fazê-lo pela faixa da direita, o que o expõe a uma manobra brusca em que, no caso de colisão, você estará errado. A lei vale para a infração, mas não para pautar a regra. Dessa forma, o motorista local ocupa sobranceiramente a faixa da esquerda e não se sensibilizará minimamente com piscadas de farol ou buzinadas. O máximo que você colherá como reação, será o tradicional gesto de “passa por cima” ou, simplesmente, o dedo médio em riste, simbolizando um pênis, em que a intenção ofensiva é inequívoca. O pisca-pisca não é acionado e virar à direita ou à esquerda são atos de puro voluntarismo. A buzina, aliás, não serve para alertar contra um perigo iminente, senão como instrumento de socialização e distribuição de simpatia. Tem mais: parar o carro a trinta metros do semáforo para se beneficiar da sombra de uma árvore, é legítimo e ninguém criticará o condutor espaçoso pela sorte que lhe coube. Bem-vindo à terra dos altos coqueiros. Aqui também é o lar dos piores motoristas do Brasil. E ai de quem diga isso.
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Como nossa gente tem muita curiosidade, dela ainda aparecerá alguém disposto a se debruçar sobre um fenômeno que leigos, como este escriba, não saberiam explicar, ou a que atribuir, com um mínimo de rigor cientifico. Trata-se do quesito de nomes próprios. Para ilustrar este ponto, caminhe por uma rua, ou um corredor de shopping, e grite bem alto: “Tiago”. Pois bem, é possível que pelo menos quinze circunstantes de uns 30 anos se virem para você imediatamente. Peça desculpas e continue sua marcha. Mais adiante, em local onde sua reputação de doido ainda não tenha chegado, grite então: “Diogo”. E eis que mais dez rapazes se voltarão para a origem da voz. Isso para não falarmos dos inúmeros apóstolos, sendo Lucas e Mateus os preferidos das mães pernambucanas. Mas singular mesmo é a predileção por Tiago. Grafado não raro com “y” ou “th”, quando não com ambos os opcionais de fábrica, é interessante que esteja disseminado em todas as classes sociais. Uma hipótese é a de que o Estado estivesse com baixa capacidade imunológica e alguma crise de autoestima lá pelos anos 1970, época de memorável visita do poeta Thiago de Mello às nossas plagas. Cavalgando o estribilho “Faz escuro mas eu canto” – ainda hoje recorrente na boca de bêbados e em exaltações de pé de cova -, o marketing do livreiro Tarcísio Pereira viralizou o nome altissonante do amazonense, e foi assim que ele tornou-se marca de resistência, sinônimo de dignidade, coroando a vocação dos pais pernambucanos de antever sempre um futuro glorioso para os filhos, o que começa, evidentemente, pelo nome. Que o diga o jogador Rosembrinque.
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Alguém proficiente em interculturalidade certamente já conhece alguns aspectos de arremate dos códigos locais. Assim sendo, só para não pecar por omissão, vale dizer que em Pernambuco as pessoas se vestem bem durante o fim de semana, mesmo que seja para visitar amigos ou parentes próximos. Os trajes de apagar fogo meio largadões de São Paulo, à base de roupa despojada e barba por fazer, em Pernambuco seriam mal vistos. Mulheres podem se enfeitar deliberadamente. Mas esteja você em restaurante ou bar, e por elegante que seja a indumentária, não vá se espantar se um homem a seu lado chamar o garçom por um original “psiu, psiu”, um sibilado tão cortante que despertará morcegos para o acasalamento e cujo ciciar excitará cigarras hibernadas. Tem mais. Na falta de saber como se dirigirem a você, já que os códigos de distância de poder (diluídos no Carnaval, em estádios de futebol e em rodas de dominó) não são perenes, não é incomum você ouvir: “Vai direto para casa?”; “Pretende parar no fruteiro?”, forma híbrida de quem está hesitando entre se deve tratá-lo de senhor ou de você. De resto, não se espante com a devoção dos torcedores de futebol às suas três principais equipes. Contrariamente ao que acontece em estados vizinhos, ninguém torce pelo Vasco, Flamengo ou Palmeiras. Clube, só três nesse mundo e, é claro, a Seleção. Os demais, em Pernambuco, são mera figuração.
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Por fim, um povo não existe sem a fratura exposta de suas carências. O brasileiro pode sonhar com a casa própria, com o carro próprio e com o fim da violência. Mas nenhum desses anseios é tão latente em Pernambuco quanto a aspiração a ter um pão decente. Recifenses em visita a Paris escamoteiam baguetes sob o travesseiro e passeiam pelos Champs-Elysées roendo pão e mordiscando sua crosta crocante em estado de graça. Quando voltam para casa, coitados, reatam com as bombas de bromato pálidas e anódinas que, além de péssimas e sem gosto, fazem grande estrago nos rins e, admite-se, castigam o fígado mais do que aguardente. Dizem uns que é porque o trigo vem do Canadá e se ressente da umidade tropical. Outros atribuem a catástrofe à malandragem dos padeiros. Uns advogam que o pão da panificadora Santa Cruz é o melhor. Outros puxam o cordão para a do Rosarinho. Outros tantos dizem que pão decente só na Diplomata, em Boa Viagem. É uma celeuma. Até um mecenas das artes como Dr. Ricardo Brennand se envolveu no embate e, temendo a cizânia do Estado pelo qual tanto fez, resolveu chamar para si o problema e mandou uma moça para Paris com o fito de aprender boulangerie de alta gama. Fato é que nem assim fomos agraciados com um pão à altura. Mas nem tudo é treva. Pois pelos ecos que chegam de todos os lados, Pernambuco encontrou por fim um endereço à altura de suas expectativas libertárias. Sim, temos pão. Mais precisamente, no Galo Padeiro, a maior unanimidade da história do Estado desde a galinha de D. Otília.
O sucesso não vem por acaso, diriam os gurus de auto-ajuda americanos. No caso da já lendária padaria da rua Capitão Lima, a metros da rua da Aurora, a aposta foi feita por quem conhece profundamente semiótica e captou a rica miríade de significados e acepções que tem a palavra galo na mitologia pernambucana. Ora, galo é sinônimo de virilidade, de masculinidade e imponência. “Cantar de galo” é uma expressão que perpassa idades e classes sociais. Não é à toa que o mais lendário cabaré do Bairro do Recife se chamava Chantecler, a versão gaulesa do galináceo. Ademais, Galo é a forma como a gente se refere àquele que é considerado o maior bloco de Carnaval do mundo, o da Madrugada, nascido no bairro de São José. Não por coincidência, é a marca preferida de azeite, no coração e no paladar dos pernambucanos que podem se permitir o luxo. E, por esses descaminhos labirínticos do inconsciente, já foi nome do mais querido dos restaurantes, o Galo de Ouro. Nessa simbologia digna de Borges, é inevitável que, lá atrás, esteja o galinho de Barcelos, aprazível cidade do Minho, símbolo da alma lusitana, e ponto de partida de alguns minhotos ilustres que aportaram à cidade Maurícia e se dedicaram ao comércio e à restauração.
Diante de tudo isso, que outro nome poderia ter a aclamada padaria que se notabiliza por servir, ademais de pão, afamados croissants? O Recife está virtualmente ajoelhado e rendido ao panifício que redimiu o Estado de seu desejo atávico por pão. Bairristas como só eles, os pernambucanos estão hoje tão siderados pela sua padaria como estavam baianos há vinte anos pela Casa Perini, de Salvador. Que bons ventos embalem a trajetória do empreendimento e que se multiplique por muitos endereços, antes que os detratores comecem a criticá-lo. A lamentar só, em meio a tanto gaudio, que as pessoas se submetam acriticamente ao império da agregação de valor. Senão, vejamos. Na França, onde os croissants se espalham pelo balcão de qualquer café até as dez horas da manhã, come-se a meia lua tal e qual ela sai do forno. No Recife, a releitura está em franco curso. Dia desses, uma matrona de fartos seios salivava ao descrever a combinação de queijo Brie com presunto de Parma, indiferente ao choque de texturas e sotaques da combinação. Ora, Madame, para queijo cremoso e presunto salgado, nada como pão baguete. O folheado do croissant é para ser apreciado sem adereços, pelo que é. Ah, Pernambuco! Por que tanto afã em mascarar o sabor rústico das coisas puras? Sim, o Galo Padeiro é um lugar sincrético e é lá que pulsa, até segunda ordem, o coração da capital do Leão do Norte.
Mais do que nunca, imortal, imortal.
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