Paulo Gustavo

O leitor brasileiro (aliás, como eu mesmo) pouco ou nada sabe da obra do filósofo e dramaturgo francês Fabrice Hadjadj. Isso pela simples razão de que ele, só há poucos anos, desembarcou editorialmente em nosso país.

É sempre prazeroso conhecer e poder compartilhar um bom autor, sobretudo quando ele, com sua literatura, nos perturba e nos fascina. É o caso. Aqui não me aterei à figura pessoal do escritor, que mal conheço. Basta dizer que tem 46 anos e reside na Suíça, onde dirige, em Friburgo, o Instituto Philanthropos, dedicado a estudos antropológicos. Hadjadj gosta de dizer, provavelmente por ecumenismo, que é um judeu, de nome árabe e confissão católica.

Foi o psiquiatra, psicanalista e escritor Marcos Creder (também dramaturgo, contista e meu amigo pessoal) que me presenteou com a peça “Jó ou a tortura pelos amigos”. Nessa primeira edição brasileira (2017), uma nota editorial informa que a peça foi escrita por encomenda  “para o lançamento do projeto ‘Átrio dos Pagãos’ (‘Parvis de Gentils’), criado há seis anos pelo papa Bento XVI para aproximar católicos e não católicos. Um parêntese: escusado dizer que muitas obras literárias de alta qualidade nascem e nasceram sob encomenda. Para ficar em dois exemplos, é o caso, entre nós, de “Morte e vida Severina”, de João Cabral, e do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.

Antes de falar propriamente do “Jó” do escritor francês, lembro aos leitores que o crítico Harold Bloom, autor de “O Cânone Ocidental” e especialista em Shakespeare, começa seu livro “Onde encontrar a sabedoria?” exatamente pela apreciação do Livro de Jó, cuja autoria, ao contrário do que comumente se pensa, é desconhecida. Para Bloom, assim como o “Hamlet”, o Jó sapiencial “é uma justificativa dos atos de Deus diante de homens e mulheres”. Segundo ele, “o Livro de Jó oferece sabedoria, mas não é algo que possamos compreender”. Ecoam assim, desde a origem, os versos ancestrais: “Mas onde encontrar a sabedoria? E onde reside o entendimento?”. Certamente, não é no coração humano. Jó, como sabemos, é um símbolo do sofrimento, da revolta  e do desamparo da humanidade. Sua incompreensão é seu limite. O mais é o poder incomensurável da criação divina. É o próprio Deus dizendo ao homem: “Eis que o temor do Senhor é a sabedoria, e apartar-se do mal é o entendimento”.

Ocorre que, como bem nota o prefaciador brasileiro, Luiz Felipe Pondé, Hadjadj opera uma inesperada associação: Jó e a alegria. A alegria à beira do abismo, no limiar do desespero… Como relembra Pondé, “O ‘erro’ de Jó foi achar-se justo e, portanto, merecedor de uma vida feliz. […] Quando não temos como ‘escapar’ da vida, a não ser entrando nela, chegamos a alegria do Jó de Hadjadj, aquela fundada numa tese cristã antiga, que é: somos livres quando amamos o mundo e não o nosso ‘pequeno eu’, idólatra de si mesmo”.

Filosofia e questões de teodiceia à parte, penso que as melhores alegrias estéticas da peça estão nas inspiradas falas dos personagens, nas quais o dramaturgo traz para o tempo presente e para o terreno do cômico (talvez uma forma de já nos encaminhar para a alegria…), a gravidade do espírito bíblico de par com uma corrosiva crítica das relações humanas atuais. As falas dos personagens — Deus, Demônio, Jó, Mulher de Jó, Bildade, Zofar, A Jovem e Eliú — distribuem-se em doze cenas, nas quais o próprio sofrimento de Jó parece fazê-lo enxergar a maldade e a inanidade de tudo e de todos. Nessas falas, o que mais nos chama a atenção é a alta carga metafórica do discurso; é ela que nos eletriza em cada cena, fazendo com que, por trás das imagens, vejamos o antagonismo e a solidão de Jó diante da realidade do mundo.

A linguagem contemporânea da peça atualiza as possibilidades inspiradoras do texto bíblico. A sabedoria então parece surgir do embate que as palavras de Jó e de seus antagonistas expressam em delirantes duetos. É uma espécie de dura, nua e surpreendente poesia, como se à melancolia da derrota se misturassem as imagens de um Ionesco ou de um Rimbaud. Os súbitos contrastes florescem tanto em achados cômicos e irônicos como em tristes rupturas, o que dá uma agilidade interna a todas as cenas e à peça como um todo. Permitam-me o leitor que ilustre abaixo, com um breve excerto, o que tento dizer.

Elifaz: Você pratica a posição do lótus?

: Eu pratico muito a posição do rato na ratoeira.

Elifaz: Conhece a meditação transcendental?

: Não, mas conheço a burrice astronômica.

Elifaz: Come coisas saudáveis, verduras orgânicas?

: Não, mas vomito com muita naturalidade.

Elifaz: Então inspire profundamente pelo nariz, por favor. Depois pelos lábios, em círculo, assim, formando um bico, e expire suavemente.

: Ótimo conselho para quem entra na câmara de gás.

Elifaz: Você está muito cortical, Jó, cortical demais.

: Cortical? Você pode me descorticalizar?

Elifaz: Cortical quer dizer que você se questiona demais, funciona muito no nível do seu córtex cerebral, e seria melhor agora fortalecer seu cérebro reptiliano e se reajustar aos ritmos da terra.

: Meu cérebro reptiliano? É verdade que quem rasteja não pode mais cair.”

À reflexão filosófica a que o tema milenar de Jó nos arrasta na tradição literária ocidental, o autor francês soma, com hábil ironia, sua crítica antropológica às novas presunções e circunstâncias humanas. Mas, ao contrário de muitos outros escritores, Hadjadj, um mestre do paradoxo, nos deixa no limiar da Esperança e, conforme as palavras finais do seu “Jó”, tem fé que “a Alegria dos felizes se transforme também na Alegria dos derrotados”. Enfim, após cruzada a porta antropológica, o escritor francês parece nos apontar a porta da mística. Mas com certeza é a porta estética, belamente escancarada, que confere a esse “Jó” contemporâneo o prazer da leitura.

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