Na terça-feira, 31 de outubro, o mundo protestante, cerca de 800 milhões de praticantes, comemorou os 500 anos da Reforma, tomando como ponto de partida as 95 Teses, que um monge agostiniano alemão, de apenas 34 anos, Martinho Lutero, colocou nas portas da igreja de Witemberg, denunciando o comércio da venda de indulgências. Foi um gesto de extraordinária coragem, pois acabou se transformando num confronto com o Papa Leão X, numa época em que as fogueiras da Inquisição ainda estavam acesas.
Tendo como referência esses 500 anos das 95 Teses de protesto de Lutero, o editorial do jornal suíço Le Temps falou sobre a Reforma, comentando vivermos no pós-protestantismo.
A prova seriam as igrejas vazias na cidade “protestante” de Zurique, os cofres das igrejas igualmente vazios e o projeto de venderem os templos praticamente sem utilidade. Na Europa, os protestantes praticantes baixaram de 22 a 16% em cinquenta anos e na Escandinávia só 6% dos protestantes são praticantes.
Mas o filósofo Regis Debray, no livro recém-publicado O Novo Poder, assimila a eleição de Emanuel Macron à presidência com seu estilo trabalhador, sério, responsável, transparente e seu liberalismo americanizado à um ressurgimento do protestantismo na França. Os protestantes conseguiram se implantar no país com o Edito de Nantes, assinado pelo rei Henri IV em 1598, ao fim da guerra de religião, mas anulado quase cem anos depois por Luís XIV, colocando os protestantes huguenotes na clandestinidade.
Debray fala em neo-protestantismo laico na França, mesmo se existem apenas 3% de protestantes no país. Mas para ele, valem os valores defendidos pelo novo presidente Macron, em contraposição aos que norteavam até agora a política francesa, calcados numa tradição católica laica. Mas se engana ao incorporar, na sua análise, o movimento evangélico conservador vindo da África com os imigrantes (semelhante ao verificado no Brasil), que se multiplica nas periferias e marca sua diferença com os muçulmanos.
Existem, portanto, duas linhagens protestantes, com padrões constitutivos diferentes mas convivendo sob a mesma denominação – a derivada do original de Lutero e outros reformadores dessa época, Calvino, Farel. Zwinglio; e a vinda dos desvios fundamentalistas conservadores que reproduziram de formas diferentes o obscurantismo, superstições, crendices, conservadorismo e a tendência de interferir na sociedade para obrigar a observância de seus critérios. É o caso do evangelismo em expansão no Brasil, não laico mas de tendência teocrática, interessado em intervir na política para poder jugular as artes e os comportamentos e leis sociais considerados pecaminosos.
Ao contrário, a Reforma de Lutero e outros reformadores foi a ruptura com tudo quanto a Igreja Católica significava em termos de monopólio da verdade ao ter só ela o acesso à Bíblia, de censura ao fixar os limites determinados pelos dogmas, de controle do indivíduo e do pensamento livre restringindo a interpretação religiosa aos sacerdotes formados pelo Vaticano. Evidentemente, não foi um fenômeno isolado, mas integrado dentro do Renascimento, da redescoberta dos pensadores pagãos gregos e ao que equivalia à Internet de hoje – a prensa e tipografia de Gutenberg permitindo a publicação de livros, inicialmente os Evangelhos e a Bíblia, mas a porta ficou aberta para livros não religiosos e mesmo antirreligiosos.
Quando Lutero defendeu o livre exame ou a livre interpretação da Bíblia por qualquer leitor, lançou o reconhecimento da liberdade de pensamento e de expressão. Ao agir como um talibã na destruição das imagens dentro das igrejas, acabando com o culto à mãe biológica de Jesus, retirando todos os santos intercessores e reduzindo apenas à mediação de Jesus, na relação direta dos homens com Deus, Lutero liberou o uso da inteligência humana também nas questões religiosas, sem repressão e sem a limitação dos dogmas, criando condições para o racionalismo e para o próprio Iluminismo, cujo desenvolvimento foi levando à laicidade nas sociedades européias e à perda de importância da religião até o materialismo dos nossos dias, onde a transcendência necessária nas sociedades, segundo Debray, deixa de ser a da divindade para ser substituída por objetivos coletivos práticos agregadores como a defesa dos direitos humanos ou a defesa ambiental do planeta, para citar só esses dois exemplos.
Ou seja, o editorialista do jornal Le Temps não percebeu que a retração e talvez desaparecimento da religião protestante da linhagem original, intelectual e racional da Reforma, é consequência do seu próprio DNA. O desvio fundamentalista, que ocorre igualmente na religião muçulmana, sempre haverá porque para muitos perdura a necessidade da transcendência divina, seja qual for, geradora de obscurantismos e fanatismos tranquilizadores.
(*) Rui Martins é jornallista e escritor, correspondente na Suiça do Expresso de Lisboa, do Correio do Brasil, e da RFI.
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