Segundo capítulo
De Capanda fomos novamente redistribuídos, às vésperas da eleição, agora para a capital da província de Malange. Entre civis e militares, mais de mil observadores eleitorais haviam sido distribuídos pelas zonas eleitorais na semana anterior às eleições, por uma extensão de mais de um milhão de quilômetros quadrados. Dormimos numa casa na cidade de Malange, e dali partiriam de madrugada os jipes para os postos da área rural. O jipe que me levou era dirigido por militar e tinha a presença de um segundo militar.
Eu e uma americana suave, Rosalie Nathan, formamos a dupla de OEs civis do percurso pré-estabelecido daquele jipe: região de Pungo Andongo, Cacuso e Calandula. O mais impressionante eram as longas filas diante das cabanas que eram os postos de votação, muitas mulheres com crianças de colo, sob o sol forte, no caminho de terra sem trato, mal havia capim raso, quase nada de árvores para sombra, alguns cabritos soltos. Angola estava sem guerra há apenas 17 meses, e filas e mais filas de gente paciente indicavam o quanto ansiavam que as eleições trouxessem paz.
O que foram as eleições está nos meus relatórios ao coordenador na província de Malange, escritos à mão ao calor da hora. Nossos relatórios não tinham caráter oficial, eram informações que se juntaram em Luanda. O único relatório de UNAVEM II com caráter oficial foi o de Margaret Anstee, representante do Secretário Geral da ONU. Terminado o trabalho, dormimos na noite de 29 para 30 de setembro em um convento, não sei se ainda na província de Malange ou já em Kwanza. Chegamos bem tarde, mas o frade que nos acolheu calorosamente queria conversar, sabia de tudo o que estava acontecendo no Brasil naquele momento, queria saber mais. Nós não sabíamos, e precisávamos escrever os relatórios que os observadores eleitorais deviam entregar aos coordenadores locais em cada província.
Dali em diante já era caminho de volta, via Capanda, Malange, Luanda e Rio de Janeiro. O voo Luanda-Rio, de apenas 5 horas, vinha lotado de angolanos, as crianças vestidas de suas melhores roupas de domingo. No Aeroporto do Galeão já esperavam os angolanos que partiam de volta para Luanda, com bagagem que causava espanto, pois incluía geladeiras e pneus. Não deveria ter ficado admirada, pois sabia que tudo o que consumíamos no acampamento da Odebrecht em Capanda era importado do Brasil.
Malange, sexta-feira 2 de outubro de 1992
Para: Peter Scott-Bowden
De: Rosalie Nathan T2351
Helga Hoffmann T2302
Tema: Observações sobre a área de Calandula
- Estes comentários são baseados na observação do posto eleitoral PS37 (rural), a contagem rápida em PS4 (também rural), e visitas a cerca de 7 postos eleitorais durante o período de contagem dos votos, bem como em rodar pela região. Fizemos observação mais prolongada nos postos eleitorais 26 e 44.
- Em geral a atmosfera esteve calma e não testemunhamos nenhum caso de coerção.
- Notamos dificuldades com o uso do kit de votação (conjunto de materiais para a votação). Dificuldades tão simples como:
- a) antes de chegarem os caixotes de madeira com os kits recebemos várias perguntas sobre se incluiriam velas ou lamparinas
- b) os caixotes de madeira eram muito difíceis de abrir
- c) alguns postos eleitorais estavam fazendo seu trabalho no chão (não havia mesas nem cadeiras)
- d) em um dos postos eleitorais observados os funcionários eleitorais (angolanos) não sabiam como fechar os sacos (envelopões) plásticos com os votos e estavam usando fitas adesivas (o que levava um tempo muito longo)
- e) em geral, porque os funcionários eleitorais queriam ser precisos (perfeitos, ou quase) sobre os procedimentos, eles se preocuparam muito com detalhes, como, por exemplo, durante a contagem, perguntavam “mostrar cada cédula aos fiscais dos partidos imediatamente depois de abrir?” ou “abrir todas as cédulas e em seguida mostrá-las aos fiscais dos partidos”? “dobrar as cédulas de novo antes de colocá-las no envelopão plástico depois da contagem?”
- Por todas as razões listadas, o processo caminhou muito lentamente. Havia filas enormes (mais de 300 –trezentas – pessoas), algumas esperando o dia inteiro desde as 5 da manhã. A evidência é que os funcionários eleitorais angolanos ficaram 3 dias praticamente sem dormir, porque a votação tinha que continuar depois das 7 da noite, e a contagem, em especial, procedia com pequenas lamparinas de azeite (foi assim em nossos postos de “contagem rápida” e em várias outros pelos quais passamos), até meia noite e mesmo mais tarde. Era difícil de enxergar com as pequenas lamparinas. As rações de alimentos distribuídas aos funcionários eleitorais não duraram até a contagem.
- Todas as pequenas discussões que presenciamos entre delegados de UNITA e do MPLA eram relativas a interpretações das regras de procedimento excessivamente detalhadas. Membros do comitê diretor de “5 membros” divergiam entre si sobre como interpretar a lei eleitoral e as regras.
- O maior gargalo foi definitivamente transporte (e 10 vezes transporte). Os funcionários eleitorais em alguns casos caminharam longas distâncias carregando as caixas de votação do posto eleitoral até a municipalidade, pois reunir essas caixas nos baús de madeira ficava pesado demais para o transporte. Em alguns casos o conflito foi sobre quem deveria ser transportado primeiro (funcionários eleitorais ou fiscais dos partidos? ou quais membros entre os funcionários eleitorais?), quando o transporte não era suficiente para todos, e os demais – por exemplo, no caso que vimos – tinham que caminhar por três horas. [Traduzido do meu manuscrito inglês]
Malange, 4 de outubro de 1992
Para: Peter Scott-Bowden, Coordenador
De: Helga Hoffmann T2303
Ref.: Melhorias para uma futura missão de observadores eleitorais?
Você perguntou sobre melhorias no kit para votação e informação entregue aos observadores eleitorais, e assim envio umas poucas notas:
– O kit dado aos observadores eleitorais em UNAVEM II é bom. O grande saco plástico era fraco e arrebentava com frequência e o flashlight teve altas taxas de falha. Talvez da próxima vez tampões para ouvidos seriam uma boa coisa, caso de novo se planejem tantas horas de voo em helicóptero. (Em Moçambique seria ainda mais necessário usar helicópteros.)
– Nosso time jamais usou as réguas do kit, mas quem sabe outros tiveram que ler mapas das estradas.
– O pequeno kit médico da ONU também me pareceu adequado.
– Me preocupa um pouco o pacote militar marrom com as rações de alimentos que foram distribuídas. Os funcionários da ONU leem inglês e assim sabiam o que o pacote continha. Mas esses pacotes foram distribuídos por dois dias aos funcionários eleitorais angolanos nas aldeias, onde ninguém sabe inglês. O pacote contém um envelope com pó para purificar água. Quão tóxico é esse pó se for engolido sozinho junto com a comida? [Traduzido do meu manuscrito inglês]
A modo de conclusão
Já estávamos de volta ao Secretariado em Nova York quando foi anunciado oficialmente o resultado, em 17 de outubro. A ONU considerou a eleição presidencial e parlamentar de 29 e 30 de setembro em Angola “em geral livre e justa”: Presidente José Eduardo dos Santos (MPLA) 49,57%, Dr. Jonas Savimbi (UNITA) 40,07. Parlamentar: MPLA 53,74%, UNITA 34,10%. A UNITA não aceitou, e a guerra recomeçou. A região de Capanda foi tomada por forças da UNITA, 3 técnicos russos foram mortos perto do canteiro de obras, outros 55 russos e 18 brasileiros foram feitos reféns. Com seu plano de evacuação a Odebrecht conseguiu retirar os demais por terra e ar. Os reféns foram mais tarde libertados com a ajuda de um padre. As forças da UNITA destruíram o aeroporto, um avião, o canteiro industrial, saquearam todas as instalações levando roupa e comida, e equipamentos eletroeletrônicos. Foram destruídos os cultivos que ajudavam a abastecer o acampamento, que então havia chegado a 5 mil trabalhadores, entre angolanos, russos, brasileiros, portugueses e de outras nacionalidades. Somente 5 anos mais tarde foi possível retomar os trabalhos, começando pelos serviços de retirada das minas. Alguns anos depois haveria novo abandono da obra por falta de segurança. É claro que essas circunstâncias encareciam a obra, tanto que nem há como fazer comparação de custo em condições mais ou menos normais.
Quando voltamos de Luanda, os três economistas no Secretariado fizemos uma apresentação. Angola, com uns US$700 de renda per capita, não era o país mais pobre da África subsaariana. Tinha petróleo, diamantes, uma costa com muito peixe, terra de sobra que parecia fértil, alguns rios com bastante água. Mas nos surpreendeu o nível do atraso, qualquer indicador que se tomasse: sem eletricidade, as poucas linhas de transmissão danificadas na guerra; sem transporte, sem estradas, uns trechos pavimentados desertos eram usados para secar mandioca; cabras eram deixadas soltas, quase selvagens; casas destruídas em Calandula, em ruínas o hotel que existira junto às famosas quedas d’água; baixo nível de interação entre as pessoas, isto é, de organização; precária a disciplina de trabalho e baixa urbanização, mesmo dentro da cidade (como o lixo que em alguns edifícios era simplesmente jogado pela janela); não havia cultivo, exceto mandioca, usada para fazer funge, um mingau típico na região norte de Angola. Lá no acampamento de Capanda um dos técnicos havia contado que a Odebrecht queria instalar uma fábrica de farinha de mandioca, mas a barreira era logística, as pequenas plantações de mandioca esparsas e espalhadas por enormes extensões. Havia uma enorme distância a percorrer para chegar a níveis ainda de subdesenvolvimento como os da América Latina.
Recomeçada a guerra, esfriado o entusiasmo dos organizadores de eleições, a tentação era concluir que os economistas não poderiam fazer nada enquanto os políticos não se entendessem. Não é fácil construir democracia in loco. A constelação política interna tem que permitir que o país solicite a intervenção externa, sem a qual a ONU não pode agir. E a correlação de forças externa tem que permitir a aprovação dos componentes dessa intervenção pelo Conselho de Segurança.
O mandato da UNAVEM foi o resultado de meses de negociação entre as duas partes angolanas, intermediada por Portugal, e tendo a ex-União Soviética e os Estados Unidos mais no papel de observadores. Haveria algum apoio, com a conversão de recursos militares em operação pela paz, como os helicópteros da Rússia ou os equipamentos de comunicação e rações dos Estados Unidos. Há limites para as operações internacionais, até mesmo financeiros. Repetiu-se muito a conta de que em Angola a ONU teve um décimo dos recursos aplicados na eleição da Namíbia, para um país de população dez vezes maior e extensão bem maior. Dados os recursos, a ONU não pôde ter o rigor ideal. Nem o treinamento e o comportamento dos funcionários foram sempre corretos, apesar da dedicação. Ainda que pareça incrível, houve casos em que OEs trocaram suas braçadeiras e bonés que os identificavam como fiscais da ONU por camisetas dos partidos políticos envolvidos, como lembranças. Será possível que não pensaram que uma urna poderia ser roubada por alguém usando a braçadeira da ONU?
Um relatório de Margaret Anstee na primeira semana de setembro registrou que a desmobilização e o recolhimento de armas só chegavam a 40%. Mas a ONU não tinha, pelo mandato aprovado, o poder de adiar as eleições marcadas.
E é preciso ter algo a perder, como empregos, treinamento, eletricidade, a percepção de que se avança no país. O que se fazia em Capanda nesse sentido, por exemplo, era também uma contribuição à paz. “Nada a perder” induz mais facilmente à guerra e à destruição. A atitude contrária à exportação de serviços, inclusive os serviços de construção em que o Brasil tinha e continua tendo excelência, é simplista: a economia não funciona como conjunto de soma zero, uma obra no exterior não equivale necessariamente a uma obra que se deixou de fazer no interior do país. A construção da usina de Capanda é um feito – de fato uma imensa peripécia – da qual os brasileiros podem e devem se orgulhar.
A guerra civil só terminou em 2002 e desde então Angola vem crescendo a taxas elevadas. A Hidrelétrica de Capanda já está funcionando e abastece algumas áreas no norte do país. A reconstrução da infraestrutura apenas começou, mas Angola já não é a desolação que viram os OEs em 1992.
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