Fernando Dourado

Viagem ao passado.

Durante muitos anos, pareceu-me fora de propósito e de proporção que uma simples viagem de carro com meu pai pudesse render tantas reminiscências ao longo de uma vida fértil em tantas outras viagens como foi a minha. Isso era tanto mais desconcertante quanto não se tratou esta tal de uma excursão magnífica, a lugares majestosos ou exuberantes. Pelo contrário, o roteiro não poderia ter sido mais rústico. Mas hoje, já não preciso de tantos elementos adicionais de reflexão para concluir que, na verdade, o encanto residia justamente neste ponto. Pois jogados no coração do Seridó em plena seca dos anos 1970, a bordo de um valente fusca azul-marinho, na verdade ali éramos só eu e ele. E durante aqueles dias, eu perceberia ao vivo e de perto uma característica fundamental do ser humano. Qual seja, a de que ele não existe numa individualidade isolada. Ou seja, ninguém é só o que é, se é que consegue sê-lo a pleno. O que vale dizer que o sujeito pode se transformar, segundo as demais pessoas que se incorporem a seu convívio. Mas, é claro, esse simulacro de teoria comportamental, eu só apreenderia mais tarde.  Muito embora nada me impeça de associar as etapas percorridas naquela viagem a uma descoberta especial, se é que a tanto ainda me permite a memória, quase meio século depois de ocorridos os tais eventos que aqui relatarei.

Mas para que ninguém pense que a frase de abertura desse arrazoado se prendeu a mero recurso retórico para me situar artificialmente no meio de um falso dilema, é bom que esclareça desde quando deixou de me parecer fora de propósito que a tal viagem me tenha ficado transfixada no imaginário e, dessa forma, varado muitas décadas. Pois bem, foi ao ler uma biografia do escritor polonês Isaac Bashevis Singer que me chamaram a atenção dois fatos seminais. O primeiro foi que ele haveria sempre de se recordar de uma viagem precária que fizera entre Leoncin e Varsóvia, a bordo de uma carruagem atulhada de bagagem. Pequeno de tudo, a mãe – sendo ela própria uma criatura de prodigiosa memória -, espantou-se mais de uma vez ao constatar o quanto aquela criança franzina assimilara tudo o que vira pelo caminho. No mesmo livro, li que Singer foi morar numa rua do bairro judaico da capital polonesa, mais precisamente na Krochmalna. Pois bem, ele próprio admitiu que toda sua literatura se baseou vida afora nos tipos humanos que ele vira desfilar naquela artéria onde viviam, ombro a ombro, muitas famílias pobres. Numa taverna, reuniam-se descuidistas, ladrões e proxenetas. Na esquina seguinte, um santo rabino que só queria paz de espírito para estudar a Torá, e que tirava o sustento da mediação de pequenos conflitos em torno das leis dietárias do abate kosher. Mais adiante, faziam ponto as prostitutas que se entregavam por vinte groschen.

Isso dito, convém que nos situemos quanto ao básico desta narrativa, a que passarei em seguida. Ora, eu era um menino. Meu pai, era um homem de 40 anos, funcionário de uma montadora da Grande São Paulo em cujo escritório recifense trabalhava. Aquela viagem, e estou certo de que não me engano, prendia-se a visitar um certo BEC – sigla para Batalhão de Engenharia e Construção -, lotado em Picos, Piaui, onde ele iria tratar com um coronel sobre a entrega de caminhões. Segundo me disse no caminho, mal cruzamos a fronteira da Paraíba, a cidade piauiense era o marco zero da delirante rodovia Transamazônica, a estrada idealizada pelos militares para ocupar a selva, um imenso descalabro geopolítico. A caminho de Caicó, terra de seu bom amigo Sebastião Torres, de quem falaria com carinho e reconhecimento até o fim da vida, aconteceu um incidente nada trivial. Estávamos quase em Currais Novos quando um caminhão assomou por trás de nosso carro minúsculo. Papai já vinha monitorando suas investidas pelo retrovisor há algum tempo e, enquanto me falava da xelita, abundante na região, por alguma razão se recusava a dar passagem ao utilitário, e por isso o motorista tanto nos azucrinava. Até que, rendido, cedeu. Fomos então assoberbados pelo barulho ensurdecedor de uma buzina naval e sufocados por uma nuvem de pó fino e persistente, o que levou a que ele parasse numa espécie de acostamento.

Antecipando-se talvez à decepção que jazia em meu olhar, pois sabia que eu me acostumara a vê-lo valente e temido no asfalto, tomou água por um longo momento e, entre aliviado e abatido, confessou que o combate ali era desigual. “Se eu tivesse insistido, esse cara teria nos jogado para fora da estrada. Aqui ele pode mais do que a gente”. Retomamos a marcha lentamente e dali em diante vi que ele deixaria que outros carros nos ultrapassassem. Ora, para quem se denominava o “Capitão do Volante”, no Recife, para deleite do primo Marcelo Caldas, que ia às lágrimas com suas diatribes, a estrada ali dava uma estranha contraprova de sua onipotência. E, como se quisesse mudar de assunto, falou do caulim: “Os coitados que trabalham com isso têm todo tipo de doença de pulmão até os 30 anos. Ganham uma miséria e morrem cedo”. Já entardecia quando estacionamos ao lado de uma Frente de Trabalho, como eram chamados os canteiros onde os retirantes da estiagem se ocupavam. Conversamos, então, com uma família exausta cujo patriarca se apoiava no cabo de uma pá. Eles eram dali mesmo e papai lhes deu uma cédula roxa. Partimos em silêncio. Quando nascera, em 1927, ainda se falava da seca de 1915. Muitos anos mais tarde, conversando no avião com o sindicalista e deputado Vicentinho, ele disse:”Bem que esse papo pode ter sido comigo, rapaz. Eu trabalhava numa frente daquelas na região”. E sorrimos com cumplicidade.

Tudo o que acontecera até o primeiro pernoite no hotel Tungstênio, já não fora pouca coisa. Deambulando pelos corredores enormes, a impressão que eu tinha é que aquele dia não fora como outro qualquer. Ora, se mamãe estivesse ali, ele jamais teria se deixado ultrapassar pelo caminhão, nem que ela tivesse entrado em pânico. Ainda hoje, aos 85 anos, ela se apavora diante do mínimo incidente automobilístico, fobia bem própria dos que nunca dirigiram. O tal ponto de honra teria prevalecido. Em segundo lugar, falar dos pulmões deblaterados dos operários poderia ter sido considerado tema inadequado porque era triste, e podia impressionar negativamente. Para quem fora criada por uma tia-avó, viúva de um combatente da Guerra do Paraguai, o direito à infância é sagrado e ela não se constrange em estendê-lo até os 60 anos de seus filhos, se algum deles aceitar as prebendas devidas. Para ela, chocolate tem que ser doce, café tem que levar muito açúcar e o dia começa com geleia de morango. Como falar de tísicos para as crianças? Por fim, dificilmente teríamos parado para conversar com o pessoal das frentes de trabalho. Além de se inserirem no quadro dos passeios melancólicos, havia sim o risco de um assalto, de um saque, de uma cena violenta, ditada pela fome. Longe dela, pelo jeito, papai era mais humilde, mais humano e menos violento. Como seria ele de verdade?

Quando afinal chegamos a Caicó, onde ficaríamos dois dias na boa companhia de seu amigo Sebastião Torres, um homem que jamais viera ao Recife sem trazer uma bela manta de carne de sol e deliciosos rolos de linguiça do sertão, abriram-se as portas do paraíso. Hospedados no hotel Guanabara, papai me fez confidências sobre os atributos físicos da vigorosa filha do Seridó, que nos servia suco de manga licoroso no café da manhã. “Gostosona, não é? Viu as pernas? Isso é porque come macaxeira todo dia”. Sua família provavelmente cultivara algodão, especulou. Será que eu já ouvira falar no famoso mocó-seridó fibra longa? “Era usado na camisaria mais fina que se pudesse encontrar em Londres, sabia? Era páreo para o algodão egípcio. Então veio a praga do bicudo e acabou com tudo”. Eu aprenderia dali em diante que as lavouras brasileiras estavam paradoxalmente sujeitas a toda sorte de conspirações vindas de fora. Como isso se coadunava com uma natureza tão benevolente? O algodão perecera por causa do bicudo. Mais adiante, seria o cacau com a tal vassoura de bruxa. Os laranjais de São Paulo, ao sul do rio Tietê, sucumbiriam ao amarelinho, nome popular para a clorose variegada dos citros. Da Amazônia, os ingleses nos levaram as seringueiras para a Malásia. O açúcar de Pernambuco e Alagoas, nos deformara o caráter. Mas eu estava adorando Caicó, no Seridó.

A estrada

De volta à estrada, pela primeira vez senti que gostava mais dela do que propriamente do destino. Indo de um ponto a outro, estávamos abertos à conversa. Tudo era tema para quem tinha assunto. O que ficara para trás; o que viria pela frente; as paisagens físicas e humanas; os livros já lidos; as cascavéis da Caatinga; o sofrimento humano; as carcaças em decomposição sob uma nuvem de urubus; os postos de abastecimento e o cheiro de gasolina que fazia tremeluzir a visão; a possibilidade de comer uma arribaçã salgada na próxima parada; as confidências de colégio; o futuro, esse estuário de possibilidades. Sim, o bom era a estrada, ora com uma camada de asfalto, ora cheia de pedregulhos. Ao sermos ultrapassados, era minha missão escorar o pára-brisa com um pano, fazendo força de dentro para fora para evitar que este se estilhaçasse em milhares de pedacinhos. Isso já nos acontecera a caminho de Garanhuns uma vez, a bordo de uma Rural. Por baixa que fosse a velocidade, o vento quente era insuportável e a quantidade de borboletas, abelhas e mariposas que se chocavam contra nossos rostos era impressionante. A caminho do Piaui, à medida que nos embrenhávamos na aridez mais absoluta, eu já fantasiava nossa chegada a Natal, alguns dias pela frente, quando papai prometera que ficaríamos no mítico hotel dos Três Reis Magos, que tinha ótima piscina. A próxima escala é, desde então, sempre a melhor.

Em Açu, tomamos um bom banho numa espécie de córrego, como se fosse o braço de um açude. Falando sobre as asperezas da vida, papai me contou que certa vez se hospedara por ali mesmo num lugar tão diabolicamente quente, sem sequer um ventilador de consolo, que enchera a banheira até a borda e lá mesmo adormecera. Ao cabo de um cochilo longo, ditado pela exaustão, viu que o nariz estava vermelho das picadas de muriçocas impertinentes. As orelhas também coçavam e eram duas chagas. Em suas andanças, não fora só beleza que presenciara. Certa vez viu uma criança morrer intoxicada por conta de ter roído macaxeira crua. Gostava de viajar, isso era certo. Atendia grandes clientes e fizera bons amigos, o maior dos patrimônios. Mas não era à toa que gostava de chegar em casa, e de se deixar cair na cama por um par de dias. Se lhe telefonassem do escritório, não podíamos dizer que já estava de volta ao Recife. Mas isso era um perigo se a chamada fosse atendida por mamãe. Assertiva e segura, nessas horas ela gaguejava, suava frio, não sabia o que fazer das mãos. Então a secretária se apiedava do transtorno audível e dizia com ironia: “Pois bem, quando ele chegar, avise para ligar para nosso gerente, por favor”. Mortificada, alheia aos desconfortos da rua – que para ela sempre foi festa -, seu lado era o de quem estava de fora, e não de dentro de seus domínios. “Não sei mentir”, pretextava.

Piaui

A primeira noite em Picos foi memorável por conta de um delicioso sorvete de abacate que comprávamos na rua principal. Como se obedecendo a um comando estabelecido há muito tempo, as pessoas passeavam pela praça em sentido horário. Quem vinha de fora e quisesse ver e ser visto, fazia o footing na direção contrária. Era toda uma maravilha acompanhar o olhar daquelas meninas queimadas de sol, de cabelos afogueados, seios salientes e um riso maroto a lhes vincar a boca. Logo aquele mundo passaria a me pertencer, pensava eu. Ou o contrário, o que dava quase no mesmo. Chegando ao hotel, abrimos a janela e então veio a parte ruim da viagem. Enquanto papai roncava de cansaço, lá vi eu umas luzes que cortavam o céu numa trajetória linear, emitindo um facho como um farol, para logo desaparecer. Mas não era farol por duas razões óbvias: estávamos muito longe do mar. Ademais, os intervalos não eram regulares. Podíamos ter dez minutos de breu absoluto. E, de repente, lá vinha um faixo cortando o céu de novo. Não havia dúvida: Picos era ponto de pouso de OVNI´s. Não sei como não figurara em Eram os Deuses astronautas?, do suíço Erich Von Däniken. Podia o professor Rubem Franca vociferar contra o opúsculo, mas a verdade estava ali e meus olhos não mentiam. Será que eles aterrissariam? Poderiam nos tomar como reféns? Voltaríamos a ver o Recife?

Obviamente não falei de meu achado para papai na manhã seguinte. Sei que ele tampouco gostava muito da temática e, por alguma razão, achava ufologia uma pseudo-ciência de lunáticos, charlatães e desorbitados. Ademais, eu nada tinha a ganhar se demonstrasse medo, justamente agora que estava ganhando confiança e construindo uma relação mais igualitária com ele. Falar disso poderia fazer com que perdesse a concentração para a reunião com o pessoal do BEC, e isso poderia comprometer a construção da própria Transamazônica. Pensando no nexo entre aquela terra seca e quente com os macacos saltitantes e as araras coloridas da selva, acompanhei papai até o canteiro e vi de perto caminhões imensos. Alçaram-me à boleia de um deles e buzinei. Passaríamos o dia lá; lá mesmo almoçaríamos e depois subiríamos para Teresina, via Floriano. Mas já na saída da cidade, vi que havia um morro alto por onde transitavam carros. Ora, não foi muito difícil concluir que aquelas luzes que eu via da cama, nada mais eram do que os fortes faróis dos utilitários que transitavam por ali. Como tínhamos chegado tarde à cidade, eu não atinara para a topografia. Muitos anos depois, em Innsbruck, Santiago ou Salt Lake City, eu já não me deixaria surpreender por picos nevados ao alcance da janela ao amanhecer. Aprendera que a noite engana e que as perguntas certas às pessoas certas na chegada, podem fazer a diferença ao despertar.

Atravessamos então o Piaui rumo à capital. Quando lá chegamos, tivemos o primeiro dos dois incidentes de restaurante que marcariam essa viagem iniciática. Olhando em retrospectiva, vejo que as contendas nos saloons do Faroeste se deviam à observância a códigos de respeito e de afirmação, próprios do reino animal. Em Teresina, chegamos a uma churrascaria onde meia cidade estava acantonada. Entretida com os nacos de carne dos enormes espetos, ali servidos por rapazes de bombacha e lenço vermelho no pescoço, a boa gente da capital escutava, transida, os movimentos de uma palpitante partida de futebol. A estridência do narrador do rádio era ensurdecedora. Papai chamou o chefe dos garçons, um senhor muito obsequioso. “Quem está jogando, mestre?”. “É o Flamengo, cavalheiro, é jogo decisivo”. “O Flamengo do Rio, você quer dizer”, disse com malícia. “Não, não, é o daqui mesmo”. “Então baixa o volume dessa merda que isso não pode interessar a ninguém de bom senso”. Conciliador, o homem foi lá e baixou um tantinho.  A gritaria foi geral e cheguei a sugerir a papai que saíssemos dali. “De jeito e maneira”, como gostava de dizer. Então, a pressão foi diminuindo e a audiência foi se esquecendo de nossa existência. Ora, papai, quem disse que futebol é terreno para o bom senso? “São onze macacos suados correndo atrás de uma bola. E no Piaui ainda por cima”, concluiu.

De volta ao Rio Grande do Norte

Em dado entardecer, chegamos a Natal. O orçamento podia não estar folgado, mas papai cumpriu a promessa de ficarmos no hotel dos Três Reis Magos. Na piscina, mal chegamos, ele se muniu de um gim-tônica e eu de uma soda limonada. Éramos só nós na água iluminada e foi mesmo um lindo anoitecer. No dia seguinte, voltaríamos para o Recife via João Pessoa. Depois do café da manhã, pedi que me desse uns minutos na piscina até a hora do almoço, no que ele consentiu. Uma moça ensaiava umas braçadas bem no meio. Um rapaz, com cara e atitude dos recém-casados de então, perguntava-lhe se a água estava agradável. Chegando perto de papai, ele me segredou: “Você que está na água, veja se não tem um cabaço boiando por aí”. Custei a entender que aquilo era a alusão a uma virgindade recém-perdida. Mas quando compreendi, olhei com cautela o fundo das águas, à procura concreta do que poderia ser um cabaço. Imaginei alguma coisa com formato de ouriço a vagar pelo ralo. Ou mesmo uma espécie de carapaça de caranguejo inerte. Na saída do hotel, ainda demos um longo passeio pela orla. Eu só voltaria a fazer outro ali mesmo 25 anos mais tarde. Felizes com o que tínhamos vivido até então, mal sabia que se armava nova cena de pugilato ainda no Rio Grande do Norte. E ela aconteceria por ali mesmo, bem perto de onde estávamos.

Foi assim. Eu imaginava que comeríamos alguma coisa na estrada para ganhar tempo. Mas papai disse que não se podia ir a Natal e não provar a carne de sol de “seu” Lira. Contava a lenda que ele fazia 25 porções ao dia e nem uma a mais. A carne de sol era amaciada no leite, era tenra como nenhuma e vinha acompanhada de farofa, feijão verde, manteiga de garrafa e demais adereços. Lira, o proprietário, era então o que se chamava no Nordeste de um cavalo batizado. Ciente de sua força e fiel à disciplina que estabeleceu com sabedoria, não fugia à regra pétrea do estabelecimento. Em favor de sua rudeza e desassombro, dizia-se que até mesmo Mario Andreazza, o vice-Rei do Nordeste, o poderoso Ministro do Interior, o amante da Primeira-Dama e coronel da reserva, fora interpelado por Lira por ter encostado a nádega na mesa, enquanto esperava o governador. “Sente na cadeira, homem, a mesa é para comer, não para acomodar a bunda”. Não somente foi acatado como ainda ouviu desculpas. Pois foi a este homem que papai pediu carne de sol para dois. “Por hoje já acabou. Agora só amanhã”. Papai nem pestanejou; “E traga também uma cerveja e uma soda para o menino. E se apresse que ainda vamos para o Recife”. Os dois se miraram por intermináveis segundos. Lira por fim baixou a vista, resmungou, sumiu e o almoço foi servido. “Nunca esqueça: boi sabe onde arromba a cerca”, jactou-se papai ainda irritado para mim.

Epílogo 

Nesta quinta-feira, 29 de março, não me restou outra opção que não fosse a de me render à casa dos 60 anos. Por muito desconcertante que isso me possa ser ao espírito, admito que não completá-los seria bem pior. Por que digo isso? Ora, até o fim da vida de papai, voltamos a pegar a estrada juntos algumas vezes. Especialmente, quando ele tinha a idade que completei no dia em que tomo estes apontamentos. Chegamos a cobrir mais de seis mil quilômetros de carro na Europa e essas viagens foram importantes para que nos despedíssemos cordialmente, sem lamúrias e até com saudades. Assim sendo, sempre que atravesso burgos adormecidos no Velho Mundo, flagro-me fazendo as mesmas perguntas que ele se fazia com perplexidade na época de nossas andanças por lá. “Mas onde estão as pessoas? Onde está a gente que vive aqui?”. Mesmo com as limitações impostas pelos diferentes idiomas, ele continuou a arengar com garçons mundo afora, como se achasse ser seu dever se rebelar contra a ordem vigente no quintal alheio, e como se fosse obrigação sua reafirmar uma forma única de fazer as coisas, que era a sua. Já perto do fim da vida, a verdade é que ele se tornaria mais contido. E, estranhamente, em sua presença frágil, era minha vez de armar barracos, de comprar brigas evitáveis, como se buscasse certa desforra. E ainda hoje penso na música de Chico Buarque, nos versos que ele adaptou do italiano: Quando vou para um bar viro a mesa, berro, bebo e brigo.  

“Não ligue, minha filha, ele só está querendo mostrar que é igual a mim quando eu tinha a idade dele”, ouvi-o segredar a uma namorada minha enquanto eu acomodava as malas no porta-bagagem do carro, às margens do Reno. Ah, papai. Adulto, rodei horas entre os arrozais do Cambodja, vendo crianças montadas em búfalos nos alagados. Em silêncio, percorri o “Caminho do Filósofo”, em Kyoto, sentindo na alma cada lufada de ar frio inalado. Na costa australiana, fui colhido por uma nuvem de borboletas brancas que impediam que se enxergasse cinco metros além do nariz do carro. No Cuzco, as luzinhas das casinholas da montanha ainda tremeluzem no frio da noite e só de lembrá-las sinto paz. No Boulevard Raspail, cruzei caminhos com uma francesa sem nome que, em minutos, gemia na minha cama do hotel Lutetia. Em Reykjavik, fiquei de molho em piscinas geotérmicas escrutando os céus à procura da Aurora Boreal. Na Lapônia, comi ensopados de rena copiosos, ouvindo o crepitar da lareira. Em Varanasi, dei plantão à porta do crematório até ver os cadáveres ser lançados ao Ganges. Em Yerevan, respirei os ares noturnos da praça da República e vi as águas dançando ao sabor de Aram Khachaturian enquanto comia abricós. Nem sempre minha relação com papai foi o tal mar de rosas que reza o clichê. Mas nunca uma viagem deu tantas alegrias e ensinou tanto quanto aquela que fizemos ao coração do Nordeste do Brasil.