Paulo Gustavo

Alberto da Cunha Melo.

“[…] aquele passo em falso / era um novo compasso;
[…] seja a ovelha perdida, / a que nunca é vendida.” A.C.M.

Chegou recentemente às livrarias um livro do qual todo pernambucano deveria se orgulhar. Refiro-me a “Alberto da Cunha Melo – Poesia Completa”, publicado pela Editora Record e organizado por Cláudia Cordeiro da Cunha Melo, crítica literária e viúva do poeta. São mil páginas abrangendo toda a obra poética do autor pernambucano, nas quais é impossível, por mais alheio que se seja à literatura, mergulhar sem se sair maravilhado.

Permitam-me a vaidade de mencionar ter sido um dos pioneiros em reconhecer o altíssimo valor de Cunha Melo. Com efeito, no já remoto ano de 1990, publiquei no “Diario de Pernambuco” um artigo intitulado “Elogio Crítico de Alberto da Cunha Melo”, no qual afirmava que “feliz o tempo que tem um Alberto da Cunha Melo, pois tem muito que aprender sobre si mesmo; […] um tempo que não morrerá de todo, uma vez que sua perplexidade e seu próprio veneno serão seiva para o futuro”. Hoje repito essas palavras, convencido de que o valor do poeta crescerá ao longo da sua posteridade. Relendo sua obra como um todo é que vemos como nosso autor transcende a província e dialoga com seus grandes pares universais (um Proust, um Kafka, uma Wislawa Szymborska). Mais uma vez, Pernambuco, por artes do destino, oferece ao Brasil e ao mundo um grande poeta.

Um parêntese. “Nenhum homem é um herói para o seu camareiro.” Essa frase atribuída a Napoleão nos lembra, por óbvio, o quanto geralmente deixamos de reconhecer de bom e de grande naqueles com quem convivemos, também eles vítimas da fraqueza e dos erros. Daí que Machado de Assis, com sua habitual sutileza e senso de humor, tenha feito esta outra frase lapidar: “Já morreu. Podemos elogiá-lo à vontade”. Evoco essas frases para dizer que tive o privilégio de conviver com o poeta no especial momento em que ele, ao lado de Jaci Bezerra, liderava, como expoente da Geração 65 de escritores pernambucanos, o movimento alternativo das Edições Pirata, o qual desovou escritores os mais diversos na virada da década de 1970 para os anos 1980. Dentre tais escritores, eu próprio, recém-nascido para a literatura. E aqui fecho esse talvez dispensável parêntese pessoal e volto à obra poética de nosso autor.

Julgo que se eu dispusesse de uma única palavra para abranger ou iluminar a poesia de Alberto, esta palavra seria “ironia”. Não há modernidade sem ironia. Quanto mais ironia, mais o poeta aponta como as coisas do mundo parecem deslocadas. Nesse sentido, cabe evocar Baudelaire, o primeiro autor da modernidade, para quem o poeta contemporâneo deveria ser sobretudo um autoirônico. Não por acaso, o crítico paraibano Hildeberto Barbosa disse ter percebido na poética albertiana uma potência corrosiva. Penso que a ironia é essa força corrosiva e transversal que atravessa todos os temas e subtemas (e eles são muitos e distintos) da obra de Alberto da Cunha Melo. Os exemplos seriam inúmeros, mas me atenho aqui a um poema que trata do próprio lugar da poesia e do poeta no mundo contemporâneo.

CASA VAZIA

Poema nenhum, nunca mais
será um acontecimento:
escrevemos cada vez mais
para um mundo cada vez menos,

para este público dos ermos,
composto apenas de nós mesmos,
uns joões batistas a pregar
para as dobras de suas túnicas,
seu deserto particular,

ou cães latindo, noite e dia,
dentro de uma casa vazia.

Alberto da Cunha Melo foi, a seu modo, um ironista no sentido que o filósofo e crítico Richard Rorty deu a essa palavra em sua obra “Contingência, ironia e solidariedade”. Segundo o filósofo, os ironistas buscam “sair debaixo das contingências herdadas e criar suas próprias contingências, sair debaixo de um velho vocabulário final e moldar outro que seja todo seu”. Ainda segundo Rorty, o grande critério dos ironistas “é a autonomia, e não a filiação a outro poder que não eles mesmos […] A tarefa genérica do ironista é aquela que Coleridge recomendou ao poeta que é grande e original: criar o gosto pelo qual ele será julgado”. Pode-se acrescentar que o ironista desmascara as autoridades e o poder e, como diz o próprio Rorty, domina a contingência pelo reconhecimento dela própria.

É das contingências e das circunstâncias assumidas como tais que Cunha Melo dá o seu salto para a grande poesia. Daí sua obra poética englobar uma miríade de temas e subtemas que se remetem uns aos outros. Jornalista e sociólogo de profissão, parece saber exatamente, como bom ironista, que não há outra profundidade que não a mostrada pelas superfícies e pelo acaso. É o próprio mundo que assim se desvela, é a própria vida que não se deixa idealizar. Daí essa sensação de mobilidade, de desassombrada reflexão e de vivacidade que suas imagens ajudam a criar. Imagens fortes, inesperadas, que, tanto no verso medido (o poeta, como se sabe, foi exímio no manejo do octossílabo) quanto no verso livre, ambos sempre concisos, nos dão uma aula de como forma e conteúdo, indissociados, são a energia do próprio poema.

Penso ser dispensável dizer que é impossível, num curto espaço, refletir sobre todo o imponente edifício de tal obra. Seu interesse humano é total; seu interesse literário é incontornável. Aqui apenas pretendi modestamente atrelá-la à chave da ironia. Há muitas outras chaves: a do social, a da reflexão, a do psicológico, a da estética… Mas, por onde quer que se vá, por onde quer que se entre, descobrir-se-á a universalidade do poeta. Poeta completo. Poeta maior. “Nada será fácil: as escadas / Não serão o fim da viagem, / Mas darão o duro direito / De, subindo-as, permanecermos”.