Atualmente, periódicos impressos ou digitais, assim como alguns títulos de livros, passaram a usar livremente velhos palavrões. Chegarão a ser ex-palavrões? Só o tempo dirá. Enfim, a língua nunca esteve tão solta, e palavras antes reservadas apenas à voz das ruas e à linguagem dita chula, especialmente nos timbres masculinos, são agora frequentes em textos e ambientes os mais diversos.
Como um humilde observador das palavras, venho notando nos últimos meses que, dentre as palavras mais queridas (de resto por todos os motivos!), encontra-se a palavra “foda”, tão rica de usos e de sentidos que dispensa qualquer apresentação. Faz algum tempo, ela já frequenta as crianças de “boca suja” tanto das ruas quanto das escolas burguesas. Crianças as mais pequenas usam-na com a desenvoltura com que batem as primeiras peladas (sem trocadilho). Meninos e meninas estão com a “foda” na ponta da língua. É a lição que aprendem no pátio e nos corredores, fora do alcance dos ouvidos pedagógicos sempre atentos “à moral e aos bons costumes”. Mas muito disso é antigo, e só alguma coisa é novidade.
Semanticamente vinculada a “foda”, apareceu há pouco a expressão “ligar o foda-se”. Ao que tudo indica, vem tendo muito boa aceitação e decerto faz bem ao espírito pela catarse que provoca. Se o leitor ou leitora já ligou o seu “foda-se”, pobre de mim, estou deletado e deposto. Paciência. Também ligo o meu “foda-se” e estamos quites, uma pela outra… Mas fio-me humilde e gratamente nos que avançam nestas singelas divagações.
Enquanto os mais conservadores e resistentes arregalam os olhos e resmungam, a “foda” continua solta, batendo pernas, o que não é exatamente nenhuma novidade. Mas se os tempos são politicamente árduos e corretos também são arejados e liberais. Até hoje a foda é a mesma de sempre e, como se sabe há milênios, o bom uso de um palavrão nos alivia, operando uma boa descarga psíquica.
Mas a “foda” não está aí por acaso, aliás como de resto vários outros palavrões. Afinal, eles são signos altamente motivados nas profundezas de nosso psiquismo. É o que dizem os cientistas cognitivos. O palavrão é universal e está vinculado à nossa sexualidade e aos nossos tabus. Que o diga, por exemplo, o bom Steven Pinker, a quem devemos valiosas análises nesse sentido. Que o diga o bom Freud, para quem a repressão da sexualidade é a condição da própria cultura.
No começo, pois, era a foda, pelo menos no começo propriamente humano. E continuará sendo. No princípio era o ato, como diz o “Fausto” de Goethe. Pode-se acrescentar: o ato sexual, a cena primária freudiana, cuja visão as crianças, não por acaso, tomam por violência ou agressão. Depois, o silêncio e a repressão fazem o seu trabalho tanto para o bem como para o mal-estar da civilização.
Gilberto Freyre, num desses trechos em que prima pelo próprio arrojo de opinião, compraz-se em observar que a palavra “caralho” é praticamente uma palavra que diz a que veio e, de certa forma, insubstituível. Dá-se o mesmo com a palavra “foda”. Ou seja, expressa bem o que quer dizer. É sonora e a seu modo estética. Deixa para trás sinônimos que não passam de pálidos eufemismos. Com bom humor, Guimarães Rosa faz um personagem dizer para outro: “Copule-se!” …
Como uma exuberante lava do magma do inconsciente humano, a “foda” lembra o que é árduo, agônico, admirável, pleno, indizível e prazeroso. Reparem que o amor, por exemplo, é foda; mas a morte também o é. É uma palavra polissêmica, claro, e vale também como um ponto-final e de exclamação: Gilberto Freyre é foda; Proust é foda. Freud é foda. Mas a desigualdade social, a miséria e o preconceito também são foda e fodem com nossa esperança por um Brasil melhor. Foda é, por assim dizer, a quadratura do círculo e a expressão de uma verdade praticamente indizível como o gozo e a morte.
Georg Grodeck, o chamado “psicanalista selvagem”, a quem Freud gratamente ficou a dever o conceito de Id, nos lembra, em seu “O livro d’Isso”, que os homens buscam como que mitologizar ou edulcorar o próprio destino, “esquecidos” de que todos nascem entre excrementos e sangue. Diz ele que “É destino do homem sentir vergonha de ter sido concebido humanamente e humanamente posto no mundo […] O homem gostaria de ser qualquer outra coisa, menos um simples ser humano”. Da mesma forma, “esquecemos”, ou seja, recalcamos, civilizadamente que somos filhos da foda, e que o sexo, em sua crueza e vitalidade, é o que move o mundo. Enfim, é mais ou menos como anotou Proust com lirismo e graça em “A prisioneira”: “[…] e tudo nos pareceria imóvel se uma atração sexual não nos fizesse correr para vós, gotas de ouro sempre dessemelhantes e que excedem sempre a nossa expectativa”. Perdão pela repetição, mas Proust era foda mesmo.
comentários recentes