Elimar Pinheiro do Nascimento[1]

Li o livro de Yuval Harari, Homo Deus, com muita expectativa, pelo fato de ter visto antes, no You tube, algumas de suas entrevistas ou palestras. Mas li, simultaneamente, contrariado e curioso. Contrariado, porque a cada dez páginas, havia algo que não concordava ou achava simplesmente tolo. Contudo, continuei a leitura, porque o livro me instigava e fazia pensar.

Fiquei mais intrigado porque em 1994 publiquei um artigo no Caderno CRH em que defendia a hipótese de uma nova exclusão social, constituída da formação de grupos sociais que adquiririam três características básicas. Seria grupos considerados desnecessários economicamente, perigosos socialmente e incômodos politicamente. A primeira característica resultante das profundas transformações tecnológicas que já se anunciavam; a segunda, consequência do aumento da desigualdade social, sua percepção como injusta e, o esgarçamento da coesão social, com aumento da violência urbana, do tráfico e do crime organizado; finalmente, a terceira característica resultava do crescimento das forças conservadoras, fundamentalistas e intolerantes no cenário político. E a conclusão era ousada, mas sempre em forma de hipótese de surgimento no futuro: grupos sociais que têm estas características são passiveis de extinção. Inspirado em Hannah Arendt dizia que eram grupos sociais que “não tinham direito a terem direitos, inclusive o da vida”.

A constituição de uma “classe de inúteis”, como denomina Martin Ford (Rise of the Robots: Technology and the Threat of a Jobless Future. Basic Books, 2015), não é o centro da argumentação de Harari, mas uma de suas dimensões. E tema de enorme atualidade. Ela surge como resultado das tecnologias disruptivas atualmente em curso, no campo da robotização, automação, internet das coisas, Big Data, entre outras, mas, sobretudo, dos avanços no campo da inteligência artificial com a criação de “learning machines”. Atividades produtivas repetitivas tendem a ser substituídas por máquinas e, mesmo algumas não tão repetitivas, nas áreas de saúde, comunicação, engenharia, contabilidade, advocacia, educação, entre outras. O Instituto McKinsey(2017) aponta que 49% das atividades atuais podem ser automatizadas com tecnologias já? aplicadas.

Evidentemente, que a constituição de uma “classe de inúteis”, aqueles que não conseguem se inserir no processo produtivo moderno, é apenas uma possibilidade de futuro. Porem, coloca dilemas atrozes para a nossa civilização assentada no duplo princípio, ambos legítimos, em suas respectivas esferas, da igualdade (diante da lei) e da desigualdade (no âmbito do mercado). A ampliação da desigualdade, como possibilidade do resultado do avanço das máquinas inteligentes, e da concentração de riquezas, nos remete a possibilidade da ruptura do princípio democrático (destruição do espaço da igualdade), mas também, da criação da dessemelhança entre os humanos. Tese que Cristovam Buarque defendeu em seu pequeno, mas precioso livro – O que é apartação (Paz e Terra).

A tese de Harari é mais ousada, e mesmo temerária. De forma simples o historiador israelita cita que os três grandes desafios da humanidade, nos tempos pretéritos, foram tecnicamente vencidos, embora ainda não politicamente: peste, guerra e fome. Há muito os humanos não estão mais condenados a morte por pandemias como a peste negra na Idade Média ou a gripe espanhola no início do século XX. Nem a Aids, nem a Ebola, nem as gripes recentes não chegaram nem perto da mortandade provocada pelas pestes supracitadas, entre outras. Guerras devastadoras como as duas mundiais do século XX, despareceram e estão relativamente controladas. Hoje, as guerras são residuais, circunscritas, como a da Síria. Embora quase um bilhão de pessoas passem fome ou vivam em insegurança alimentar no mundo morre-se mais de obesidade do que de fome. Com isso, os humanos definiram novos desafios: felicidade, longevidade e eternidade. E que poderão ser alcançados na medida em que os humanos criem máquinas, com capacidade contínua de aprendizagem, inclusive de se manterem, reproduzirem e se repararem continuamente. Embrião já presente nas “learning machines”. Máquinas que poderão ter uma relação conosco, os humanos, muito semelhante a que temos com outros animais, como os cachorros e gatos. Esse processo de criação de “Deus”, ou seja, um ser superior a nós, agora não no imaginário, mas materialmente, está sustentada no desmoronamento da religião moderna, o humanismo, e sua substituição por uma nova religião, o dadaísmo. O endeusamento dos dados, do fluxo informativo. Na qual tudo se transforma em algoritmo e informação, sendo os humanos, eles mesmos, um algoritmo limitado e defeituoso. Movido pela mesma dinâmica do crescimento econômico, que devasta a natureza, o dadaísmo tende a remover tudo que impede a circulação de informações, inclusive os algoritmos pouco desenvolvidos, como os humanos.

Evidentemente que a prospectiva de Harari é apenas uma possibilidade de futuro. Provavelmente não realizada da forma como ela anuncia. E talvez nem mesmo realizável (mas isso seria tema de um outro debate). O fato é que, independentemente dos rumos que venha a assumir, a atual trajetória das transformações tecnológicas nos coloca em face de novos dilemas e desafios. Entre os quais: como neutralizar os efeitos perversos das transformações tecnológicas e potencializar as consequências positivas?

Não estamos absolutamente preparados para essas mudanças. E no Brasil nem estamos nos preparando. Não há qualquer sinal, mais substantivo, neste sentido por parte dos governantes. E a maioria – a exceção por enquanto é Marina – dos candidatos à Presidência ignora essas transformações. Aparentemente, os candidatos não conseguem imaginar os cenários que elas abrem. O significado que elas trazem. A substituição dos trabalhadores por máquinas, processo intrínseco à revolução industrial, mas acelerado nos últimos trinta anos, pode nos descortinar um mundo completamente distinto do que vivemos atualmente. Distinto na forma de produzir bens e serviços, distinto nas formas de organização social e no estilo de vida e valores que guiam nossas decisões.

Presos nas tensões das conjunturas, envoltos nas instabilidades institucionais, abismados com os desplantes de nossos dirigentes (nos três Poderes), e assaltados semanalmente por escândalos de corrupção (às vezes tenho a impressão que vivo em uma sociedade de malfeitores), não vemos o futuro que se descortina em face dos nossos olhos. E a impressão que tenho é que a incompreensão das mudanças que o mundo conhece não é apenas de nossos políticos, mas também de nossos intelectuais. Todos guiados por retrovisores. Defendendo ideologias mortas, defendendo legislações moribundas. Sem ver a banda passar. Ou estou redondamente enganado?

[1]Sociólogo, professor do Programa de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília.