A bebida alcoólica é uma droga. Droga legal mas, assim mesmo, droga. Desempenha um papel importante na convivência social de praticamente todas as culturas. Mas é uma droga, se for considerado seu efeito nos comportamentos e na alteração do estado de consciência dos usuários. Por isso, não seria de todo absurdo que o Congresso Nacional, num delírio fundamentalista, aprovasse a ilegalidade do consumo e da venda de bebidas alcoólicas, de modo que, qualquer pessoa que carregue ou tenha em casa uma garrafa de uísque ou de cachaça, ou algum estoque semelhante de vinho, pudesse ser preso como consumidor ou traficante. Absurdo? Não. Improvável sim. Mas não de todo absurdo, considerando os conhecidos danos causados pelo consumo de álcool: à saúde do usuário, gerando também um custo social elevado para o sistema de saúde pública; e à sociedade pela agressividade e violência, pelos acidentes, mortes e assassinatos provocados pela embriaguez que decorre do consumo do álcool, inibindo o estado de vigilância e a percepção de risco, e gerando agressividade.
Estudo realizado na Grã-bretanha comparando danos causados por diferentes tipos de drogas (legais e ilegais) concluiu que o álcool se destaca com o maior impacto quando se somam os danos causados aos usuários e aos não usuários, vale dizer, à sociedade (The Lancet, 2010). Como pode ser observado no gráfico, que mostra a classificação dos danos dos diferentes tipos de droga, a soma dos danos causados pelo álcool chega a 72 (numa escala de zero a cem), contra 55 da heroina e 54 do crack, e bem acima da cocaína, que se situa em quinto lugar, com apenas 27. E a maconha, droga muito utilizada no mundo e a mais consumida no Brasil, se situa em oitavo lugar nos danos totais, com peso 20.
Quando se trata dos danos ao próprio usuário, as bebidas alcoólicas perdem apenas para heroina, crack e metafetamina, sendo superior aos danos causados pela cocaina e pela maconha[1]. Nos danos causados sobre os outros – não usuários – o consumo de bebida alcoóliica supera em muito o de todas as outras drogas e, mesmo a heroína e o crack, para não falar da cocaina e da maconha, ambas abaixo até mesmo do cigarro. Drogas como a metafetamina e outras drogas pesadas, com grande prejuízo ao usuário, tendem a provocar baixo dano à sociedade.
Desta análise emergem duas perguntas: (1) quais seriam as consequências sociais, econômicas e financeiras de uma criminalização da produção e do consumo de bebidas alcoólicas no Brasil? (2) se as bebidas alcoólicas, muito mais nefastas ao consumidor e à sociedade, continuarem sendo vendidas e consumidas livremente no Brasil, por que criminalizar o uso e a comercialização de algumas outras drogas, como a maconha?
Danos aos usuários e aos outros por tipo de droga (lícita e ilícita)[2]
Fonte: NUTT, David; A. KING, Leslie; D. PHILLIPS, Lawrence – “Drugs harms in the UK: a multicriteria decision analysis” – in LANCET, Volume 376, n º 9752, p 1558/65 – 01/11/2010
A primeira e imediata consequência de uma eventual criminalização do consumo e da venda de álcool seria a formação de um pujante mercado negro, com a produção e a oferta ilegal das bebidas, porque, muito provavelmente, a demanda não deve cair, da mesma forma que o consumo de cocaina continua crescendo, apesar da proibição. A produção e a distribuição ilegal da bebida levariam ao crescimento do crime organizado que, ampliando e diversificando os negócios, elevaria em muito o faturamento. Para tanto, o crime organizado aumentaria também o seu exército de criminosos bem armados para proteger os negócios e enfrentar a eventual repressão do Estado. No fundamental, os danos sociais e humanos decorrentes da ilegalidade das bebidas alcoolicas superariam, em muito, os efeitos negativos do seu consumo.
Enquanto isso, as fábricas de bebidas e as distribuidoras fechariam as portas, jogando milhões de trabalhadores no desemprego, grande parte dos quais, qualificados e sem renda, seria empurrada para as atividades ilegais. Atualmente, a indústria de bebidas alcoólicas emprega formalmente 50,76 mil pessoas (PIA/IBGE) apenas dedicadas à produção nacional; e, de acordo com o presidente da Abrasel, Paulo Solmuci, os bares e restaurantes do Brasil, por onde passa uma parte importante da distribuição de bebidas alcoólicas, ocupavam cerca de seis milhões de pessoas (2011). Parte destes milhões de trabalhadores ocupados na produção e distribuição de bebidas alcoólicas tenderia a formar um novo exército de traficantes, com o novo negócio ilegal.
Como consequência do fechamento das empresas, o Estado brasileiro perderia bilhões de reais em arrecadação de impostos incidentes sobre mercadorias e o pessoal ocupado, incluindo contribuição previdenciária. Apenas a produção industrial de bebidas alcoólicas representou, em 2015, cerca de R$ 38,66 bilhões (Valor Bruto da Produção – PIA/IBGE). Supondo uma média de 56% de alíquotas de imposto sobre bebidas alcoólicas[3], o Brasil teria tido, em 2015, uma receita pública de, aproximadamente, R$ 21,65 bilhões por ano, recursos que deixariam de ser arrecadados no caso da criminalização da produção dessas bebidas. Os governos estariam perdendo essa receita, ao mesmo tempo em que teriam que ampliar o sistema de repressão, multiplicando os presídios e aumentando a força militar e a violência na guerra contra o crime organizado (este cada vez mais forte). Equação explosiva, num Estado já quase falido.
Por outro lado, segundo estimativa de Luciana da Silva Teixeira[4], o negócio da droga no Brasil representava (em 2014) cerca de R$ 14,6 bilhões de reais por ano (quase R$ 5,7 bilhões apenas com maconha), que alimentam e financiam o crime organizado. Assim, se a produção e o consumo de drogas hoje ilícitas não fossem atividades criminosas, os governos poderiam contar com uma significativa receita tributária para financiar campanha educacional e investimentos para a redução dos danos.
Os defensores da criminalização do álcool poderiam argumentar que o mercado negro levaria a um aumento do preço final das bebidas, pelo sobrepreço do risco e dos custos de transação, o que tenderia a moderar o seu consumo, potencializando o medo do uso de um produto proibido por lei. Será? Tudo indica que a demanda de bebidas alcoólicas é quase inelástica, de modo que um aumento de preços pode levar apenas à substituição nos tipos de bebidas (e/ou de drogas). E, na verdade, não parece provável que a ilegalidade provoque uma elevação do preço final destas bebidas por conta dos custos de transação do mercado negro, que devem ser equivalentes à elevada incidência dos impostos na oferta legal do produto. Sendo a produção e a comercialização ilegais, desaparece o ato tributário, diminuindo o peso dos impostos no preço final do produto.
O resultado seria, portanto, uma bilionária transferência de receita do Estado para o crime organizado, ampliando significativamente a desvantagem daquele no combate às atividades ilegais e criminosas. A experiência desastrosa da Lei Seca, que vigorou por 13 anos nos Estados Unidos (de 1920 a 1033), confirma esta análise: não reduziu o consumo de álcool e, ao mesmo tempo, aumentou a criminalidade, corrompeu as instituições e promoveu o fortalecimento da máfia no país, tudo acompanhado da queda da receita pública e da elevação dos gastos no combate ao crime.
Os governos brasileiros (nos diferentes niveis federativos) já gastavam, em 2015, cerca de R$ 23,9 bilhões com policiamento em todo o Brasil, parte significativa disso decorrente do combate ao negócio das drogas. Segundo estimativa de Luciana da Silva Teixeira, a despesa do Estado brasileiro na manutenção dos prisioneiros por crime vinculado ao negócio das drogas chega a R$ 3,32 bilhões por ano[5]. O que aumentaria de forma significativa, no caso de criminalização das bebidas alcoólicas.
O mercado negro de bebidas alcoólicas geraria, além disso, um aumento dos danos desta droga à saúde do usuário, na medida em que estaria livre da fiscalização e do controle de qualidade dos produtos por parte da ANVISA ou outro órgão público. O consumidor estaria, assim, exposto a produtos de alta toxidade, com consequências graves para a sua saúde, e com decorrente elevação dos custos sociais do sistema de saúde pública. Tudo indica, portanto, que a criminalização das bebidas alcoólicas seria altamente nefasta para o consumidor e um desastre para a sociedade.
A referida lei de criminalização do álcool é, felizmente, apenas uma hipótese improvável, levantada com o único propósito de provocar a discussão sobre a politica de combate às drogas. A Política Nacional sobre Álcool está correta quando se orienta para desestimular o consumo, através de advertências e campanhas de eduação e informação, e para a redução de danos, “bem como das situações de violência e criminalidade associadas ao uso prejudicial de bebidas alcoólicas” (Ministério da Justiça). Neste caso, em vez de criminalizar-se o consumo de álcool, com todos os desdobramentos negativos analisados antes e que ainda requer a montagem de uma estrutura de repressão de comprovada ineficácia, define-se um rigoroso sistema punitivo para os danos sociais provocados por pessoas sob o efeito do álcool.
O mesmo não poderia ser pensado para algumas das drogas atualmente ilícitas e de dano social menor que o álcool: não proibir a produção e o consumo, mas definir regras e punições rigorosas para eventuais crimes provocados por estado de excitação, desvio de conduta e alteração de consciência dos usuários? Evitar a criminalização do usuário e tratar o adicto como um problema de saúde pública, o que tornaria desnecessárias as “ações contínuas de repressão, que devem ser promovidas para reduzir a oferta das drogas ilegais e/ou de abuso, pela erradicação e apreensão permanentes destas produzidas no país, pelo bloqueio do ingresso das oriundas do exterior, destinadas ao consumo interno ou ao mercado internacional e pela identificação e desmantelamento das organizações criminosas”, previstas na Política Nacional das Drogas (Ministério da Justiça).
É mais fácil antecipar os prováveis resultados desastrosos de eventual e improvável criminalização do consumo de álcool que prever as consequências de uma descriminalização das drogas atualmente ilícitas, porque o crime organizado já domina o negócio e utiliza da violência para controlar o mercado. Mas tudo indica que o Brasil vive hoje as consequências desastrosas da criminalização dessas drogas – mercado negro, crime organizado, violência e desmoralização do Estado – que, ao contrário do que se pretendia, tem sido acompanhada do aumento do consumo.
[1]De acordo com o Ministro do Desenvolvimento Social, Osmar Terra, contudo, no Brasil, a “maconha mata mais pessoas em acidentes de trânsito do que o álcool” (potencial de danos no usuário e nos outros), embora não indique estudo e dados estatísticos que possam questionar a pesquisa publicada na Lancet.
[2]Valores representam a média do dano normalizado de zero a cem
[3]Dados da Associação Comercial de São Paulo mostram a elevada carga tributária (incluindo ICMS) das bebidas alcoólicas: 55,6% da cerveja, 54,73% do vinho nacional (importado chega a 69,73%), e 81,73% de cachaça (vodca 82% e whisky 61%). Ver Impostômetro de 22/12/2017 e Revista Exame de 19/11/2013 (matéria de João Pedro Caleiro).
[4]Da Silva Teixeira, Luciana – “Impacto econômico da legalização das drogas no Brasil” – Consultoria Legislativa – Agosto de 2016
[5]Estimativa a preços de 2014 e considerando, segundo hipóteses da consultora, que um quarto da população carcerária estaria vinculado ao tráfico de drogas. Seriam, assim, 151.843 prisioneiros a um custo mensal de R$ 1.824,44.
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