“Pobre México! Tan lejos de Dios y tan cerca de los Estados Unidos.” De tão repetida a frase já virou brincadeira e, pensando bem, nem é verdade, pois ser vizinho dos Estados Unidos tem desvantagens, mas tem também suas vantagens. O autor é Porfírio Díaz, o caudilho que governou México por mais de três décadas, renunciou em maio de 1911 e fugiu para Paris, escapando da Revolução Mexicana, a luta armada que tivera início no norte em outubro de 1910. Será que esse desabafo vem do fato que o chamado para a luta armada foi feito do Texas, por outro dos caudilhos, Francisco Madero, que fugira da prisão no México?
Agora, depois de duas décadas de democracia sem caudilho nem partido único, ressurge um caudilho. Ou será um messias? Com coroa de flores, como já foi fotografado em comício. É dado como certo que nas eleições de domingo Andrés Manoel López Obrador, Amlo, como é conhecido, será eleito presidente, e uma coalizão liderada por seu partido MORENA (Movimento de Renovação Nacional) poderá ter maioria parlamentar. E mais uma vez o Texas aflora na política mexicana. Lá estão em sua maioria as crianças de imigrantes separadas de seus pais ou que já chegaram sós, presas em tendas no calorão desértico ou no centro de detenção McAllen cercado de arame. A administração Trump está levando a cabo sua promessa de tolerância zero com imigrantes ilegais, da campanha eleitoral em que acusou imigrantes mexicanos de “assassinos” e “traficantes” que “infestam” os Estados Unidos. Diante da grita geral, na esteira da foto de John Moore que viralizou (uma menininha hondurenha de 2 anos, Yanela, vestida de rosa, chorando em pânico enquanto a mãe era revistada), pode ser que as famílias sejam reunidas. Mas não há mudança na política anti-imigrantes, confirmada pelo Presidente Trump.[1]
Poucos meses depois da posse de Trump, López Obrador publicou um livro “Oye, Trump” (“Escuta, Trump”) (Editorial Planeta 2017), um sucesso circunstancial que não foi obtido por nenhum outro da dúzia de livros escritos por esse cientista político. O livro resultou de viagens de Amlo pelos Estados Unidos, conversando com comunidades de imigrantes, e apresenta discursos que fez em defesa desses imigrantes mexicanos nos Estados Unidos. Amlo ampliou o discurso quando a campanha eleitoral começou, e defendeu emocionado um utópico “direito de todos os imigrantes (não só mexicanos) de viver nos Estados Unidos”, usando o tema contra o candidato do PRI, José Antonio Meade, ao acusar o Presidente Enrique Peña Nieto de ter ficado em silêncio diante de Trump quando este ofendeu os mexicanos com comentários racistas e xenófobos. Queria ver Peña Nieto envolvido na campanha eleitoral americana? Sem isso Trump já alega que perdeu no voto majoritário por culpa dos 34 milhões de mexicanos ou de ascendência mexicana que vivem legalmente nos Estados Unidos. Os mexicanos ilegais (“undocumented”) são algo menos de 6 milhões.
Esperemos que “Oye, Trump” não seja a “resposta do México a Donald Trump”, pois é retórica.[2]E será que Amlo quer mesmo abrir a fronteira sul do México à livre entrada de centro-americanos? De qualquer modo imigração não é o tema mais importante da campanha dentro do México, ainda que já tenha aparecido nos EUA quem afirmasse que Amlo mandou os mexicanos ir em massa festejar sua vitória na fronteira.
Corrupção generalizada na máquina pública e a violência das gangs foram os principais temas e a preocupação maior da população. Os quatro candidatos prometeram luta sem precedentes contra a corrupção, mas, segundo “Transparencia Mexicana”, o capítulo local de “Transparency International”, faltam propostas específicas para situações já diagnosticadas, pois aquelas que apresentaram já são quase todas partes da nova legislação mexicana anticorrupção. As ideias de Amlo sobre a corrupção e sobre a economia são ingênuas, pois disse, sem fundamento algum, que o combate à corrupção geraria uma poupança que poderia ser usada para o desenvolvimento. A violência tem aumentado muito nos últimos anos, e o número de assassinatos passa de 30 mil até agora em 2018 (para uma população de 130 milhões de habitantes). O presidente Peña Nieto tinha prometido reduzir à metade o número de assassinatos, mas estes só têm aumentado. O número inclui, além das vítimas do crime, mortes em protestos violentos, e assassinatos de jornalistas e políticos partindo de gangs do tráfico, e assim causa admiração que Amlo, cercado pelas multidões, não ande com seguranças.[3]
Mexicanos mais alarmados com o seu nacionalismo e suas ideias sobre Estado todo-poderoso, além de alguns episódios de grave desrespeito às instituições, comparam Andrés Manuel López Obrador a Hugo Chavez. Mas talvez seja exagero sacudir o espantalho de uma “venezuelização” para o México: o país tem instituições mais sólidas, inclusive seu Judiciário (apesar de alguma desconfiança), uma economia muito mais diversificada, com produção de bens de consumo e exportações de bens industriais, sobretudo automóveis e TVs, tem estimulado o livre comércio com a assinatura de acordos comerciais com quase 50 países, a produtividade tem aumentado, e é bem menor a dependência do petróleo.[4]
Ainda assim analistas têm examinado os possíveis danos à PEMEX, cujo orçamento não é completamente separado do orçamento federal, pois Amlo prometeu revogar as reformas estruturais que vêm sendo introduzidas desde a aprovação do Pacto Nacional de 2012 pelo Parlamento, em particular a reforma energética e a educacional. No setor de energia, em que a implementação avançou, a reforma tinha o objetivo de abrir o setor de petróleo a operadores privados e liberalizar o setor de eletricidade. A reforma na educação conseguiu quebrar a velha resistência do sindicato de professores contra critérios de mérito, sobretudo em estados do sul, e estabeleceu que professores sejam avaliados periodicamente, permitindo inclusive a demissão depois da terceira reprovação. Também determinou a realização de concursos para professor e estava sendo enfrentada a corrupção no setor, limpando o cadastro de professores dos fantasmas que recebiam salários com registros falsos.
PEMEX teve sua posição de monopólio flexibilizada com a aprovação da Reforma Energética. Foram leiloados novos blocos de exploração em um processo transparente que permitiu que companhias estrangeiras tivessem acesso pela primeira vez em 75 anos. Até agora os resultados foram positivos: um grupo de empresas liderado pela americana Talos e outro liderado pela italiana ENI perfuraram novos poços, e descobriram reservas que permitiriam reverter o declínio da produção mexicana que estava ocorrendo nos últimos 15 anos. Leilões de centenas de novos blocos de exploração estão previstos para os próximos três anos. Investimentos de mais de 35 bilhões de dólares foram feitos em indústrias de derivados. Não existe motivo racional para revogar a reforma no setor de energia, exceto a tese esfarrapada de que “o povo é explorado pelas companhias internacionais”. Ainda que algo assim tenha sido dito por Amlo, ninguém sabe ao certo quais são suas ideias de política de energia.
O novo presidente terá uma herança relativamente benigna na economia. Há algum espaço para aumentar o gasto público, mas só no curto prazo e com aumento da dívida pública. Esta tem aumentado, já supera 50% do PIB, de tal modo que aumentar a dívida é risco macroeconômico negativo. O Banco Central tem mantido a inflação em torno da meta de 3%, e a situação fiscal pode ser considerada mais ou menos equilibrada desde que ignorado o serviço da dívida. O México teve superávit primário (exclusive pagamento de juros) em 2017 pela primeira vez nos últimos 9 anos. O orçamento nominal tem sido deficitário, mas o déficit diminuiu ano passado. Parece que os mercados se ajustaram à perspectiva de vitória de Amlo: quando, ao final de junho, o Banco Central do México aumentou a taxa de juros em 25 pontos base, para 7,75%, mencionou-se apenas um repique nas projeções de inflação para 4%. E a mais recente desvalorização do peso mexicano é atribuída às incertezas derivadas da guerra comercial e seu impacto sobre o balanço de pagamentos.
A taxa de desemprego é relativamente baixa, algo acima de 4%, mas é sabido que a maior parte da população ativa está na informalidade, em percentagem estimada em assustadores 60% e explicável talvez pela elevada participação das remessas de emigrantes no balanço de pagamentos, ajudando na sobrevivência dos que não se aventuraram. Choca também o agravamento das disparidades regionais na última década, entre o norte moderno, beneficiado por NAFTA[5], e o sul que ficou para trás: enquanto os estados mais ricos, do norte, tiveram crescimento de 20% no PIB per capita, os estados mais pobres, do sul, não cresceram.[6]
Obviamente a herança inclui as vantagens e desvantagens da proximidade com os Estados Unidos. Não só no que se refere à imigração. É grave a ameaça protecionista de Trump, em primeiro lugar para a indústria. México se tornou o maior produtor de veículos do continente, depois dos Estados Unidos, com 3,8 milhões de carros produzidos no ano de 2017. Mais de 80% da produção total é exportado, sobretudo para os Estados Unidos, no âmbito do NAFTA. Atualmente quase 14% dos carros vendidos nos Estados Unidos são montados no México. Da exportação total de produtos mexicanos, 80% vai para os Estados Unidos, enquanto vêm dali 50% das importações mexicanas.
México até já iniciou no governo Peña Nieto uma retaliação ao novo protecionismo americano, dobrando repentinamente as tarifas de importação sobre queijo, até níveis de 20%/25%, que devem entrar em vigor no início de 2019. Queijo produzido nos Estados Unidos é quase todo exportado e México é seu principal mercado de exportação, quase exclusivo. Os americanos terão que comer seu próprio queijo e comer menos queijo da França e da Dinamarca. Mas isso é munição pouca em vista da renegociação do NAFTA, e o México se prepara para impor tarifas em suas importações de milho e soja, o que será mais árduo já que usa esses grãos na alimentação de suínos que exporta para os Estados Unidos.
Danos de longe mais perigosos podem atingir a indústria automobilística no México. O Departamento de Comércio dos Estados Unidos lançou mês passado uma investigação sobre se veículos importados são ameaça à segurança nacional. Trump tem ameaçado impor tarifas sobre carros europeus e isso certamente implica pressão sobre o México, grande produtor e montador de veículos, nas renegociações do NAFTA. Os fabricantes de automóveis dentro dos Estados Unidos estão resistindo à ameaça de Trump, pois tarifas mais altas, dada a complexidade das cadeias de produção internacionais, vão implicar em aumento de preços dos automóveis produzidos nos EUA e perda de competitividade. Para o México, mais suspense.
Impossível subestimar o perigo de dois nacionalistas um de cada lado da fronteira. Como será que o novo messias vai lidar com tudo isso? Ainda não explicou.
[1]A foto da criança de casaco e tênis rosa foi recortada para a capa do semanário Time“Welcome to America”, a miúda chorando diante do grandalhão Trump indiferente.
[2]The Economist(23 a 29 de junho de 2018), em cima de grande foto de Amlo, o seu lema “Juntos haremos historia” inscrito na camisa branca, escreveu em letras garrafais: “Mexico’s answer to Donald Trump”. O texto correspondente é mais complexo.
[3]Um relato impressionante do messianismo e voluntarismo de Amlo é de Jon Lee Anderson, “A New Revolution in Mexico”, The New Yorker, 25/06/2018.
[4]Curiosamente é o mesmo argumento das instituições democráticas fortes que ouvimos quando Trump apresentava suas ideias isolacionistas para“Make America Great Again”, aplicadoagora aolema de Amlo ”Juntos haremos historia”, que bem pode significar uma volta aos anos cinquenta. É o caso de recordar que Trump vem levando a cabo o que prometeu.
[5]NAFTA (North American Free Trade Agreement) é o tratado de livre comércio entre México, Estados Unidos e Canadá, em vigor desde 1994, que a administração Trump quer renegociar.
[6]Amlo vem de Tabasco, pequeno estado do sul do país, e já nas candidaturas anteriores, em 2012 e 2016, teve a maioria de votos no sul. A novidade deste ano é que se aproximou de empresários no norte, por arte de seu coordenador de programa, um grande empresário, Alfonso Romo Garza, que vem apoiando Amlo nos últimos anos.
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