Luciano Oliveira

Jornaleiro.

A prop?sito do hebd? da semana passada, um leitor me disse que achou o termo ?desintrincamento?, da lavra de Lefort, mais do que rebarbativo: achou-o obscuro. Comprometi-me em esclarec?-lo. Vamos l?! Nos textos originais, escritos em franc?s, o que aparece ? ?d?sintrication?. ?Mesmo em franc?s n?o ? uma palavra de uso corrente. Numa tradu??o literal, em portugu?s daria ?desintrica??o?. Os tradutores de Lefort no Brasil, contudo, adotaram a forma ?desintrincamento?. Ora, nem uma coisa nem outra, pela consulta que fiz ao Houaiss, existe no nosso l?xico. Mas existe o verbo ?desintrincar?, com o significado de desembaralhar; e, por deriva??o, o substantivo ?desintrincamento? ? que tamb?m n?o consta no dicion?rio. ?, portanto, um neologismo. Mas seu significado, tamb?m por deriva??o, ? simples: desintrincamento ? a a??o de desembaralhar aquilo que est? embaralhado, misturado, junto. Mas desembaralhar o qu?? As inst?ncias do poder, da leie do saber, como disse na semana anterior. Isso ? o que caracterizaria a ?inven??o democr?tica?, cujo sentido vou tentar esclarecer.

Formado ? e inicialmente engajado ? no movimento marxista, o interesse pela democracia veio a Lefort pelo ?choque? provocado pela brutalidade dos regimes comunistas, notadamente o totalitarismo stalinista, o qual, j? no momento em que, jovem, aderiu ao trotskismo, lhe ?inspirava uma instintiva avers?o?. Simplificando seu percurso, digamos que posteriormente essa avers?o estendeu-se para al?m do regime stalinista, abrangendo todo e qualquer projeto de instituir um ?bom regime? destinado a edificar a ?boa sociedade? ? comunista, naturalmente. Pois o modelo stalinista, com maior ou menor brutalidade (Fidel, por exemplo, nunca promoveu exterm?nios de massa como Mao ou Pol Pot), foi na sua ess?ncia o mesmo em todos os lugares onde um regime comunista se instalou. Seu m?nimo denominador comum sempre foi a id?ia de que havia na sociedade uma classe social (o proletariado, claro) detentora do ?interesse universal? da humanidade porque seria a ?ltima classe de explorados da hist?ria, j? que, vivendo do pr?prio trabalho e produzindo riquezas, n?o teria abaixo de si outra classe a ser explorada.

Na teoria, parecia fazer sentido; na pr?tica, deu no que deu. Ditaduras que, destinadas a serem passageiras, se eternizaram no tempo e sustentaram a onda at? que n?o dava mais para esconder de ningu?m o que delas sempre resultou: tirania pol?tica e marasmo econ?mico. At? o sonho de igualdade socioecon?mica n?o resistiu ? constata??o de que era uma socializa??o da escassez end?mica para a grande maioria da popula??o, governada por uma burocracia cheia de privil?gios (socioecon?micos, naturalmente), o que inspirou ao iugoslavo Milovan Djilas ? inicialmente amigo pessoal e figura importante do regime do marechal Tito, a ponto de ter sido considerado seu prov?vel sucessor ?, o conceito de ?nova classe?, que ele analisou num livro com o mesmo nome escrito enquanto estava preso e publicado no ocidente nos anos 1950. O livro, claro, foi um sucesso mundial, amplamente divulgado pelo Departamento de Estado dos EUA no auge da ?guerra fria?. Eu mesmo, adolescente, li-o em Aracaju nos anos 1960, ap?s recomenda??o numa aula de religi?o do reitor do Semin?rio Arquidiocesano Sagrado Cora??o de Jesus, onde estudava. O reitor, claro, n?o nutria nenhuma simpatia pelo ?comunismo? de Dom H?lder… Mas a quest?o ?: o que o livro de Djilas dizia era verdade? Era.

Al?m dos tra?os acima delineados, Lefort chama especial aten??o para dois ?intrincamentos? que ocorrem nesses regimes. A Lei(no sentido do direito vigente) se p?e ? n?o de modo sub-rept?cio, mas proclamadamente ?, a servi?o dos ?interesses do proletariado? representado pelo Poderda vasta burocracia dominante. A dissid?ncia pol?tica, uma banalidade nas democracias modernas, torna-se crime num regime de partido ?nico. Sai Montesquieu, entra Vishinsky, o jurista preferido de Stalin que chefiava a delega??o sovi?tica na Assembl?ia Geral da ONU que votou a Declara??o Universal do Direitos do Homem em 1948, em Paris. O documento foi aprovado com um voto de absten??o da URSS e dos demais pa?ses comunistas… No que diz respeito ao Saber (no sentido lato de ?opini?es, cren?as, conhecimentos? etc.), ocorre algo an?logo. A id?ia de um ?interesse universal? representado pelo proletariado, al?m de conter em si a id?ia de apenas um partido pol?tico, traz consigo tamb?m o perigo de umaarte prolet?ria (ver o ?realismo socialista?), umamoral prolet?ria (ver o ?homem novo?), e at?, por mais surrealista que seja, umaci?ncia do mesmo jaez, da qual a ?gen?tica prolet?ria? de um charlat?o chamado Lyssenko contra a ?gen?tica burguesa? de Mendel foi o exemplo mais aberrante. Com esses exemplos, talvez o leitor insatisfeito com o que escrevi a semana passada perceba mais claramente ?o sentido do desintrincamento do pol?tico, do econ?mico, do jur?dico, do cient?fico, do est?tico, o sentido da livre diferencia??o de modos de exist?ncia? que caracterizam a ?inven??o democr?tica? como Lefort a v?.

Isso n?o quer dizer, de modo algum, que nas sociedades democr?ticas modernas ? o que inclui, bem ou mal, nossa seren?ssima Rep?blica dos Bruzundangas ? o direito vigente n?o represente e proteja os interesses de grupos e classes dominantes. Mas, em primeiro lugar (justamente porque existe o capitalismo, masexiste a democracia), ele n?o protege apenas isso. Ademais ? e volto a citar Lefort ?, por maiores que sejam ?os meios de que disp?e uma classe para explorar em proveito pr?prio e denegar ?s outras as garantias do direito?, ou ?sujeitar as leis aos imperativos da domina??o, esses meios permanecem expostos a uma oposi??o de direito?. Noutros termos, o ?desintrincamento? implica uma ?exterioridade? da Lei em rela??o ao Poder: este, para ser legitimamente exercido, precisa prestar contas ?quela; e, em nome dela, ele est? sendo legitimamente questionado o tempo todo. Em resumo, a democracia lefortiana aparece como ?um regime fundado na legitimidade de um debate sobre o leg?timo e o ileg?timo? ? e, mais ainda, um ?debate necessariamente sem fiador e sem termo?. ? a? onde, a meu ver, come?am os problemas. At? a pr?xima semana!