Quem foi assistir à estreia de Orfeu e Eurídicedo compositor alemão Christoph Willibald Gluck(1714-1787) no antigo Burgtheater de Viena, em 5 de outubro de 1762, pensou que veria mais uma ópera sobre os velhos mitos gregos, mas estava completamente enganado. Acabou testemunhando um momento revolucionário na história da música ocidental, quando os paradigmas da opera seriaforam rompidos e uma nova era foi descortinada aos amantes do gênero.
Orfeu e Eurídice(Orfeo ed Euridice, no original em italiano) é, com a exceção das obras-primas de Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), a ópera mais importante do século XVIII. Por seu tema, remete às origens da ópera, com as pioneiras Eurídicede Jacopo Peri (1600) e Orfeude Claudio Monteverdi (1607). Mas, se Gluck parecia olhar para trás, esta obra desbravou outros caminhos para a ópera. O movimento da reforma operística iniciou-se na década de 1750. Estimulados pelo músico e filósofo parisiense Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), um grupo de compositores reformistas defendia a primazia da ação dramática, o abandono do puro virtuosismo vocal e o fim de toda música ou dança que não servisse à raison d’êtredramática de uma ópera. Orfeu e Eurídicede Gluck incorpora esses ideais e representa justamente o maior símbolo dessa reforma.
Tratando mais especificamente sobre o mito grego, lembramos o Prof. Junito Brandão (1924-1995), grande classicista brasileiro, quem nos ensina que Orfeué uma personagem lendária, possivelmente de origem trácia, filho de Calíope, a mais importante das nove musas (“a de bela voz”) e do rei Eagro. Este, por motivos político-religiosos, é frequentemente substituído por Apolo. De qualquer forma, Orfeu sempre esteve vinculado ao mundo da música e da poesia. Tocava a lira e a cítara, sendo considerado o inventor desta última ou, ao menos, quem lhe aumentou o número de cordas, de sete para nove – numa homenagem às nove musas. Sua maestria na cítara e a suavidade de sua voz eram tais, que os animais selvagens o seguiam, as árvores inclinavam suas copadas para ouvi-lo, e os homens mais coléricos sentiam-se dominados pela ternura e bondade.
O importante é que Orfeu é um herói muito antigo, pois já o encontramos na expedição dos argonautas – marinheiros que, na mitologia grega, acompanharam o herói Jasão em sua jornada até a Cólquida (onde fica hoje a Geórgia) para resgatar o velo de ouro (artefato mágico com habilidades de cura poderosas). A história faz parte do mito grego Jasão e os Argonautas, e eles eram assim chamados porque o navio no qual embarcaram para essa aventura foi construído por Argos, um dos heróis da história. O mito chegou na sua forma mais completa na obra Argonáutica, de Apolônio de Rodes (escrita no século 3 a.C.).
Ao regressar dessa aventura, Orfeu casou-se com a ninfa Eurídice, a quem amava profundamente, considerando-a como dimidium animae eius, como se ela fora a metade de sua alma. Acontece que um dia – segundo o poeta latino do século I a.C. Públio Virgílio Marão no canto 4 de seu maravilhoso poema As Geórgicas, versão mais rica e mais bela do mitologema (elemento básico de um mito) – o apicultor Aristeu tentou violar a esposa do cantor da Trácia. Eurídice, ao fugir de seu perseguidor, pisou numa serpente, que a picou, causando-lhe a morte.
A trama da ópera de Gluck tem início exatamente a partir deste ponto do mito grego – e é simplificada até o limite da austeridade, no contexto da reforma operística que o compositor encabeçou. É a primeira vez que uma ópera de um assunto sério conta uma história mitológica de forma tão simples, envolvendo apenas três personagens – Orfeu, Eurídice e o Amor (ou Eros, na mitologia grega). Já de início entendemos o porquê do lugar ímpar de Orfeu e Eurídicena história da música: um coro lamenta a morte de Eurídice em tom formal e elegíaco, enquanto Orfeu chora por ela num estilo vocal eletrizante – que prenuncia a era romântica.
A ópera se situa no bosque onde se encontra o túmulo de Eurídice, no Hades (o mundo inferior) e nos lugares entre os dois, na Antiguidade mitológica. No início do primeiro ato, os pastores e ninfas de luto se aproximam do túmulo de Eurídice com flores e incenso. Em meio a seu conformado lamento, ouve-se o nome de Eurídice clamado em desespero por Orfeu, reclinado numa rocha. É em vão que ele invoca o amor perdido, recebendo como resposta apenas o eco da própria voz. De repente, a indignação com os deuses do submundo incita Orfeu: com coragem de herói, ele descerá ao inferno em busca da amada.
O Amor anuncia que Júpiter, tocado pela dor de Orfeu, permitirá que ele faça a viagem ao Hades. Se sua música for capaz de aplacar os espíritos do inferno, Orfeu poderá trazer Eurídice de volta à luz do dia. Mas haverá de perdê-la para sempre e viver infeliz se a contemplar antes de deixar as cavernas do rio Estige. E não poderá falar-lhe dessa proibição. Sozinho, Orfeu decide ir. Trovões e relâmpagos marcam o momento em que ele aceita o desafio dos deuses. O segundo ato inicia numa caverna que conduz ao Hades, com espíritos do submundo aterrorizando Orfeu, ameaçado pelos latidos de Cérbero, o cão de guarda do reino dos mortos:
Quando ele canta sua dor, contudo, os espíritos tenebrosos se comovem e abrem os portões do mundo subterrâneo para “o vencedor”. Orfeu adentra aos ensolarados Campos Elísios, morada dos deuses e heróis, e se rejubila com tal bem-aventurada perfeição, mas não encontra Eurídice:
Heróis e heroínas a trazem, comentando a sobre-humana lealdade de Orfeu. Sem a contemplar, Orfeu conduz Eurídice para fora dos Campos Elísios. Já no terceiro ato, Orfeu guia a amada por um labirinto de rochas e plantas bravias. Ela pergunta se ele está vivo e ela também. Cada pergunta é uma tortura para Orfeu, que trata de apressá-la. Como ele não atende seus pedidos de um abraço ou mesmo um olhar, ela acaba por chamá-lo de traidor. Quer então continuar morta, e ele diz que sempre viria em sua busca. Quando Orfeu faz menção de voltar-se, Eurídice desmaia, pedindo-lhe que se lembre dela. Finalmente Orfeu se volta, mas o que vê é a morte de Eurídice. Em vão ele tenta reanimá-la:
Orfeu quer se unir a ela na morte, mas é impedido pelo Amor. E então Eurídice, como saindo de um sono, retorna à vida. No encontro dos amantes, o Amor os convoca a retornar à Terra. Num templo dedicado ao Amor, os pastores entram na alegre dança de comemoração da volta de Eurídice, cantando o triunfo do amor e da esperança, que conclui a ópera.
Vale a pena salientar, entretanto, que o final do mito grego em sua versão mais consagrada nada tem de feliz: Eurídice não revive após a quebra da promessa do amado aos deuses e Orfeu é assassinado após seu retorno frustrado do mundo dos mortos. Ele poderia ter trazido a esposa de volta, se não tivesse olhado para trás. O grande desencontro de Orfeu no Hades foi exatamente este: o deter olhado para trás, de ter-se apegado à matéria, simbolizada por Eurídice, explica o Prof. Junito Brandão em seu Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega(1991).
Até mesmo na Bíblia, em Gênesis19/17-26, uma das recomendações que os dois anjos de Javé, enviados para destruir Sodoma e Gomorra, fizeram a Lot foi que, abandonando Sodoma com a família, não olhasse para trás: salua animam tuam, noli respicere post tergum– “salva tua vida, não olhes para trás”, mas a mulher do patriarca não resistiu, olhou para trás e foi transformada numa coluna de sal. Houve uma desobediência a Javé, assim como Orfeu desobedeceu aos deuses. A Orfeu, buscando Eurídice, à mulher de Lot, fugindo da cidade maldita, a recomendação foi a mesma: não olhar para trás– não se voltar ao passado, às faltas, aos erros…
O retorno ao antigo modelo grego de teatro era uma preocupação dos reformistas como Gluck. Assim, quanto mais óperas ele compunha, tanto mais lhe vinham dúvidas se a música dramatizada de seu tempo correspondia a esse modelo, ou seja, à representação de seres humanos de carne e osso com sentimentos, paixões e golpes do destino. Naquela época, meados do século XVIII, os empresários teatrais só queriam fazer sucesso e ganhar dinheiro com as óperas. Por isso, o compositor tinha de satisfazer o gosto e as preferências do público, que queria ser entretido com o espetáculo. Para tanto, os palcos eram decorados com efeitos especiais e lantejoulas. As árias eram sobrecarregadas com coloraturas artificiais apenas para que o cantor pudesse se exibir e se destacar. Não importava mais o que os personagens tinham a dizer… Os personagens não pareciam naturais – mais se assemelhando a marionetes artificiais.
Gluck, compositor maduro e reconhecido, teve coragem de mudar a forma e o conteúdo, o libreto e a música da ópera. Esforçou-se para encontrar um enredo simples, compreensível. O público não deveria continuar sendo entretido com falas vazias e gestos teatrais do cantor. Deveria, sim, ser comovido pelos destinos dos personagens, como nos antigos dramas gregos. Gluck também simplificou a música, que deixou de ser o elemento mais importante da ópera, tendo apenas a função de reforçar a situação dramática no palco. O princípio de Gluck é: prima le parole, poi la musica– “primeiro as palavras, depois a música”. Isso não quer dizer, porém, que sua excepcional veia melódica e a qualidade técnica de sua partitura fossem sacrificadas. Gluck otimizou esses elementos musicais e os lapidou ao extremo, para favorecer ao drama. As coloraturas extasiantes e a pirotecnia vocal seriam deixadas de lado se não servissem para exprimir sentimentos. O coro não poderia ser apenas decorativo, mas deveria participar do enredo. Era a busca por uma humanização da ópera.
A estreia de Orfeu e Eurídiceem Viena reuniu talentos perfeitamente moldados para música de Gluck: o poeta reformista Ranieri de’ Calzabigi (1714-1795), o visionário coreógrafo Giovanni Maria Quaglio (1700-1765), associando em sua concepção cênica elementos formais e naturais adequados à música inovadora da ópera. No papel de Orfeu estava o castratoGaetano Guadagni (1728-1792), que cantara oratórios de Georg Friedrich Händel (1685-1759) em Londres, onde também estudara interpretação teatral com o famoso dramaturgo shakespeariano David Garrick (1717-1779). Destoando dos demais cantores, Guadagni era conhecido por evitar excessos. Várias versões da ópera foram apresentadas nas décadas seguintes à estreia, sendo a mais famosa a que Gluck fez para a Ópera de Paris em 1774. Compositores românticos fizeram arranjos sobre a partitura, notavelmente Hector Berlioz (1803-1869).
Embora os textos das obras-primas de Gluck tivessem origem na Antiguidade, suas obras seminais abriram caminho para o futuro da ópera. Compositor de influência decisiva, Gluck encerrou a era barroca de Claudio Monteverdi (1567-1643), Jean-Baptiste Lully (1632-1687) e Händel e inaugurou a clássica, que florescia nas obras-primas de Mozart e Luigi Cherubini (1760-1842). Mas a influência não parou aí. Richard Wagner (1813-1883) e Richard Strauss (1864-1949) foram profundamente influenciados por Gluck, e até hoje os compositores levam sua estética em consideração. Um verdadeiro gênio transecular.
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