Discreto em sua massa de informações compactas, por vezes divertidas, e fartamente documentadas, o livro “Os ingleses”, dos historiadores Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-Burke, espelha, em linhas gerais, uma das grandes características do povo inglês: a discrição. Para os brasileiros, sempre tão afeitos às ênfases e aos arroubos dionisíacos da “latinidade” ou da “cordialidade” (no sentido buarquiano da palavra), o termo “discrição” é quase sinônimo de apagamento e de mediocridade, pois somos extrovertidos demais, falantes demais, e, para o bem e para o mal, afetuosos demais. Até o nosso primeiro imperador deu um grito para proclamar a Independência! Enfim, precisamos da ênfase como de um fôlego vital.

“Os ingleses” são, portanto, um retrato sóbrio (mas bem-humorado e rico) do país de Shakespeare, de sua cultura material e imaterial, de seus valores, de suas artes e, óbvio, de sua história. Tudo somado, é muita coisa. Mas seus autores (aliás, como se sabe, tão próximos do Brasil) fogem do tom ufanista como o diabo da cruz! Nada de exaltação!  Que os próprios leitores cheguem às suas conclusões. Burke e Pallares-Burke fazem mais: estabelecem diálogos, tentam trazer para a sua visão os olhares estrangeiros, sobretudo aqueles olhares brasileiros, até porque o livro se volta claramente, embora sem exclusividade, para o Brasil, um país de anglófilos ilustres, a exemplo de Ruy, Machado, Nabuco, Gilberto Freyre (este último o autor de “Ingleses no Brasil”).

O livro não se pretende um guia, terá antes um parentesco com uma obra didática.  De um conjunto de traços simples, mas firmes, forma-se o rosto sereno e circunspecto de todo um povo. Uma serenidade e circunspecção a que não falta o riso de um humor típico e sutil, digno de uma nação que cultiva o “understatemnent — a prática da atenuação” e desaprova o “fuss”, o estardalhaço. Enfim, “Keep calm and carry on” (“Mantenha-se calmo e siga em frente”). Mas os ingleses amam rir de si mesmos e nos estimulam a fazer o mesmo, haja vista a antológica série de comédia televisiva “Monty Python”, que virou filme, shows e musicais, conquistando o mundo.

Espontâneas e privadas ou organizadas pelo Estado, as instituições são o reflexo de um povo, e o inglês as possui de um modo peculiar e confiante. Uma das mais originais é a própria Constituição, que, não sendo escrita, ressuma dos costumes, de estatutos votados pelo Parlamento e de um documento secular: a Magna Carta, de 1215. O chamado “Direito consuetudinário” tem no país uma vida longa e própria, filha de um empirismo tipicamente inglês. A monarquia, como se sabe com mais frequência, é uma confiável fiadora da estabilidade e da continuidade macropolíticas. Outra grande instituição é a Igreja Anglicana, criada por Henrique VIII. Uma importantíssima organização (menos conhecida do brasileiro), de alto valor humano e orgulho de todos os ingleses, é o National Health Service (NHS), Serviço Nacional de Saúde, no qual se inspirou o nosso SUS e que se fundamenta num tratamento público, gratuito, igualitário e universal para todos os cidadãos. Outras instituições bem conhecidas são a mundialmente famosa BBC; o metrô de Londres (popularmente chamado de “tube”), o mais antigo do mundo (160 anos em 2023); a City, no centro da capital, onde secularmente se concentram muitos dos maiores serviços financeiros e de negócios do planeta; não por acaso Londres é uma das cidades globais do mundo contemporâneo. Por outro lado, como nos chamam a atenção os autores, a Inglaterra também é a terra onde prosperam instituições de voluntariado e de caridade, sem falar de tantos outros orgulhos nacionais, a exemplo dos “pubs” e do futebol, por onde, por assim dizer, flui toda a “inglesidade” da população, o que nunca se transformou em chauvinismo, uma vez que a Inglaterra é consabidamente um país tolerante, liberal e aberto aos imigrantes, não tendo se tornado jamais, sem embargo de sua  situação geográfica, uma ilha solitária!

Uma feliz  e bem-vinda informação, especialmente em tempos de aquecimento global,  é sabermos o quanto os ingleses vivem no verde dos campos, dos parques, das hortas e dos jardins, sem falar que a zona rural é para eles uma forma de existir em sintonia com a natureza. Londres, com seus inúmeros parques e praças, dizem os autores, é “[…] excepcionalmente verde”. Para “[…] os habitantes das cidades, os inúmeros parques representam pedaços do campo dentro da vida urbana, o que é especialmente importante para os que não possuem jardins”. Joaquim Nabuco, em “Minha Formação”, nos deixou uma impressão vívida da natureza dentro da grande cidade: “[…] as imensas praças e os parques que se abrem de repente na embocadura das ruas, como planícies onde poderiam errar grandes rebanhos, à sombra de velhas árvores […] Este último é para mim o traço dominante de Londres: o estrangeiro suporia ter entrado no campo, nos subúrbios, quando está no coração da cidade”.

Deixemos o leitor ou a leitora na verde amplidão desses parques londrinos, não sem a tristeza de não podermos compartilhar tudo o que gostaríamos de um livro tão denso e variado. Não sem registrarmos a saudade de uma insignificante dezena de dias do verão de 2014 (tão pouco para tanto!), quando fomos fisgado pelos encantos ingleses, um tempo sobre o qual  bem poderíamos repetir um Nabuco excepcionalmente enfático: “A curiosidade de peregrinar estava satisfeita, trocada em desejo de parar ali para sempre”. Em retrospecto, o livro de Peter Burke e Maria Lúcia Pallares-Burke é para nós como um amigo que ilumina o passado e nos faz perceber uma Inglaterra tão apolínea quanto diversa e acolhedora. Que para outros leitores também seja isso ou mais do que isso.