“Ruptura, a crise da democracia liberal”, o mais novo ensaio do sociólogo e pensador espanhol Manuel Castells, acaba de chegar ao Brasil, onde, como testemunhamos todos os dias, a democracia, longe de ser a madeira que cupim não rói, não é mais que um aglomerado oscilante, ameaçado pelos ventos do autoritarismo e pela tempestade de uma corrupção onipresente e afrontosa. Vale a pena lê-lo, sobretudo agora, às vésperas de uma eleição tão importante.
Observando a cena de um ponto de vista global, Castells inicia o seu ensaio com uma frase de efeito, uma imagem quase de romance ou de poesia, não despida de um sentido profundamente ecológico. Começa ele: “Sopram ventos malignos no planeta azul”. Que ventos terríveis seriam esses a ameaçar o mundo? O autor logo os enumera: o terrorismo; a marcha rumo à inabitabilidade da Terra; uma permanente ameaça de guerras atrozes; “uma violência crescente contra as mulheres que ousaram ser elas mesmas”; a pós-verdade; “uma sociedade sem privacidade”, que nos transforma em simples dados; e uma cultura que, atendendo pelo nome de “entretenimento”, é construída sobre “o estímulo de nossos baixos instintos e a comercialização de nossos demônios”.
Coroando esses ventos cruéis e sem lirismo (que pouco ou nada lembram o “Congresso dos Ventos”, do poeta Joaquim Cardozo), Castells aponta para o talvez mais devastador: a ruptura da relação entre governantes e governados, o colapso gradual da democracia tal como há dois séculos foi construída, ou seja, em antagonismo ao arbítrio e ao Estado autoritário. Não por acaso há um clamor popular em praticamente todos os continentes, clamor que se expressa com as seguintes palavras: “Não nos representam”. Com a fadiga da democracia liberal, existe agora a busca de uma democracia dita “real”. Esses ventos intranquilos desnudam, em vários países do mundo, uma democracia já exausta e andrajosa. Estamos num ponto, sugere Castells, que não sabemos bem se é o caos ou uma nova ordem pós-liberal. No meio desse turbilhão global, o Brasil logo é apontado pela “total decomposição do seu sistema político” e por sua importância geopolítica na América Latina. Já no palco global, as forças nacionalistas e autoritárias se alimentam do ressentimento ante a falta de representatividade e as consequências do rolo compressor da globalização. Os exemplos não vêm só dos países atrasados ou emergentes, mas de Estados como a Alemanha, a França (onde 60% rejeitam a globalização), os Estados Unidos, o Reino Unido e a Espanha.
“Ruptura” traz números assustadores. Vão aqui dois exemplos. Mais de dois terços da humanidade acham que os políticos não os representam. Na Espanha, em 2016, a desconfiança com os partidos políticos estava em 88%. (No Brasil, relembremos, de passagem, as duas instituições mais confiáveis continuam sendo as Forças Armadas e a Igreja Católica). Castells também vai, por isso, se deter nos casos emblemáticos do Brexit; de Trump (“um movimento identitário” da América Profunda); do macronismo na França; e da própria Espanha, sua terra, onde mais recentemente voltou a questão catalã.
Mas nem tudo está perdido. Embora xenofobia, terrorismo, nacionalismo, crise de representatividade e ressentimentos ante à globalização formem um caldo perverso, de onde brota vigorosa a tentação autoritária e caudilhesca, não há, segundo Castells, um descrédito completo da democracia: “[…] o que observo é que cada vez menos gente acredita nessa forma de democracia, a democracia liberal, ao mesmo tempo que a grande maioria continua defendendo o ideal democrático. Precisamente porque as pessoas querem crer na democracia, o desencanto é ainda mais profundo em relação à forma como a vivem”.
Não obstante o ponto de vista analítico de seu ensaio, sob o qual vai até as “raízes da ira”, e do exame lúcido da cena global, nosso autor, por prudência e sabedoria, exorta-nos a perceber a realidade sem descurar do que “hoje se aprende com a neurociência”, a saber: “[…] que a política é fundamentalmente emocional, por mais que isso pese aos racionalistas ancorados em um Iluminismo que há tempos perdeu seu brilho”. Por outro lado, como deixa entrever, são as emoções que, uma vez coletivas, mudam a ordem das coisas: “[…] as emoções coletivas são como a água: quando encontram um bloqueio em seu fluxo natural, abrem novas vias, frequentemente torrenciais, até inundar os exclusivos espaços da ordem estabelecida”. Uma coisa lhe parece certa: “A crise dessa velha ordem política está adotando múltiplas formas”: brutalidade do Estado, ascensão de caudilhos narcisistas, teocracias fundamentalistas, cinismo político. Isso de par com uma situação caótica advinda da ruptura da relação institucional entre governantes e governados.
Assim, qual a esperança? Qual a esperança se o trabalho do pensador, após auscultar muitas sociedades por mais de duas décadas, não detecta “sinais de nova vida democrática por trás das aparências”? É o que cada um de nós, leitores, parece ser desafiado a responder ao fim da leitura de “Ruptura”.
Paulo Gustavo
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