Em novembro de 2016, o manuscrito da Sinfonia n.? 2 de Gustav Mahler(1860-1911) foi vendido por 4,5 milh?es de libras esterlinas, batendo o recorde segundo a Sotheby?s por ser o manuscrito musical mais caro da Hist?ria. A casa de leil?o em Londres disse que o documento de 232 p?ginas, escrito ? m?o pelo pr?prio Mahler, ? not?vel, pois mant?m sua forma original e mostra o processo de composi??o, incluindo altera??es e coment?rios. A sinfonia foi tocada a primeira vez em 1895, com reg?ncia do pr?prio compositor diante da c?lebre Orquestra Filarm?nica de Berlim, na capital alem?.
A Sinfonia n.? 2 foi escrita entre 1888 e 1894, sendo publicada no ano de 1897 em Leipzig. A obra passou por uma revis?o em 1910, pen?ltimo ano de vida de compositor. Tamb?m ? conhecida como ?Sinfonia da Ressurrei??o? (ou ?Auferstehungssinfonie?, em alem?o) por fazer refer?ncias ao Cristianismo.
Em fevereiro de 1894, durante os funerais do grande pianista e regente Hans von B?low, Mahler ouviu um coro de meninos cantar o hino ?Die Auferstehung? (A Ressurrei??o), de autoria do poeta alem?o Friedrich Klopstock (1724-1803). O hino impressionou tanto Mahler que ele resolveu incorpor?-lo ao final da sinfonia que, naquele momento, estava em prepara??o. Ao mesmo tempo decidiu que a Ressurrei??o seria o tema principal da obra.
A ?Sinfonia da Ressurrei??o? ? a primeira sinfonia em que Mahler usa a voz humana, que aparece na ?ltima parte da obra, no cl?max, tal qual a Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven (1770-1827). Al?m da influ?ncia de Beethoven, percebem-se tra?os de Anton Bruckner (1824-1896) e Richard Wagner (1813-1883) na composi??o.
Compositor austr?aco, de origem bo?mia e de ascend?ncia judaica, Mahler nasceu em Kaliste e faleceu em Viena. ?? tr?s vezes ap?trida. Como natural da Bo?mia, na ?ustria; como austr?aco, na Alemanha; como judeu, no mundo inteiro. Por toda parte um intruso, em nenhum lugar desejado?, declarou. Apesar da origem judia, Mahler sentia fasc?nio pelo tema da morte e pela liturgia crist?, principalmente pela cren?a na Ressurrei??o e Reden??o. A Segunda Sinfonia prop?e responder ? pergunta: ?Por que se vive??. Simbolicamente ela narra a derrota da morte e a reden??o final do ser humano, ap?s ter passado por uma per?odo de incertezas e agruras. ? como um abismo que nos causa vertigem ao buscarmos o fundo. Sedento da ideia de perd?o proposta pelo Catolicismo, Mahler iria converter-se para assumir a dire??o da ?pera Imperial de Viena, cargo restrito a cat?licos. N?o foi um ato meramente oportunista; Mahler tinha real convic??o de suas d?vidas.
A ?Sinfonia da Ressurrei??o? narra a queda e morte do her?i, as suas d?vidas, sua f? e a ressurrei??o no Dia do Ju?zo Final. O primeiro movimento ? sobre a morte, no segundo a vida ? relembrada, e o terceiro apresenta as d?vidas quanto ? exist?ncia e ao destino. No quarto movimento o her?i readquire a sua f? e a esperan?a. No quinto e ?ltimo movimento ocorre a Ressurrei??o, na forma imaginada por Mahler. Na sua forma final, a sinfonia, cuja dura??o aproximada ? de 80 minutos, ? formada por cinco movimentos distribu?dos da seguinte forma:
- Allegro maestoso: Mit durchaus ernstem und feierlichem Ausdruck (R?pido e majestosamente: Com express?o muito grave e solene)
O impacto dos primeiros acordes j? ? devastador. Na atmosfera da imobilidade provocada pelo impacto da morte, a m?sica do primeiro movimento nos coloca em contato com a maior d?vida existencial do g?nero humano, transformada em uma m?sica poderosa, inquietante, urgente. Uma enorme marcha f?nebre se inicia em largas propor??es, cuja impress?o ? de relut?ncia, a pr?pria relut?ncia da aceita??o ou n?o das perdas da vida, do adeus ? pessoa amada, da luta e do sofrimento:
- Andante moderato: Sehr gem?chlich, Nicht eilen(A passo de caminhada, moderadamente: Muito vagaroso, sem pressa)
O segundo movimento, que por vezes toma ares de trilha-sonora da Belle ?poque numa valsa indecisa,alterna o L?ndler(dan?a popular germ?nica pouco movimentada) e a atmosfera dram?tica de se??es intermedi?rias. Traz as lembran?as, a reflex?o p?s-morte, a melancolia de quem fica. H? passagens de extrema beleza e delas somos conduzidos a outras que, de longe, sugerem ang?stia. Vale a m?xima do pr?prio compositor de que ?uma sinfonia tem que ser como o mundo e conter tudo?:
III. Scherzo: In ruhig flie?ender Bewegung(Scherzo: Movimentado mas fluindo tranq?ilamente)
Este movimento traz ? tona a nega??o, t?pica dos momentos de perda, pela qual todos n?s passamos. Recusamo-nos a acreditar; o mundo agora parece sem sentido, e Mahler ? implacavelmente ir?nico com isso. H? uma informa??o de bastidores importante para se compreender esta passagem: Mahler usa a mesma melodia de uma can??o tradicional sobre um serm?o de Santo Ant?nio aos peixes; ou seja, sarcasticamente ele nos coloca em contato com a realidade sugerida no texto ? os peixes ficaram encantados com a ret?rica do santo, mas nada puderam compreender do que foi dito. A mensagem ? clara: h? um sentido no caminho da vida, mas pouco podemos entender ou aproveitar do que ? oferecido, uma vez que estamos encantados com o aspecto superficial das coisas:
- Urlicht: Sehr feierlich, aber Schlicht(Luz original: Muito solene, por?m simples)
O quarto movimento ?, na verdade, uma can??o pr?-existente que ele havia escrito para a voz da contralto solista: ?Urlicht? (Luz Primordial, ou Luz Original). Este ? o epicentro da sinfonia. ? a tradu??o comovente dos sentimentos mais simples ? a ingenuidade, a cren?a e a f?:
Tradu??o do texto cantado:
?? rosa vermelha!
O homem encontra-se em grande necessidade!
O homem encontra-se em grande dor!
Como eu gostaria de estar no c?u.
Eu vim por um largo caminho
Um anjo veio e queria me afastar.
Ah n?o! Eu n?o serei afastado!
Eu vim de Deus e retornarei a Deus!
O Deus amoroso me dar? um pouco de luz,
Que me iluminar? para a aben?oada vida eterna!?
- Im Tempo des Scherzo: Wild herausfahrend ?Aufersteh?n?(No mesmo tempo do Scherzo: Condu??o feroz at? o coro ?Ressurrei??o?)
Ap?s a afirma??o de f? do quarto movimento (?Venho de Deus e quero retornar a Deus?), o movimento conclusivo lembra-nos o caminho j? percorrido, mas, em seu ter?o final, as reminisc?ncias s?o transfiguradas. Retorna a reflex?o a respeito da morte, num aterrador retorno ao clima inicial. Texto e m?sica conclamam o ouvinte a participar da mensagem da sinfonia e permitem experimentar, para al?m das tristezas e alegrias cotidianas, um caminho f? e de esperan?a, de vida, morte e ressurrei??o. O movimento representa a segunda metade da obra, com dura??o quase igual aos quatro movimentos anteriores. Mahler faz uso de instrumenta??o distante (geralmente colocada atr?s do palco, onde n?o se pode ver) para representar o aviso dos c?us, enquanto a orquestra reproduz o desespero da condi??o humana. Como na Nona de Beethoven, alguns temas dos movimentos anteriores s?o relembrados. Ap?s um bom tempo de m?sica puramente instrumental (outra coincid?ncia com o final da Nona de Beethoven), entra em cena o coro, com o poema de Klopstok, sobre o qual Mahler acrescentou trechos da pr?pria pena:
Tradu??o do texto cantado:
?Ressuscitar?, sim,
O meu p? ressuscitar?
Ap?s um breve repouso!
Vida imortal! Vida imortal
Ser? dada por aquele que te chamou.
Para florescer novamente tu foste semeado!
O Senhor da colheita
Recolher? seus feixes,
N?s, que morremos.
? cr?, meu cora??o, cr?:
N?o perder?s nada!
Alcan?ou aquilo que desejaste,
Aquilo que amaste
Aquilo por que lutou!
? cr?, tu n?o nasceste em v?o!
N?o viveste nem sofreste em v?o!
O que foi criado deve perecer
O que pereceu deve ressuscitar!
N?o trema mais!
Prepara-te para viver!
? dor, que penetra tudo
De ti fui separado!
? morte, que conquistas tudo,
Agora foste conquistada!
Com asas que ganhei,
Na dura batalha do amor,
Al?arei voo para a luz que nenhum olho penetrou!
Morrerei para poder viver.
Ressuscitar?, sim,
Meu cora??o ressuscitar? em um instante!
Tudo o que sofreste,
Te levar? a Deus!?
O amplo di?logo que a ?Sinfonia da Ressurrei??o? estabelece com elementos caracter?sticos do universo mahleriano n?o para, entretanto, nos textos. Na obra encontramos, por exemplo, um dos arqu?tipos da m?sica de Mahler: a marcha, de cores tr?gicas e f?nebres no primeiro movimento, onde alus?es ao ?Dies irae? gregoriano convivem com passagens de tons mais serenos, em um tecido composicional de fortes contrastes, tamb?m caracter?stico da linguagem do compositor.
Sua inven??o orquestral, integrada organicamente aos demais elementos composicionais, n?o conhece limites e explora, com verdadeira atitude investigativa, novas sonoridades, extraindo de cada instrumento ou naipe uma for?a expressiva, um p?thos que o distingue como o compositor que fez o elo entre a tradi??o rom?ntica e novas linguagens do s?culo XX. O ap?trida encontrou seu lugar no curso da Hist?ria e a aurora que ilumina suas novas paisagens sonoras emerge desse ocaso do Romantismo e desperta a verdadeira venera??o de que foi objeto por parte dos m?sicos da Segunda Escola de Viena, grupo de compositores modernos cuja m?sica ? caracterizada pela atonalidade e dodecafonismo.
Em 1910, Mahler terminou a Nona Sinfonia (seu ?ltimo trabalho completo) e come?ou a escrever a D?cima. Nesse ano, sua esposa Alma precipitou uma crise conjugal. Em Leyden, Mahler teve uma consulta com Sigmund Freud (1856-1939). Numa viagem aos Estados Unidos, em fevereiro de 1911, Mahler ficou extremamente doente. O m?dico da fam?lia diagnosticou uma infec??o estreptoc?cica. Por sugest?o do m?dico, no come?o de abril, Mahler partiu para Paris para consultar um bacteriologista. Por um breve per?odo, Mahler teve uma pequena melhora. Contudo, ele n?o conseguiu se recuperar. Um m?dico especialista em hematologia sugeriu que Mahler fosse internado em Viena e para l? ele foi levado.
A 18 de maio de 1911, com quase 51 anos, Gustav Mahler faleceu de uma infec??o estreptoc?cica no sangue. Suas ?ltimas palavras foram: ?Minha Almschi? (refer?ncia ? sua esposa Alma, literalmente traduzida como ?Minha Alminha?) e, finalmente, ?Mozart?, seu compositor favorito. Como Beethoven, Mahler morreu durante uma trovoada.
Entre as inova??es introduzidas por Mahler est?o o uso de melodias com grandes implica??es para a harmonia, a combina??o expressiva de instrumentos, em grande e pequena escala e combina??o da voz e do coral ? forma sinf?nica. Al?m de compositor, Mahler foi tamb?m um grande maestro e suas t?cnicas de reg?ncia sobrevivem at? os dias de hoje. Em sua ?poca Mahler encontrou dificuldades em ver seu trabalho aceito. Por bastante tempo ele ficou mais conhecido por suas excepcionais habilidades como maestro de orquestra do que como compositor. Por?m, ele confiava em seu talento e dizia: ?Meu tempo h? de chegar!? E, de fato, seu tempo chegou.
De novo espetacular e surpreendente. Não sei o que é Frederico Toscano, um historiador da música erudita, ou encantado erudito da música clássica? E sempre se percebe o cuidado da pesquisa. Uma preciosidade. Já tive uma fase de paixão por Mahler. E por Sibelius. Alguma semelhança?!
Cara Helga, obrigado pela acolhida sempre gentil. A honra é toda minha em estar ao seu lado neste projeto. Curiosamente, em 1907, Mahler teve um encontro com Sibelius, cujas sinfonias tinham concepções radicalmente opostas às do colega: intimistas, lineares, puristas. Eles discutiram, na ocasião, o significado de uma sinfonia. Sibelius enfatizava sua “profunda lógica e conexão interior”. Mahler discordou completamente: “uma sinfonia deve ser como o mundo; deve envolver tudo.” – como citei no texto. O fato é que criaram obras grandiosas e eternas. Confesso que o meu mundo musical é mais clássico, porém a Segunda de Mahler me é especialmente impactante. Este registro que usei com Bernstein é lendário. Dame Janet Baker se supera no quarto movimento. Arrebatador.
Fantástico!!! Parabéns à revista e ao Frederico Toscano
Sim, Frederico, reparei o quanto está impressionante de teatral o Bernstein. Só mesmo um homem bonito p’ra fazer aquele gestual todo.