Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Um dos meus cinco leitores sugeriu-me que abordasse nessa s?rie de reflex?es sobre a democracia a distin??o entre legalidade e legitimidade. Como se sabe (todo estudante de direito aprende isso logo nas primeiras aulas), nem tudo que ? legal ? leg?timo, e nem tudo que ? leg?timo ? legal. A f?rmula ? boa, mas a equa??o n?o ? de f?cil solu??o. O que a filosofia do direito j? escreveu sobre o assunto talvez n?o coubesse nas prateleiras de uma biblioteca universal organizada por Jorge Luis Borges ? de quem se diz que, apesar de ter se tornado cego ao longo de uma longa vida, leu tudo! J? na Gr?cia antiga (e isso para n?o ir muito longe…) essa quest?o est? presente no famoso conflito entre Ant?gona e Creonte, rei de Tebas. Um irm?o de Ant?gona rebela-se contra o rei, ? morto no campo de batalha e, conforme a lei de Tebas, n?o tem o direito de ser sepultado. Sua irm?, em nome de um direito natural, anterior e superior ? lei de Tebas, insiste em dar-lhe uma sepultura. A atitude de Creonte exemplifica a legalidade; a de Ant?gona, a legitimidadede uma ?lei? divina inscrita no cora??o dos homens que a ela se op?e.

O exemplo, extra?do de uma pe?a de S?focles com o mesmo nome, ? bom, pela sua clareza, enquanto recurso did?tico para ilustrar o quiproqu? entre o legal e o leg?timo. Mas ele ? bastante enviesado, porque o que est? em jogo ? o direito de ser sepultado depois de morto ? ? um daqueles que recebem nossa ades?o imediata, e assim nos reconforta rapidamente no pressuposto de que, entre a legalidade e a legitimidade, a segunda goza de um estatuto moral superior ? primeira, devendo assim sempre prevalecer diante dela. Mas se sairmos do exemplo escolhido ad hoc, em rela??o ao qual ? f?cil tomar uma posi??o, e tentarmos estabelecer um crit?rio mais geral onde ancorar nosso julgamento ? uma teoria da legitimidade, por assim dizer ? nossa pretens?o come?a a fazer ?gua. Querem ver?

Legalidade? um atributo inerente ? lei formalmente em vigor; mas, como se diz, ela nem sempre ? leg?tima; nesse caso, qual seria o crit?rio que permitiria aferir sua legitimidade? No caso de Ant?gona, uma ?lei natural? de origem divina. Mas, como se sabe, sempre houve muitos deuses no mundo… ? e, ademais, segundo Nietzsche, ?Deus est? morto?. Claro que n?o est?. Mas, no que diz respeito aos estados democr?ticos modernos, chega a ser um postulado sua separa??o da esfera do divino, de modo que se erigiram outros crit?rios para se aferir a legitimidade do direito positivo. O mais consensual ? em todo caso, o menos discutido ? ? aquele que remete esse crit?rio ? vontade do povo. Segundo a famosa defini??o de Lincoln, a democracia seria ?o governo do povo, para o povo e pelo povo?. Quem n?o conhece e n?o concorda com esse axioma? Mas, exatamente por ser um axioma, ou figurar como tal, ele ? pouco discutido, e at? parece antip?tico coloc?-lo em discuss?o. Afinal, como discordar da afirma??o de que o direito mais leg?timo seria aquele que correspondesse ?s necessidades e aspira??es de seus destinat?rios? Um tal direito n?o corresponderia ? ess?ncia mesma da democracia? Sim. Mas ? s? parar para refletir um pouco e as coisas come?am a se complicar.

Talvez certas afirma??es com que todos concordamos tenham direito ? unanimidade exatamente porque, tendo se tornado lugares comuns, n?o sabemos muito bem do que estamos concretamentefalando quando a eles aderimos. Parece-me o caso. Com o que volto a Claude Lefort (meu ?marco te?rico? nessa s?rie de considera??es que venho fazendo) e sua observa??o de que o conceito de ?povo? remete a algo que n?o existe empiricamente, mas apenas simbolicamente atrav?s de representa??es e alegorias; e de que quando procuramos capturar sua figura, a imagem se desvanece. Mas como sup?e-se que o Povoexiste, a democracia ? desafiada pela tarefa de realizar sua vontade. E por isso existem elei??es, plebiscitos, referendos e pesquisas de opini?o. Ok. Quem seria contra?

Mas, meu leitor, quando penso no grupo social a que perten?o ? intelectuais liberais com uma sensibilidade de esquerda ?, e nas propostas que de vez em quando aparecem de se fazer um plebiscito ou referendo no Brasil para discutir quest?es como redu??o da maioridade penal, libera??o do porte de armas, incremento da pol?tica de ?guerra ?s drogas?, proibi??o total do direito ao aborto ? e v?rios etc?teras do mesmo teor ?, e constato que nenhum deles (eu inclu?do) ? a favor de tal consulta ? ?opini?o p?blica?, me ponho a pensar que o exemplo de Ant?gona ? f?cil demais para resolver a quest?o, e que, como diria o Bardo, ?existem mais coisas entre o c?u e a terra do que sup?e nossa v? filosofia?.