No primeiro turno das eleições fui votar com uma discreta camiseta vermelha. Senti receio, mas foi só. No domingo próximo, vou votar outra vez com a mesma camiseta vermelha. Mas desta vez o receio subiu um grau no meu termômetro interno: irei com medo. Nunca vivi isso. O país também não. Nas últimas eleições, houve muito acirramento, mas não se ouviu dizer que algum eleitor de Dilma tenha saído de casa com medo dos partidários de Aécio, e vice-versa. Parodiando Carlos Drummond de Andrade, nunca me esquecerei desse domingo na vida das minhas retinas tão fatigadas.
***
Nesses dias de insensatez, andei pensando n´A Vida do Espírito, de Hannah Arendt. O livro, elaborado na primeira metade dos anos 1970, assinala o derradeiro período de sua vida. Durante esses anos, ela vai abandonado o “mundo das aparências” e se voltando cada vez mais para a “vidacontemplativa”, notadamente ao empreender o que seria sua última obra. Não terminaria o livro, porque faleceu subitamente em dezembro 1975, quando servia o café depois de um jantar com amigos no apartamento de viúva onde morava. Era a volta ao seu primeiro amor, a filosofia pura– se é que se pode chamar de “pura” uma atividade em que seu representante par excellence, Sócrates, que nada fazia senão perguntas que as pessoas não sabiam responder, tenha pago com a vida uma curiosidade aparentemente tão sem propósito.
Nesse livro, terminal e inconcluso, Arendt volta a explorar um argumento que enunciara dez anos antes, por ocasião do julgamento de um dos arquitetos da “solução final” nazista, Adolf Eichmann: o de que o pensamento, o diálogo mudo que o indivíduo realiza consigo mesmo pode, em ocasiões de emergência, ser o caminho para a independência de julgamento e a coragem moral, um dique contra o mal. Como se sabe, foi refletindo sobre aquele julgamento que Arendt, para espanto dos seus amigos judeus, cunhou a expressão “banalidade do mal”, com a qual procurou entender aquele indivíduo exposto ao mundo dentro de uma gaiola de vidro, num tribunal em Jerusalém, o qual, a despeito de ter perpetrado atos “monstruosos”, pareceu-lhe um sujeito “banal, e não demoníaco ou monstruoso”.
As respostas de Eichmann às questões que lhe eram endereçadas, feitas de “clichês, frases feitas, adesão a códigos de expressão e conduta convencionais”, chamou-lhe a atenção. Arendt observa que tais clichês e condutas padronizadas “têm a função socialmente reconhecida de nos proteger da realidade, ou seja, da exigência de atenção do pensamento feita por todos os fatos e acontecimentos em virtude de sua mera existência. Se respondêssemos todo o tempo a esta exigência, logo estaríamos exaustos”. E Eichmann, a seu ver, “nunca havia tomado conhecimento de tal exigência”. Ele lhe pareceu incapaz de, em algum momento, interromper o movimento automático da mão que carimbava diretivas sobre horários de trens que levavam a Auschwitz e exercer a “atenção do pensamento” sobre o que estava fazendo. E continua: “Foi essa ausência de pensamento – uma experiência tão comum em nossa vida cotidiana, em que dificilmente temos tempo e muito menos desejo de parare pensar – que despertou meu interesse”. Estava colocada a questão que a interessava ao empreender, em seu último livro, a volta ao seu primeiro amor, as questões do espírito: “seria possível que a atividade do pensamento como tal estivesse entre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal?”
Não estou seguro de que a resposta que Arendt tentou elaborar seja satisfatória. Ela explora a tese de que a atividade de pensar, sendo um exercício de “con-sciência” no sentido mais rigoroso da palavra, tem potencialidade imunizadoras, a partir da observação socrática, relatada por Platão no Górgias, de que “é melhor estar em desacordo com o mundo inteiro do que, sendo um, estar em desacordo comigo mesmo”. E aduz um exemplo que se tornou famoso: “a razão pela qual não se deve matar, mesmo numa situação em que ninguém possa vê-lo, é que você não vai querer viver com um assassino. Ao cometer assassinato, você se coloca na companhia de um assassino para o resto da vida”. O problema com esse argumento, como ela mesma reconhece, “é o fato de ser tão somente aplicável a pessoas acostumadas a viver explicitamente consigo mesmas, o que é outra forma de dizer que sua validade só será plausível para os homens que têm consciência”.
As tuas reflexões filosóficas são sempre instigantes, Luciano. Hoje, trazendo mais uma vez a lucidez de Hannah Arendt, inconclusas, tal como você diz dela em A Vida do Espírito, que agora urge ler.
Porém gostaria de dar um palpite sobre teu estado de espírito para esse segundo turno das eleições: “irei com medo. Nunca vivi isso. O país também não”. Não vou repetir o que já escrevi no meu artigo publicado hoje. Mas acrescento. Acho que essas eleições, de uma certa maneira, estão sendo um momento de liminaridade, tal como o entende o antropólogo Victor Turner, tão apropriadamente assimilado por Roberto da Matta para analisar o carnaval do Rio de Janeiro. Um momento limite em que, um medo difuso, irmão do ódio, que vêm permeando com várias roupagens a sociedade brasileira, expressou-se agora cabalmente, com muita força e visibilidade. Acho urgente, mais do que nunca, que nos debrucemos para entender que sociedade é essa que emergiu de séculos de escravidão e de segmentação social. Uma dependência de nossas casas e apartamentos, inexistente não somente nos países avançados, mas em muitos outros semelhantes ao nosso, chama-se “dependência de empregada”. O Centro Josué de Castro tem uma importante pesquisa sobre esse tema. E o cineasta Cléber Mendonça Filho, um de nossos grandes cineastas da atualidade e com acurada sensibilidade para a sociedade brasileira, também tocou nessa ferida em seu curta “O Recife frio”.
Oi, Teresa!
Obrigado pela força!
Estou precisado e precisando dela neste momento…
Quanto à nossa mentalidade escravocrata de merda, estou há muito tempo consciente dela.
Quando morei na França, e não tinha empregada, claro, e minha vizinha de baixo era uma faxineira (sic!), desenvolvi a idéia de, voltando para o Brasil, escrever uma obra-prima enorme, para a qual até arranjei um título: “Suíte & Quarto de Empregada”, que seria (veja só o delírio de grandeza!) uma espécie de “Casa-Grande & Senzala” dos nossos tempos.
Fiquei só no título.
Além de medroso, sou preguiçoso… Além de não ser gênio, claro!
Li seu texto, bem como o de Elimar. Ambos primorosos.
É isso, querida amiga.
Abração,
Luciano