“Para mim, o importante é compreender. Para mim, escrever é uma questão de procurar essa compreensão, parte do processo de compreender.” Hannah Arendt
A pergunta do título não é fácil de responder. Este artigo é uma modesta tentativa de interpretar o “fenômeno” e o fantasma Jair Bolsonaro. Um esboço de compreensão, como sugere a epígrafe de minha admirada Hannah Arendt. Como cidadão e democrata (e não analista político ou especialista), permito-me, nesses tempos sombrios, fugir à literatura e repetir o que um dia já foi dito: que os fantasmas, mesmos os mais “verdadeiros” e assustadores, logo se dissipam se sobre eles atiramos o antídoto da luz.
Comecemos pela figura pessoal. Bolsonaro é o cara que quando fala expressa o que o cidadão comum gostaria de falar e de ouvir. Assim, posso vê-lo no bar que frequento ou na banca de revista da esquina. Na sua revolta, vejo-o no ônibus, nas praças, nos lares da classe média. Ele está na massa, ele forma a massa. O homem do povo logo o identifica como um dos seus. As elites (ou parte delas) também logo se empolgam, embora por outras razões. Como Lula, Bolsonaro é um homem de intensa oralidade. Não sei se tão bem-humorado como Lula. Provavelmente não, mas ao fazer suas ironias e brincadeiras não deixará também de ter a sua graça para os seus eleitores e seguidores. Em sua oralidade de ritmo áspero e gritante e em seu olhar duro e determinado, há muito o que ler e se temer.
A sua figura pública é ambígua. Pelo que se lê na mídia, ele gosta de ser uma criatura híbrida: um político-militar. É como se nunca tivesse se tornado realmente um civil. Não por acaso a mídia costuma chamá-lo de “capitão reformado”. Por baixo da “casaca” civil, veste uma farda invisível e eterna. É um militar no mundo civil e talvez um civil no mundo da caserna. Sua relação com a caserna também é ambígua em outro sentido: foi uma espécie de “enfant terrible”, sem muita disciplina e bom senso, como atestam episódios de sua passagem pelos quartéis. No Exército, é muito provável que jamais passasse a altas patentes. Por seu radicalismo ofensivo à própria ordem militar (mais realista que o rei), ele teve, ao que parece, de recalcar o militar (ou a idealização militar) dentro de si mesmo. Não por acaso, “vende” a lógica de que o adversário é de fato um inimigo. Mas sua fixação em armas de fogo é algo menos militar que policialesco e pessoal, o que demonstra sua fragilidade em termos emocionais. É sempre muito mais simples eliminarmos o inimigo e o adversário do que convivermos com ele civilizadamente.
Bom, neste passo, já praticamente nos aproximamos do seu perfil psicológico. Não precisamos ser um novo Freud pra saber que Bolsonaro recalca dentro de si forças poderosas. Quando as desreprime, é da pior maneira possível. Quem quiser desmontar sua armadura terá que atiçá-lo pelo lado emocional. Se puxar os pavios certos (quase todos curtos), não terá muito trabalho para inflamá-lo. No plano digamos consciente, as ideias são escassas. Tudo indica que possui algumas ideias fixas. O problema não é elas serem fixas, o problema é a qualidade delas. Não chegam sequer a ser ideias de uma direita culta e fundamentada, mas ideias que não se endireitam! O que sobra? Sobre uma evidente e excessiva confiança em si mesmo num contexto social que, como observou Hannah Arendt, tem “uma sombria incapacidade de formar juízos”, uma sociedade que “tomará qualquer indivíduo pelo que ele próprio se considera e diz ser, e irá julgá-lo a partir dessa base”.
Da forma como está moldada a sua personalidade, ele não pode ser outra coisa senão uma pessoa autoritária, com grande dificuldade de ver o outro. Sem empatia. De certa forma, ele também não vê a realidade brasileira em sua complexidade: ele precisa negá-la ou dominá-la por sua vontade de poder. Vontade que sequer disfarça, despida que vem de qualquer proposta mais consistente para o País. A impressão que temos é de que deseja o poder pelo poder, sem qualquer projeto de caráter público, programático e coletivo (Poderão ser perigosas à democracia as suas anunciadas alianças suprapartidárias). Ao que parece, deseja o poder para mandar (“o poder de mandar, que estarrece”, como escreveu Guimarães Rosa).
Por seu discurso, deduz-se que o candidato Bolsonaro representa um difuso anseio de “ordem”. Mas que ordem? Por acaso, estaríamos vivendo uma anomia? Por acaso, as instituições do Estado de Direito deixaram de funcionar? Para os essencialistas e fundamentalistas como Bolsonaro, sempre há uma desordem a ser vencida. A desordem está em toda parte porque não se coaduna com a ordem idealizada que traz na cabeça. A disciplina militar, segundo ele, faria bem aos jovens (lembremossua proposta de ampliar o número de colégios militares…) e à formação da sociedade. O que ele e seus eleitores não percebem é que os embates interinstitucionais e intrainstitucionais — uma aparente desordem — são da própria dinâmica da democracia. Não entende ou finge não entender que o personalismo tão “cordial” (no sentido sergiobuarquiano dos afetos) dos governantes, políticos e poderosos da República sempre apimenta ainda mais esses embates da dinâmica social brasileira.
Puristas e essencialistas como Bolsonaro, além de terem bem carregado seu porão de sombras e insensatez, costumam gerar um subproduto perigoso e letal, inimigo de qualquer razão: o fanatismo. À esquerda ou à direita, o fanatismo ronda o povo e seduz inteligências brilhantes. O resultado, quem não sabe?, é a catástrofe: a supressão das liberdades, o desprezo pelas leis vigentes, o fim da democracia. Bolsonaro também tem outra característica. É do tipo que surfa nas meias-verdades. Surfa com a habilidade lógica de quem sabe onde está a onda do oportuno e onde está a ressaca da mentira. Daí ser-lhe fácil envolver os desavisados e os ingênuos. Como uns e outros querem apenas acreditar, não veem o engodo.
Bolsonaro não só surfa na ignorância de muitos como nos medos de grande parte da sociedade. Medo de uma venezuelização do Brasil. Medo do comunismo. Medo de que os corruptos nunca larguem o osso. Medo da insegurança pública. Medo de que as instituições desabem. Medo de mudanças. Os medos são sempre verdadeiros e, como diria o grande poeta pernambucano Alberto da Cunha Melo, “aumentam o perigo / e diminuem os homens”. É difícil, assim, desnudar o próprio populismo em sua marcha insana e aberrante: sua própria aceitação pela sociedade é a grande barreira para bani-lo no momento de sua ascensão. Por outro lado, abutres de diversas naturezas voam com rapidez para logo apoiar o populista em ascensão, não por ele em si, mas pelo que o poder — mais fácil e mais desembaraçado de pudores e protocolos — pode oferecer. A conta fica para o povo pagar, mas então os estragos e os prejuízos já terão prosperado como se tivessem vindo do nada. E era nada mesmo, pois, como escreveu Fernando Pessoa, “o mito é o tudo que é nada”.
Para Bolsonaro, as redes sociais foram um negócio e tanto. Elas o ajudaram a se tornar o fenômeno que é. Sem as redes, e com um nada de tempo na TV, dificilmente teria se tornado um fenômeno de massa. As redes, movimentadas sobretudo por jovens, tantos deles carentes de propósito e de estudo, foram um meio propício: Bolsonaro deu aos jovens e seguidores uma bandeira (sem trocadilho) verde e amarela, sequestrando para sua campanha um dos símbolos nacionais. Abraçar-se à bandeira revela sua fragilidade, apela a um patriotismo infantil e tosco, típico do fascismo. Bolsonaro deu aos jovens e a seu eleitorado o refúgio de uma emoção primária. E com um toque de religiosidade e transcendência completou o seu pacote: “Deus acima de todos”. Ou seja, também sequestrando Deus para o seu propósito político. Misturando governo e pátria, Estado laico e o nome de Deus, arrebatou um eleitorado moralista, conservador e até então sem uma voz que o liderasse.
Por último, o antipetismo. Já é um truísmo dizer que Bolsonaro capitalizou o antipetismo. Todavia, como vimos, pelas razões acima, ele representa e abrange muito mais que o antipetismo. Encarna, como tantos demagogos, uma raiva represada, não só a coletiva, mas a pessoal e preliminar que recalcou em sua formação humana. Não importa se ele ofende inteligências e conveniências (como o politicamente correto), ele está aí pra isso mesmo: para afrontar e, assim, armado de irracionalidade, joga seus rancores sobre um inimigo comum e momentoso. Mirar, o demagogo mira em muitas coisas, mas é preciso ter um foco, um inimigo número um, a despeito de toda a complexidade da realidade. O petismo (involuntariamente, claro) lhe exibiu seus flancos: a corrupção e a mentira sistêmicas, o aparelhamento de Estado, o desejo indisfarçável de perpetuar-se no poder. O radicalismo e os erros do PT estavam aí dando sopa para uma oposição crítica e consciente que… não apareceu ou que acovardou-se. E eis que surge, como um “mito”, aquele que desafia, em nome de Deus (literalmente) as hostes do mal. Surge desejando talvez uma nova jabuticaba. Uma democracia à brasileira? Soluções à brasileira? Duvidemos dessa exuberância. Até porque, como disse Sobral Pinto, em resposta a um carcereiro do regime militar de 1964, “Só conhecemos peru à brasileira”.
Paulo Gustavo
Paulo, Eu acho sinceramente que seu ensaio foi a melhor peça que saiu na “Será?” este ano, sem demérito a quaisquer colaboradores. Você deu um show de lucidez e perspicácia, além de ter registrado cada sutileza com a marca indelével da linguagem clara e cirúrgica. Coisa de craque.
Um abraço,
FD
Paulo, Fiz um longo comentário (dois, na verdade) a respeito de seu brilhante artigo, mas não sei se a revista o recebeu por conta do novo sistema de (não) notificação. Por desencargo de consciência, contudo, vai este terceiro. Deixar que passe em brancas nuvens uma peça de tamanha riqueza é um luxo a que não podemos nos dar.
Abraço,
Fernando
Obrigado, Dourado, por mais essas palavras generosas, que, vindas de você, são para mim um verdadeiro galardão.
Abraços
Sem dúvida brilhante. Sabe usar a linguagem maravilhosamente. Mas eu acho limitada uma análise que fica na psicologia, na psicologia do indivíduo e na psicologia social. A situação econômica (eu não poderia deixar de dizer algo assim, obviamente, por minha formação) teve uma papel nessa votação maior do que os analistas até agora reconhecem. Além disso eu acredito que os eventos são “path determined”: que eu tentaria traduzir como a necessidade de explicar um evento levando em conta, como determinante, o caminho pelo qual se chegou a ele.
NOTA EXPLICATIVA: Fiz este comentário na página de Facebook da “Será?” dia 19 de outubro, quando a revista saiu do ar, por motivo desconhecido ou não investigado, e saiu no dia certo apenas no Facebook, voltando ao ar no formato mais ou menos normal uns 4 dias depois.