O austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951) foi um dos mais importantes compositores na história da música ocidental. Fortemente ligado à tradição germânica, assumiu a responsabilidade pela liderança intelectual da questão mais premente para a filosofia da composição musical no início do século XX: como continuar compondo música segundo a tradição ocidental quando o seu principal eixo estrutural, o sistema tonal, tinha-se exaurido.
Depois do período romântico, a música erudita não tinha mais o que inovar dentro das práticas de composição até então vigentes, e os compositores buscavam outros caminhos, tais como o impressionismo musical (Claude Debussy), o politonalismo (Darius Milhaud), as tendências nacionalistas (Béla Bartok, Villa-Lobos) e, finalmente, o atonalismo, praticado por Schoenberg durante os primeiros anos do século XX.
Tentando simplificar o entendimento da música atonal, podemos afirmar que nela não existe uma nota central que determina a sequência de notas ao longo da música. Abandonam-se as normas antigas de composição baseadas na hierarquia tonal, representada pela família das sete notas naturais – Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá e Si.
Basta lembrar um cantor pedindo aos músicos para acompanhá-lo em uma determinada música com expressão “me dá um Ré, aí!”. Isso significa que a música terá como centro tonal a nota Ré, e todas as demais notas estarão relacionadas a ela a partir de um padrão adotado universalmente. Este era o modelo que funcionava na música anterior ao atonalismo.
Como o próprio nome diz, o atonalismo (“a” significando “sem”, “anti”, “contra”) extingue o modelo tonal, passando a colocar todas as notas existentes na música ocidental em mesma hierarquia, que são as sete naturais (acima mencionadas) juntamente com suas intermediárias (ou acidentadas), totalizando doze: Dó, Dó sustenido, Ré, Ré sustenido, Mi, Fá, Fá sustenido, Sol, Sol sustenido, Lá, Lá sustenido e Si. No teclado de um piano, por exemplo, podemos encontrar vários jogos seguidos com essas doze notas, representadas por teclas brancas e pretas, perfiladas da esquerda para a direita. Cada conjunto de doze teclas seguidas (algumas abaixo e outras acima) representa uma série de doze sons, ou dodecafônica (do grego dodeka: “doze” e fonos: “som”).
Com o dodecafonismo, não existe mais uma nota mais importante que outra, como ocorreu no exemplo da música tonal em Ré do cantor acima. Esta ausência de nota central pode causar certo sentimento de “confusão” e “aleatoriedade” nas primeiras audições de músicas atonais, devido à nossa tendência de entender a música dentro do sistema tonal antigo.
Da ausência de uma nota central, também segue a ausência de tonalidade e modos, ou seja, na música atonal não existe algo como um acorde maior ou menor, e tampouco escalas ou modos como dórico, frígio etc. Esses modos gregos nada mais são do que modelos padronizados diferentes de escalas musicais. Escalas musicais são sequências ordenadas de notas. Por exemplo: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si, dó… (repetindo esse ciclo).
Com as obras que compôs no início do século XX, Schoenberg transformou-se no principal nome da nova geração de compositores. Especialmente o período entre 1909 e 1912 foi de uma grande concentração de obras-primas, uma fantástica explosão criativa. A sua peça “Pierrot Lunaire” pode ser considerada como uma das obras mais influentes para a música do século XX.
Em contraste com as obras anteriores, em geral para grandes conjuntos instrumentais, “Pierrot Lunaire” precisava apenas de um punhado de músicos e um cantor-recitante. Para esta obra Schoenberg trouxe toda sua experiência com os cabarés de Berlim. Isso proporcionou que a obra fosse executada em turnê por todas as principais cidades europeias, com uma excelente receptividade de um público propenso às experiências de vanguarda.
Esta obra marcou também o esgotamento criativo de Schoenberg, que teve sua vida musical interrompida pela Guerra de 1914-1919. Entre 1912 e 1920 Schoenberg não conseguia concluir nenhuma composição. Tinha chegado ao fim sua verve para criar sem um sistema teórico consistente. A liberdade criativa do atonalismo tinha chegado a um beco: a ausência de sistema era para Schoenberg um severo limitador criativo.
Devido a isso, quase como uma consequência lógica de toda tradição tonal da qual se sentia continuador, Schoenberg sistematizou em 1921 a técnica dodecafônica. Ao publicar a “Suíte para piano”, Op. 25, ele estava lançando a teoria composicional mais polêmica do século – talvez de todos os séculos:
No dodecafonismo não se escuta um tom duas vezes antes de ouvir os outros onze. Através de séries preestabelecidas de 12 sons diferentes e independentes eram feitas as composições. Mais especificamente, a ordem da execução das notas numa composição dodecafônica pode ser feita das seguintes maneiras: a série original, a retrógrada, que é tocada de trás para frente, a série invertida (inverte-se a posição das notas na partitura) e a série retrograda da inversão. Como qualquer técnica composicional, o dodecafonismo é apenas uma técnica. Schoenberg foi o inventor dessa técnica, e compartilhou suas experiências com seus alunos, ou já colegas, que formaram com ele a chamada “2ª Escola de Viena”: Anton Webern (1883-1945) e Alban Berg (1885-1935). O método perdurou até 1960 quando alguns dos próprios discípulos de Schoenberg consideraram-no morto.
Na forma de arte dodecafonista, Schoenberg conseguiu causar o definitivo rompimento com a cultura e o padrão clássico. Embora haja atonalismo na música de compositores mais antigos como Richard Wagner (1813-1883), em especial na sua ópera “Tristão e Isolda” (objeto de artigo na Revista Será?), apenas Schoenberg de fato rompeu com a estrutura tonal. Esta estética foi rejeitada por grande parte dos ouvintes e críticos, por considerá-la “desagradável”, ainda que esses compositores não tivessem intenção de escrever música bonita e agradável, mas enfocar outros elementos como os timbres ou mesmo a “ausência de som”. Era uma música essencialmente experimental.
É importante entender que toda a ideia de música que a humanidade apreciou ao longo da história trata-se, de certa forma, do controle equilibrado dos sons como resultado da filtragem de todo ruído existente na natureza. Basta lembrar o silêncio exigido da plateia nas audições de musica erudita. O horror ao ruído, ao desafinado, ao feio. No canto litúrgico da Idade Média, o som era de Deus – e o ruído era mundano.
Mas com as revoluções culturais do pós-guerra, a humanidade ainda ouvia o barulho das bombas em sua memória, novas guerras mais localizadas, o pavor de outra grande guerra mundial. Isso fez a humanidade repensar a arte, a cultura e também a ideia de som e ruído. Um show de heavy metal pesado, por exemplo, pode ser ensurdecedor para um senhor de meia idade e fã de bossa-nova, mas para seu filho pode soar como uma canção de ninar. Com a aceitação do ruído, agora uma nova gama de materiais sonoros, estavam à disposição dos compositores.
Para alguns teóricos o atonalismo, além de uma nova proposta estética, apresenta um ideal social. Assim como as notas possuem o mesmo valor numa música, as pessoas são iguais no mundo. Portanto a negação do sistema tonal, também é uma negação aos regimes totalitaristas das sociedades, uma luta contra, ao que Theodor Adorno (1903-1969) chamou de Indústria Cultural. Para Adorno, a classe dominante se utiliza da Indústria Cultural para manipular as grandes massas. Sendo o sistema atonal uma proposta de luta revolucionária e libertação intelectual, negando a todos os padrões estéticos, mais sedutores, da Indústria Cultural.
Ainda hoje o problema levantado por Adorno permanece, pois a música contemporânea isolou-se das massas, perdeu público e virou uma arte de elite. Enquanto que a música pop cresce espantosamente no âmbito das massas sociais, deixando de ser apenas um gênero musical, mas se transformando em um processo de comercialização de atitudes, ideias e comportamentos. Os objetivos artísticos talvez tenham se perdido, em meio às sangrentas leis do mercado fonográfico, mas a arte sempre se recicla e transforma os seres humanos ao seu redor.
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Cara já comentei o quanto gosto de acompanhar o que você posta. Hoje, então! Comento:
Um. Anos atrás, muitos deles, tentando entender atonalidade e dodecafonismo consultei músicos, estudantes do Conservatório e lí livros. Entendi na marra. Você, no entanto, explica as coisas com precisão e simplicidade. Vou divulgar o seu texto por aí.
Dois. Não satisfeito, você, com a mesma precisão, vem de sociólogo (meu métier) e, em poucas palavras, via fundo.
O último parágrafo eu o teria usado em aulas, antigamente, quando eu as vendia. Recordei-me então de outras vendas, melhor remuneradas, que fazia, já como profissional de marketing e de exemplos que sacava. Como, dentre outros, a apropriação pelo mercado do Black Power, sobretudo por coiffeurs que anodizaram Angela Davis; ou como a indústria fonográfica transformou em mercadoria de massa as audácias pioneiras de Clara Nunes apresentando para a classe média branca os pontos dos cultos afro e brasileiros.
Se hoje temos uma enxurrada de “dode-cafonismo” há os que, vão em frente. Como você diz, “…a arte sempre se recicla e transforma os seres humanos ao seu redor”.
Isto será importante nos próximos anos, sobretudo em quatro deles.
Fred, muito obrigado pela sua aula. Ainda não posso dizer que sei o que é uma música dodecafônica por simples ignorância de técnicas musicais. Mas acho que aprendi o essencial e, principalmente, aprendi a apreciar o estilo com esta suite para piano de Schoenberg. Aproveito para parabenizar João Rego pela ilustração e, mais do que isso, a relação que faz da estética de Kandinsky com a música dodecafônica. No entanto, confesso que não vejo como a revolução musical dos dodecafônicos represente uma negação do totalitarismo e um ideal social, como você fala no texto. Ou mesmo que a quebra da hierarquia das notas musicais seja uma forma de rompimento das desigualdades sociais.
Caro Dr. David,
Obrigado pela acolhida ao meu texto e interesse em ler meus artigos. Tentei explicar da forma mais acessível possível, mas não é um tema dos mais decodificáveis na música clássica, pois exige certa dose de teoria. Em todo caso, fico feliz pelo saldo ser positivo. Agradeço pela designação de “sociólogo”… Apenas chamei a atenção para o distanciamento que a música clássica sofreu na entrada do séc. XX em diante. Algumas iniciativas mais recentes, como concertos de grandes tenores em eventos populares, como copa de futebol, e associações de cantores líricos com astros pop, deram uma dissolvida nesse gelo. Porém, a música clássica ainda é vista como algo bastante elitizado e inacessível, infelizmente.
Caro Dr. Sérgio,
Finalmente, o artigo saiu, tentando ajudar na compreensão do dodecafonismo, que acima de tudo, como tentei mostrar, trata-se de um experimento com sons numa nova dimensão – inicialmente mais livre no atonalismo, depois mais estruturado pelas regras maduras do dodecafonismo. É uma escola musical com forte viés acadêmico, tentando demonstrar novas possibilidades sonoras pela desvinculação do modelo tonal antigo. A ilustração de Kandinsky foi de minha escolha, com sua legenda tentando associar Schoenberg a um contexto artístico mais amplo da época. Esclarecendo o que coloquei ao final, quis apenas vincular o movimento dodecafônico ao momento histórico, sem jamais pretender estabelecer uma relação de causa-efeito nem ambições tão grandiosas e radicais, como romper desigualdades ou derrotar regimes totalitários. Havia uma conexão, assim como em outras épocas, da arte musical com as transformações sociais em curso – como atesta Le Nozze di Figaro de Mozart, Leonora de Beethoven, Guilherme Tell de Rossini, Nabucco de Verdi etc.