Retrato dos traços humanos personificados pelos corpos celestes, a grandiosa suíte orquestral “Os Planetas” (ou “The Planets”, no original) de Gustav Holst (1874-1934) sempre gozou de grande popularidade e levou o nome do compositor inglês ao estrelato.
Membro da escola nacionalista da música, que permeou o século XIX, Holst foi um artista bastante eclético. Abordou todas as composições de um ângulo novo, inspirando-se em fontes tão diversas quanto astrologia, canção folclórica inglesa, poesia sânscrita, melodias argelinas e a poesia de Thomas Hardy (1840-1928), conhecido pelo pessimismo radical que caracteriza os seus romances. Holst foi também um habilidoso professor, capaz de inspirar crianças e adultos.
Seu nome original era Gustavus Theodor von Holst, filho de Adolph, um pianista de origem sueca, e Clara von Holst. Desde muito cedo respirou melodia e harmonia. Seu pai era um professor de música que dava mais atenção ao piano que à família. Holst estudou composição no Royal College of Music com Charles Stanford, figura de proa na revitalização da música inglesa no século XIX. Depois de trabalhar como trombonista e ensaiador, Holst tornou-se diretor musical na St. Paul’s Girls’ School, ensinando também para adultos no Morley College, ambos em Londres.
Na raiz de sua música – composta sobretudo nas férias escolares – está o ritmo, com várias obras baseadas em padrões de ostinato – motivo ou frase musical que é persistentemente repetido numa mesma altura. Seu estilo harmônico colorido mistura a tonalidade tradicional com inventivas combinações de cordas e intervalos esparsos e abertos, dando à sua música voz original na época.
Apesar da sua formação no Royal College of Music, Holst foi um grande autodidata. Evitava sistemas acadêmicos e estruturas musicais pré-concebidas. Não dava tanto crédito aos livros, mas no lema “aprenda fazendo”. Seguiu seu próprio caminho, e como num laboratório alquímico, realizou inúmeras experiências buscando constantemente as notas certas para suas obras.
Além do aprendizado estritamente musical, Holst foi muito influenciado pelas religiões orientais. Trabalhou na composição de diversos hinos para coro e orquestra sob inspiração de um dos escritos religiosos mais antigos que se tem notícia, o “Rig Veda”. Também chamado “Livro dos Hinos”, é uma antiga coleção indiana de hinos em sânscrito védico. É o documento mais antigo da literatura hindu, composto de hinos, rituais e oferendas às divindades.
Holst teve contato com a astrologia através do livro “Art of Synthesis”,escrito por um astrólogo e teosofista chamado Alan Leo (1860-1917), cujos textos combinavam astrologia e temas como carma e reencarnação. Cada capítulo deste livro é dedicado a um planeta e sua respectiva descrição astrológica. O título “Neptun, the mystic” que Holst usa em sua suíte “Os Planetas”, por exemplo, foi copiado diretamente do livro.
A suíte “Os Planetas” não obedece aos padrões convencionais. É uma série de perfis sonoros dos planetas – nas palavras de Holst: “as sete influências do destino e componentes de nosso espírito”. Além das referências astrológicas, esta obra nos remete ao conceito de música das esferas, amplamente pesquisado por Pitágoras (c. 570-495 a.C.) e Johannes Kepler (1571-1630), dentre outros. A música das esferas, também conhecida como harmonia das esferas ou música universal, é um antigo conceito definido pelos gregos que defende a existência de uma harmonia divina e matemática entre o macrocosmo e o microcosmo.
Holst dedicou sete anos de sua vida na composição de “Os Planetas”, entre 1914 a 1916, cujo resultado inovador e de grande beleza justifica dedicarmos este artigo a essa pérola do nacionalismo britânico. Cada um dos sete movimentos da obra corresponde a um planeta do Sistema Solar, excetuando-se a própria Terra e Plutão, que na década de 1910 ainda não havia sido descoberto, mas que atualmente foi recategorizado como planeta-anão. A estreia se deu no Queen’s Hall de Londres, em 29 de setembro de 1918.
A obra combina mitologia romana e astrologia, expressando o caráter particular de cada astro – através movimentos com andamentos, melodia e instrumentação contrastantes. Representou o marco da música expressionista, pois foi a primeira obra a ter sucesso desde o início da estética, cinco anos após sua criação. A seguir são apresentados os movimentos que compõem a suíte planetária, com os títulos dados pelo compositor.
I. Marte, portador da guerra
As cordas, percutidas com a parte de madeira do arco, apresentam o motivo marcial em que a música irrompe em ondas orquestrais com intensidade crescente. Este clima bélico e enérgico da música caracteriza o perfil astrológico de Marte: coragem, poder, pioneirismo e o instinto lutador para enfrentar os desafios com bravura. Se estas energias não forem devidamente controladas seu resultado é desastroso: violência, assassinato e todos os subprodutos do defeito relacionado a Marte. Este movimento foi composto no início de 1914, antes do começo da Primeira Guerra Mundial. Seus sons militares soaram como uma premonição do conflito mundial que estava por vir:
II. Vênus, portador da paz
Fornece uma espécie de resposta para Marte. Contrasta pela placidez e pelo andamento lento. As harpas, madeiras e a celesta realçam a delicadeza desta obra, que nos passa a sensação de harmonia, equilíbrio e paz. Alan Leo descreve este contraste entre Marte e Vênus da seguinte forma: “Marte é o representante da alma animal no homem e Vênus, da alma humana. Em certo sentido, um é o complemento do outro. Mercúrio o mensageiro alado dos deuses voa entre os dois como memória e é, portanto, a alma espiritual humana”. Eis o movimento:
III. Mercúrio, o mensageiro alado
De forma alegre, uma extensa e contínua linha melódica passeia pelos diversos naipes orquestrais transmitindo de instrumento para instrumento a mensagem vinda de outros mundos. Mercúrio, o mensageiro alado dos deuses representa a consciência humana, o intelecto, a aptidão para nos comunicarmos e a nossa busca pelo saber:
IV. Júpiter, portador da jovialidade
Com base numa linha de acompanhamento na região aguda dos violinos, as trompas apresentam o tema enérgico do movimento, é o impulso para a introspecção a nível intelectual, filosófico e religioso, um dos aspectos de Júpiter. Em suma, Júpiter representa a “mente superior” no homem, não como razão pura, mas como sabedoria inata:
V. Saturno, portador da velhice
Começa sombrio, segue com uma marcha nos metais e retorna à serenidade no final. Harpas e flautas estabelecem um padrão de acompanhamento sobre o qual cordas e outros instrumentos de madeira apresentarão breves fragmentos melódicos. Segundo alguns biógrafos, Saturno é a representação do sofrimento de Holst, que devido a sérios problemas na articulação de seu braço, teve que abandonar o piano e o violino. Alan Leo descreve Saturno como sendo um dos responsáveis por todos os casos de degradação, degenerescência, humilhação e vergonha. Nos aspectos positivos representa a verdadeira humildade, perseverança, sacrifício, entrega e serenidade:
VI. Urano, o mágico
É um “scherzo” com uma melodia ágil no fagote que se desenvolve em uma intrincada teia orquestral. O início da música representa o impulso para ser único, para chocar e surpreender. Mais a frente, o som pesado dos metais nos remetem aos acontecimentos repentinos e imprevisíveis. O grandioso “tutti” representa o que talvez seja a maior influência de Urano na astrologia: o despertar da consciência. Em seu livro “Art of Synthesis”, Alan Leo chama o capítulo sobre Urano de “Uranus, the awakener”. Segundo o autor, representa a originalidade de pensamento, a independência de espírito, o gênio criador, as avançadas formas de pensamento, a intuição e a capacidade de trazer conhecimento através da consciência desperta adquirida nas esferas internas do ser:
VII. Netuno, o místico
Aqui Holst explora o “pianissimo” com enorme habilidade. Harmonias misteriosas e um coral de vozes femininas fazem parecer “música de outro mundo”. Esta obra transmite a representação astrológica de Netuno: as influências não materiais, os sonhos, o espiritualismo, a dedicação pelo misticismo e a abertura para o divino:
Vale a pena relacionar algumas curiosidades sobre a obra. O movimento “Marte, portador da guerra” é amplamente utilizado no cinema, principalmente em filmes que envolvem grandes batalhas. Em 2006, a banda inglesa Iron Maiden utilizou a música de Marte para abertura dos seus shows na turnê “A matter of life and death”. O tema central de Júpiter tornou-se um hino patriótico inglês. O ritmo brincalhão de Urano é muito semelhante ao da obra “O aprendiz de feiticeiro” de Paul Dukas, do qual Holst certamente recebeu influências.
Os trabalhos de Holst eram tocados com frequência nos primeiros anos do século XX, mas foi só com o sucesso internacional de “Os Planetas”, nos anos que se seguiram à Primeira Guerra Mundial, que ficou conhecido. Homem tímido, não se sentia bem com a fama, e preferia ficar sossegado para compor e ensinar. Nos seus últimos anos de vida, o seu estilo descomprometido e pessoal de composição era visto como austero, e a sua curta popularidade caiu. Ainda assim, Holst influenciou vários jovens compositores ingleses como Michael Tippett e Benjamin Britten. Para além de “Os Planetas” e de outros trabalhos, a sua obra foi negligenciada até à década de 1980, quando ficaram disponíveis muitas das suas gravações e o cinema adotou sua música.
Em maio de 1933, o virginiano Holst foi internado às pressas devido a uma hemorragia causada por uma úlcera no duodeno. Fisiologicamente o signo de virgem, segundo os astrólogos, possui relações com o aparelho digestivo – e há quem diga que o intestino é o ponto fraco dos virginianos. Coincidência ou não, logo após uma cirurgia a fim de erradicar a úlcera no duodeno, o místico compositor não resistiu e deixou este mundo no dia 25 de maio de 1934, aos 59 anos. Sua única filha, Imogen Holst (1907-1984), seguiu os passos do pai e tornou-se atuante educadora musical, compositora, maestrina, arranjadora e entusiasta diretora de festivais musicais.
Obrigado, cara. De novo. Eu nunca havia ouvido todos os planetas e com vc chamando atenção para detalhes ficou melhor ainda, por exemplo com o fagote em Urano, as trompas em Júpiter e até uma oportuna celesta venusiana, tudo isso prestando atenção. Se Holst, vivo, toparia a faltante Terra, a de hoje, dodecafônica? Será que ele ouviu Schoenberg e desistiu da nossa orbe?
Caro David, essa obra é fantástica! Lembro que a conheci aos 9 anos quando comprei um LP duplo chamado KARAJAN ESSENTIAL, na saudosa Lojas Pernambucanas da Rua Nova, no centro do Recife. Desde lá eu me tornei fã de Holst. O valor dado por ele ao ritmo e ao colorido das texturas, os sopros bem empregados, sons intuitivos: tudo transporta o ouvinte a outros mundos. Os movimentos são inspirados nas características astrológicas dos planetas e nos afetos das divindades greco-romanas associadas a eles. Isso explica a ausência da Terra, que é o ponto de referência da cosmologia antiga, geocêntrica.