Luciano Oliveira

Jornaleiro.

Fui picado pela mosca azul da teoria (terreno que não chega a ser o meu forte) e eis-me aqui, na sequência do “hebdô” da semana passada – onde explorava a hipótese da dinâmica capitalista como trazendo consigo um “potencial emancipador” em relação a “minorias” como mulheres, negros e gays – eis-me aqui, como dizia, voltando a esse sério assunto, desta vez explorando a relação (não riam) entre capitalismo e democracia! O assunto já foi tantos milhares de vezes explorado que chego a sentir, por cima do ombro, meu agudo senso de ridículo sussurrando: “Ih… rapaz, fique na sua. Escreva um artigo sobre o tango argentino, vá!”.  Mas, como diz um velho ditado (supercapitalista, por sinal), “se conselho fosse bom não seria dado”. Além disso, nada entendo de tango. Então…

Num capítulo de Dom Casmurro, intitulado “Um soneto”, Bentinho, o narrador, conta que um dia lhe brotou no juízo um verso já pronto: “Oh! flor do céu! oh! flor cândida e pura!”. E continua: “saiu assim, como uma exclamação solta, e, ao notar que tinha a medida do verso, pensei compor com ele alguma coisa, um soneto”. Problema: era necessário compor os trezes versos faltantes! E Bentinho não consegue levar o projeto adiante. Ora, eu também tenho um projeto, a partir de uma crítica que me fez um leitor (um alterego fictício, na verdade, pois ninguém comentou meu texto), dizendo que minha posição era típica de uma “nova direita” que não apenas adere alegremente ao neoliberalismo, mas também desdenha a seriedade da luta de mulheres, negros e gays! Foi quando, remoendo o assunto, também me brotou no juízo uma “exclamação solta” – o que hoje em dia chamaríamos de insight: “existe o capitalismo, eexiste a democracia”. É feio, reconheço, e acho difícil embelezá-lo. Mas vou fazer um esforço promovendo uma mudança gramatical: vou trocar a conjunção aditiva “e” pela adversativa “mas”. E aí a coisa ficará assim: “Existe o capitalismo, mas – porém, todavia, contudo, não obstante – existe a democracia”. Pronto. Se não ficou melhor, pelo menos ficou mais complicado. Resta agora construir o resto do soneto. Ou melhor: já que se trata de uma achega ao texto anterior, construir uma emenda! (Espero que não seja pior do que o soneto que, como Bento Santiago, não escrevi.)

Creio que todo mundo – inclusive meu impertinente alterego – concordará com a afirmação de que as lutas desses movimentos de “minorias” são lutas que se inserem numa dinâmica democrática. Perpassa também, em todas elas, uma espécie de “ethos anticapitalista”, daí a frequência com que na linguagem desses movimentos não é difícil encontrar expressões como “capitalismo machista”, “capitalismo racista”, “capitalismo homofóbico” etc. Ora, a hipótese que comecei a debulhar no artigo anterior é a de que não há relação de causa e efeito entre o substantivo e o adjetivo dessas expressões. Se há racismo no modo de produção capitalista, há também – e sempre houve – em vários outros modos de produção que lhe antecederam. Tomemos como exemplo, entre as “minorias”, justamente aquela que é na verdade uma maioria: as mulheres. Até onde sabemos, a primeira divisão que ocorreu no que chamamos de humanidade não foi social, foi sexual. Em qualquer latitude ou longitude. Oropa, França ou Bahia, mas também África, Ásia ou Oceania. Pouco importa. Os homens, como sempre, eram os dominantes. E essa divisão atravessa os vários modos de produção que existiram na história dessa mesma humanidade. O capitalismo, como qualquer outro sistema econômico, encontrou-a já existindo e, óbvio, na sua dinâmica de tudo submeter à sua lógica, aproveitou-a. O “machismo” – desculpando-me por usar anacronicamente esse termo – é bem mais antigo do que o capitalismo. Um exemplo. Admira-se muito o chamado “milagre grego”, aquele que produziu a filosofia de Atenas. Beleza. Mas na pólis grega não havia lugar para as mulheres. Quem sabe o nome da mulher de Platão ou de Aristóteles? Sabe-se, incidentalmente, que a esposa de Sócrates se chamava Xantipa, que passou à história dessas “vidas ilustres” como sendo uma chata!

É aí onde entra a história – que quero crer disjuntiva – entre capitalismo e democracia. Mas entre a “exclamação solta” de onde parti e sua demonstração, há ainda doze versos a serem escritos, e o espaço acabou. Acho que vou continuar na próxima semana.