Os brasileiros, pela primeira vez, desde a redemocratização, no já remoto ano de 1985, sabem que sua democracia está acossada. Estamos, como se diz, dormindo com o inimigo. Mas é certo que mais do que nunca devemos estar bem acordados e vigilantes. De resto, o inimigo não nos deixa dormir. O autoritarismo presidencial não causa surpresa. Mas tanto seus eleitores quanto os demais cidadãos sabem que esse autoritarismo, por ora restrito a espasmos, pode se tornar uma espécie de cupim no mobiliário democrático. Freios e contrapesos, como dizem os cientistas políticos, precisam estar azeitados e na agenda daqueles que desejam longa vida ao convívio democrático.
Em dois meses de governo, o presidente já atacou em várias frentes, quase todas em questões menores e quase todas, apesar disso, a seu modo relevantes. Menos é mais. Não é só a chamada “pauta de costumes” que está em jogo; a visibilidade desta deixa na sombra outras pautas relevantes, como a do meio ambiente, a da saúde e a da educação, todas elas acossadas por pontuais “desejos” personalistas de uma mudança autocrática. Dispenso-me de citar conhecidos exemplos. A dificuldade presidencial com o contraditório é patente e não dá mostras de ceder, é-lhe intrínseca, inerente. Bolsonaro não vai mudar, e só Deus sabe aonde pode nos levar nos seus enlevos purificadores e, sem trocadilho, messiânicos.
As instituições e a sociedade civil devem estar atentas. Não devem só esperar pela ação oficial da “caneta Bic”, pois muitos males também vêm pela palavra oral e pelo exemplo. Concordo com aqueles que acham que as declarações e atitudes assombrosas do presidente não são uma cortina de fumaça. Também para mim, já são fumaça tóxica, e por ora a sociedade a inala entre assustada e complacente. O efeito de contágio merece ser ilustrado com um emblemático verso de Camões: “Um fraco rei faz fraca a forte gente”.
A questão em aberto é: quem põe o guizo no pescoço do gato? Escusado dizer que uma estratégia de confronto será sempre a pior possível. O presidente tem que cair é em boas armadilhas democráticas. Seu ímpeto beligerante não deve ser respondido com novos ímpetos belicosos, muito embora a cadeira presidencial por si mesma seja um alvo permanente de críticas e ataques das mais diversas naturezas. A essa altura do campeonato, já sexagenário, será difícil Bolsonaro aprender o sorriso de JK ou a ter o couro de crocodilo que FHC uma dia disse ter. O que virá quando surgirem de fato grandes pressões e sua popularidade derreter como um sorvete ao sol? O que virá quando a autodeclarada “missão” do presidente se revelar um fiasco inarredável? É triste, mas os cenários não são animadores, até porque Bolsonaro não governará como um presidente normal. Ele é do tipo, como salientam Levtisky e Ziblatt, em “Como as democracias morrem”, que confunde adversários com inimigos pessoais, o que muda toda a configuração do jogo democrático, deformando-o e alienando-o de sua razão de ser.
Fracassado pelo êxito, como diria Freud, o presidente não sabe muito o que fazer na cadeira presidencial. No íntimo e no inconsciente, poderosos sentimentos de culpa o assombram sem cessar. O sucesso, nesses casos, contraditoriamente é minado por uma autopunição. Bolsonaro sabe-se menor que o cargo, mas também não se esforça para ficar à sua altura. Não por acaso transpira raiva. Seu semblante costumeiro só demonstra o seu sofrimento psíquico, o verdadeiro molho de sua indigesta salada ideológica.
Por falar em Freud, podemos dizer que um divã, e não uma cadeira presidencial, cairia melhor ao presidente. Mas também lembro, como advertiu o próprio Freud, que pouco ou nada adianta uma análise a essa altura da vida, pois seu papel pedagógico torna-se muito limitado. O mestre de Viena sabia do que estava falando.
Apesar do cenário sombrio, ou por isso mesmo, há muito o que fazer. Muito o que falar. Muito o que protestar. Sem Freud para poder nos amparar nessa hora difícil, só nos resta, para conter o ego e o id presidenciais, o superego cívico da Constituição Federal.
Paulo Gustavo
Muito bom!!
Tristíssimas verdades. Ainda estou resistindo, pensando no caminho que seria o melhor para o Brasil, a aprovação de uma reforma da Previdência que afastaria o espectro de uma necessidade cada vez maior de contenção do gasto público, impopular. A popularidade do Presidente Bolsonaro hoje já é menor que há três meses. Sem confiança sobre o rumo que será seguido, investidores não se animam. Se continuarem as revisões para baixo no crescimento econômico, se não houver reanimação da economia, se o desemprego não começar a cair de forma mais significativa, se continuar tanta indecisão, a popularidade do Presidente vai continuar a cair. E aí o que você observa sobre a personalidade do nosso Presidente é de dar medo. E você nem tocou na “constelação familiar”. Não sei se uma Constituição que permite chicana interpretativa à vontade conterá egos e ids, que nem são só do Presidente. Haja fogueira de vaidades nos três Poderes, a começar pela Corte Suprema, que se supõe a responsável máxima por fazer cumprir a Constituição.
Verdade, Helga.
O clã é um espectáculo à parte e um aberrante anacronismo. Honrado por sua leitura.
Primoroso texto, Paulo Gustavo. Eis dos legados petistas o mais nefasto e o mais explosivo, mesmo porque tem o poder de combustão de mil refinarias.
Verdade, Dourado.
Essa é uma herança maldita.
Grato pelo comentário.
Paulo Gustavo,
Tecnicamente, a saída de Collor foi uma renúncia. Mas, como sabemos, foi mero drible técnico no impeachment. A de Dilma Vana, impeachment puro. De renúncia de fato, que foi a de Jânio Quadros, estamos a quase 60 anos. E do parlamentarismo, idem. Apostem piamente: Bolsonaro não acaba o mandato tal e qual. Renunciará. E nem o trio testosterona vai conseguir segurá-lo na cadeira, que é grande demais para ele.Já uma espécie de parlamentarismo híbrido, não é de se descartar. Mas ele não chega ao fim do mandato, duvido.
Mergulho profundo na realidade do presente. Agudíssima visão do futuro.
Brilhante diagnóstico!
Obrigado, mestre,
pelas generosas palavras.
Abraço. Acho que terça nos veremos.
Caro Paulo, concordo com varias de suas críticas ao governo Bolosonaro. Permita-me, todavia, enfatizar que a analise de levtsky e seus colegas (in)ternacionais mostraram-se completamente equivocadas. A mídia internacional, via de regra, cometeu o mesmo erro e está a merecer um acurado estudo. Cordialmente, jz
Obrigado, Jorge.
De qualquer forma, adversário não deve ser inimigo. Abraço
Muito bom e pertinente o artigo, Paulo Gustavo!
Obrigado, Sylvia. Forte abraço