Paulo Gustavo

Os brasileiros, pela primeira vez, desde a redemocratização, no já remoto ano de 1985, sabem que sua democracia está acossada. Estamos, como se diz, dormindo com o inimigo. Mas é certo que mais do que nunca devemos estar bem acordados e vigilantes. De resto, o inimigo não nos deixa dormir. O autoritarismo presidencial não causa surpresa. Mas tanto seus eleitores quanto os demais cidadãos sabem que esse autoritarismo, por ora restrito a espasmos, pode se tornar uma espécie de cupim no mobiliário democrático. Freios e contrapesos, como dizem os cientistas políticos, precisam estar azeitados e na agenda daqueles que desejam longa vida ao convívio democrático.

Em dois meses de governo, o presidente já atacou em várias frentes, quase todas em questões menores e quase todas, apesar disso, a seu modo relevantes. Menos é mais. Não é só a chamada “pauta de costumes” que está em jogo; a visibilidade desta deixa na sombra outras pautas relevantes, como a do meio ambiente, a da saúde e a da educação, todas elas acossadas por pontuais “desejos” personalistas de uma mudança autocrática. Dispenso-me de citar conhecidos exemplos. A dificuldade presidencial com o contraditório é patente e não dá mostras de ceder, é-lhe intrínseca, inerente. Bolsonaro não vai mudar, e só Deus sabe aonde pode nos levar nos seus enlevos purificadores e, sem trocadilho, messiânicos.

As instituições e a sociedade civil devem estar atentas. Não devem só esperar pela ação oficial da “caneta Bic”, pois muitos males também vêm pela palavra oral e pelo exemplo. Concordo com aqueles que acham que as declarações e atitudes assombrosas do presidente não são uma cortina de fumaça. Também para mim, já são fumaça tóxica, e por ora a sociedade a inala entre assustada e complacente. O efeito de contágio merece ser ilustrado com um emblemático verso de Camões: “Um fraco rei faz fraca a forte gente”.

A questão em aberto é: quem põe o guizo no pescoço do gato? Escusado dizer que uma estratégia de confronto será sempre a pior possível. O presidente tem que cair é em boas armadilhas democráticas. Seu ímpeto beligerante não deve ser respondido com novos ímpetos belicosos, muito embora a cadeira presidencial por si mesma seja um alvo permanente de críticas e ataques das mais diversas naturezas. A essa altura do campeonato, já sexagenário, será difícil Bolsonaro aprender o sorriso de JK  ou a ter o couro de crocodilo que FHC uma dia disse ter. O que virá quando surgirem de fato grandes pressões e sua popularidade derreter como um sorvete ao sol? O que virá quando a autodeclarada “missão” do presidente se revelar um fiasco inarredável? É triste, mas os cenários não são animadores, até porque Bolsonaro não governará como um presidente normal. Ele é do tipo, como salientam Levtisky e Ziblatt, em “Como as democracias morrem”, que confunde adversários com inimigos pessoais, o que muda toda a configuração do jogo democrático, deformando-o e alienando-o de sua razão de ser.

Fracassado pelo êxito, como diria Freud, o presidente não sabe muito o que fazer na cadeira presidencial. No íntimo e no inconsciente, poderosos sentimentos de culpa o assombram sem cessar. O sucesso, nesses casos, contraditoriamente é minado por uma autopunição. Bolsonaro sabe-se menor que o cargo, mas também não se esforça para ficar à sua altura. Não por acaso transpira raiva. Seu semblante costumeiro só demonstra o seu sofrimento psíquico, o verdadeiro molho de sua indigesta salada ideológica.

Por falar em Freud, podemos dizer que um divã, e não uma cadeira presidencial, cairia melhor ao presidente. Mas também lembro, como advertiu o próprio Freud, que pouco ou nada adianta uma análise a essa altura da vida, pois seu papel pedagógico torna-se muito limitado. O mestre de Viena sabia do que estava falando.

Apesar do cenário sombrio, ou por isso mesmo, há muito o que fazer. Muito o que falar. Muito o que protestar. Sem Freud para poder nos amparar nessa hora difícil, só nos resta, para conter o ego e o id presidenciais, o superego cívico da Constituição Federal.

Paulo Gustavo