Helga Hoffmann

Como entender Brexit? Não deixa de ser uma tentativa fracassada de democracia direta em país cujas instituições, a rigor, não preveem plebiscitos. Além de mostrar como o populismo é simplista. E todo simplismo é enganoso. O referendo de 2016 foi uma jogada do então Primeiro Ministro David Cameron, do Partido Conservador, para aplacar os mais radicais em seu partido que pediam a ele retirar o Reino Unido da União Europeia. Cameron defendeu a permanência no Reino Unido. E o resultado do referendo foi o oposto do que ele pretendia, que era apaziguar os radicais. Para surpresa geral, o resultado foi a favor de sair da União Europeia, Brexit, por uma maioria estreita (52% a 48%), com os eurocéticos do Partido Conservador indiretamente fortalecidos. David Cameron renunciou e o Partido Conservador elegeu um novo líder, Theresa May, que, como nova Primeira Ministra, teria que encontrar a fórmula para respeitar o resultado do referendo em um regime parlamentarista em que a maioria parlamentar era contra Brexit.

Como negociar Brexit?  Como contornar o Parlamento? Poderíamos aqui analisar a campanha em que predominaram os slogans do partido de extrema direita UKIP (“United Kingdom Independence Party” ou Partido da Independência do Reino Unido), mentiras das mais variadas, e omissões ou “esquecimentos” graves. Ninguém tratou, por exemplo, das consequências de restabelecer a fronteira entre Irlanda e Irlanda do Norte. Ou talvez alguns na Irlanda do Norte se lembraram: 53% votaram “Remain”, isto é, contra Brexit. Alguém lembrou dos grupos que já pediram no passado a Escócia fora do Reino Unido?  Os escoceses votaram 62% a favor de “Remain”. Brexit se traduz em instabilidade na Irlanda do Norte e na Escócia.

As fantasias difundidas sobre as vantagens econômicas de Brexit e a suposta liberdade comercial e de política econômica que daí resultaria se afastaram ainda mais de uma análise da realidade.[1]A campanha do “Remain”, pela permanência, foi fraca, dada a antiga ambiguidade do líder trabalhista Jeremy Corbyn e, talvez, porque trabalhistas não trabalharam, fiados em que Brexit seria derrotado. Pois a grande maioria dos parlamentares não era favorável à permanência na União Europeia? Não era ideia corrente que eurocéticos eram minoria radical? UKIP em 2016 sequer tinha representação na Câmara dos Comuns.

Theresa May, com o encargo de negociar Brexit, começou pela frase oca de que “Brexit significa Brexit” e que faria um governo que representaria o Reino Unido em seu conjunto. Acontece que ninguém sabia – e não se sabe ainda – o que exatamente significa Brexit. Nenhum conteúdo concreto foi apresentado ou discutido na campanha do referendo, ou no Parlamento até mês passado. O que queriam exatamente os que votaram por Brexit? Em seu conjunto concordaram com slogans como “obter nosso país de volta”, “ter de volta o controle”, e endurecimento da fronteira para restringir imigração. Depois de décadas de ataques dos eurocéticos do Partido Conservador que culparam a União Europeia pelos males da Grã-Bretanha, a única linha comum dos que votaram por Brexit foi “deixar a União Europeia”. Mas em que termos?

A Primeira Ministra May não tentou ouvir o Parlamento e buscar ali alguma proposta bipartidária ou multipartidária de um acordo a ser negociado com a UE. E nem se pode dizer que teria conseguido se tivesse tentado. Tampouco teve muita pressa em executar a determinação do referendo de junho de 2016. Em março de 2017 acionou o agora famoso artigo 50 do Tratado de Lisboa, que estabelece as regras para que qualquer membro se retire da UE. O prazo de dois anos a partir da notificação ao Conselho Europeu nos termos do artigo 50 terminaria agora, 29 de março. A Primeira Ministra passou dois anos negociando os termos do acordo entre o Reino Unido e a União Europeia, mas finda a negociação não conseguiu a aprovação pelo Parlamento Britânico dessa sua proposta já acordada com a UE. Tentou duas vezes no último mês e teve duas grandes derrotas, ainda que na segunda tentativa o número dos votos “contra” tenha sido um pouco menor.

Theresa May pretendia apresentar sua proposta pela terceira vez na semana passada, na estratégia de reapresentar até a aprovação, diante da ameaça da catástrofe da saída sem acordo. Mas o Presidente da Casa dos Comuns, John Bercow[2], desencavou um regulamento do século 17 que impede a repetida apresentação da mesma proposta dentro de determinado limite de tempo. Agravou-se o caos que impera em Westminster há várias semanas. Às vésperas de um Brexit sem acordo, a Primeira Ministra britânica pediu um adiamento do prazo à UE: segundo o artigo 50 a extensão do prazo depende de unanimidade dos demais membros. Por que essa derrota no Parlamento é tão preocupante e por que a aprovação de um acordo importa tanto?

A opção pré-definida (“default option”), a opção que necessariamente se aplica em caso de não ser aprovado nenhum acordo de retirada, é o chamado “no deal Brexit”, ou seja, saída sem aprovação de termos para tal saída e sem um período de transição, como o de 21 meses negociado por May. Ninguém deseja um Brexit assim, que significaria que da noite para o dia ficariam sem validade, e sem legislação substitutiva, os 40 e tantos acordos que definem a participação dos países na União Europeia. Ou seja, um caos de insegurança jurídica e administrativa. Ficaria totalmente confuso saber o que vale para consumidores, empresas e órgãos públicos no Reino Unido. É a opção que ninguém quer, fora os 160 parlamentares eurocéticos radicais que ainda favoreceram essa opção na noite de 27 de março. E, no entanto, torna-se a cada dia a mais provável.

A Primeira Ministra britânica pediu um adiamento do prazo de 29 de março para 22 de maio (véspera do início das eleições para o Parlamento Europeu), mas só conseguiu até 12 de abril. A extensão até 22 de maio será concedida apenas se Theresa May conseguir aprovar na Câmara dos Comuns o acordo que ela negociou. As eleições para o Parlamento Europeu, que se realizam a cada cinco anos, estão marcadas para os dias 23 a 26 de maio. A campanha está em pleno andamento, e os principais países da UE estão preocupados com o “ruído político” que Brexit pode introduzir. Além de que as 27 vagas do Reino Unido já foram redistribuídas para outros membros da UE. Ao mesmo tempo o Reino Unido não pode permanecer na UE sem participar das eleições para o Parlamento Europeu.

A Câmara dos Comuns, semiparalisada por quase três anos, finalmente saiu do marasmo e, em gesto inédito, decidiu determinar sua própria agenda. Na quarta feira, 27 de março, aprovaram fazer “votos indicativos” para sugerir caminhos para dar formato ao Brexit. Foram apresentadas, negociadas e votadas oito alternativas, que não incluíram a proposta da Primeira Ministra. Nenhuma conseguiu maioria, mas o resultado da noite de quarta-feira traz algumas surpresas. Um resultado que não se imaginava até agora é que um segundo referendo foi a opção mais popular.

Eis as propostas, por ordem de popularidade, se alguém quiser com base na votação apostar o que vai acontecer nas reuniões de sexta 29 de março e segunda 1º de abril, marcadas para continuar o debate. Os votos obtidos estão entre parêntesis:

  1. Novo referendo (268 a favor, 295 contra). O Partido Trabalhista votou fechado a favor e alguns partidos menores também. Apenas 8 parlamentares do Partido Conservador foram a favor.
  2. União aduaneira (264 a 272). Uma diferença de apenas 8 votos. De novo os trabalhistas votaram a favor em bloco.
  3. União aduaneira em proposta específica do Partido Trabalhista (237 a 307).

Nenhuma outra recebeu voto de mais de 200 parlamentares:

  1. Mercado Comum 2.0, sistema similar ao que tem a Noruega, que participa do mercado comum, mas adota restrição ao livre movimento, como permitir a entrada de outros europeus só com emprego já contratado (188 votos).
  2. Revogação do artigo 50, ou seja, cancelar Brexit (185 votos a favor, dos quais 111 de parlamentares do Partido Trabalhista).
  3. Brexit de qualquer jeito, sem acordo (160 a 400, votos a favor todos do Partido Conservador).
  4. Brexit sem acordo, mas com “arranjos preferenciais contingentes” a serem negociados no futuro (139 a favor)
  5. Fazer parte da EFTA (Associação Europeia de Livre Comércio), constituída por Islândia, Noruega, Suiça e Lichtenstein, e da Área Econômica Europeia, que é um acordo entre EFTA e a UE estabelecendo participação parcial e limitada (65 votos a favor).

Como nenhuma proposta alternativa conseguiu maioria, Theresa May voltou à ofensiva, agora oferecendo sua renúncia em troca da aprovação de seu acordo. Essa nova jogada vai funcionar? Ainda que alguns eurocéticos manifestassem simpatia, um parlamentar conservador furioso chamou de “pantomima” a oferta de May e foi abraçado por colegas. A libra esterlina está em seu nível mais baixo das últimas três décadas e já estão na mídia as especulações sobre quem será o novo Primeiro Ministro.

Um novo debate está marcado na Câmara dos Comuns para sexta-feira, 29 de março, para rever as propostas mais votadas da quarta-feira. Já que o Parlamento rejeitou as demais propostas é possível que May reapresente seu acordo. Será que John Bercow e o Parlamento vão concordar em introduzi-lo de novo na pauta? Como disse o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, “se quisermos comparar a Grã-Bretanha a uma esfinge, por comparação a esfinge seria um livro aberto”.

A União Europeia tem sido paciente em relação à tragicomédia do Brexit: ainda que o Reino Unido seja o mais prejudicado, Brexit tampouco é algo para comemorar no resto da Europa. A única vantagem talvez seja que a experiência do caminho para o Brexit esfriou os ânimos de eurocéticos em outros países. Donald Tusk, o polonês que é Presidente do Conselho Europeu, fez perante o Parlamento Europeu, no último dia 27 de março, uma declaração muito aplaudida: disse que a União Europeia não podia abandonar mais de seis milhões de pessoas que assinaram online por permanência na União Europeia, nem o milhão de pessoas que foram às ruas em Londres, sábado passado, também em favor da permanência. E concluiu: “Pode ser que eles não estejam suficientemente representados pelo Parlamento do Reino Unido. Mas eles devem sentir que são representados pelos senhores nesta casa, porque são europeus.”

[1]A mais recente análise dos danos de Brexit é de Martin Wolf, The Brexit delusion of taking back control, Financial Times, 26 de março de 2019. https://www.ft.com/content/473bd2ae-4ee5-11e9-b401-8d9ef1626294

[2]Presidente da Câmara dos Comuns não é uma tradução exata de “Speaker of the House”, pois este tem funções diferentes e se supõe inclusive que permaneça neutro; além de que John Bercow é uma figura especial, não só pelo teatral. Alguns o acusam até de falta de neutralidade, pois era a favor da UE antes de se tornar “Speaker of the House”.