João Rego

“Marrons. Les esclaves fugitifs” (Brown Runaway Fugitive Slaves) photographed by Fabrice Monteiro.

Esta semana, quando fui colocar ar nos pneus do carro, dois jovens negros me abordaram. Esquálidos e famélicos, pediam um trocado para comprar comida. Como estava sem dinheiro, meneei a cabeça num sinal de que nada tinha, na intenção de liberar os pobres coitados para abordarem outra pessoa. Um deles se quedou paralisado diante de mim, como se naquele momento tivesse perdido todas as esperanças, inclusive a vontade de viver.

Enquanto o frentista passava de um pneu para outro, lá estava ele parado, inerte, com um olhar vazio de dor, a desafiar minha compreensão sobre a miséria humana.

Eu havia acabado de postar no Facebook um vídeo impactante, onde mulheres negras instruídas faziam, de forma didática e verdadeira, a defesa das cotas para afrodescendentes nas universidades. Mostravam elas, no vídeo, a existência de inúmeros privilégios já existentes na lei, que beneficiavam setores da classe dominante.

Aqueles contrários ao regime de cotas se lançaram contra mim, utilizando argumentos que, aparentemente organizados, dão sustentação a sua visão ideológica sobre as cotas. Um deles é o que segue abaixo:

“Bandeira separatista de esquerda, que institucionalizou o próprio racismo no Brasil. Nossa Constituição é claríssima:

“Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes…”

Chega a ser pueril a crença na Constituição. Se uma lei instituída fosse solução dos problemas sociais, nós seríamos uma Suíça. Bastava promulgá-la e ordenar: revoguem-se todas as seculares injustiças sociais!

É importante lembrar que a Lei, elemento fundamental em nosso processo civilizatório, é, antes de mais nada, um instrumento para conter a pulsão humana primitiva, garantindo as condições mínimas para sairmos do Estado de Natureza para o Estado de Sociedade. Lei, portanto, é contenção de uma pulsão humana, violenta, irracional e destruidora. A sua existência não é sinal de que a pulsão humana foi extinta, pelo contrário, é a mais clara prova da existência do horror humano primitivo, que, apesar dos milênios de processo civilizatório, permanece incólume, insistindo de forma incessante em cada gesto de violência de um ser humano contra outro.

No caso da nossa Constituição, invocada pelo oponente às cotas, é importante lembrar que esse “arcabouço jurídico” tem sido, historicamente, criado por uma elite, em defesa dos interesses dessa elite, e, quase sempre, voltado a proteger seus privilégios.  O andar de baixo é secularmente vilipendiado em seus direitos mínimos, sendo que os afrodescendentes carregam no corpo e na alma, ainda, o peso do chicote e da escravidão, que, durante séculos, garantiu a formação econômica do nosso país.

Em pleno século XXI, vejo nos diversos ambientes em que circulo, milhares de muros de exclusão racial, invisíveis para alguns, mas indestrutíveis para outros. Eles estão naqueles que correm atrás dos caminhões de lixo, sofregamente esvaziando as lixeiras de nossas casas; estão nas feiras e mercados, sempre por detrás do balcão; estão – pasmem! – dentro de nossa casa, em nosso cotidiano, cozinhando nossa comida, fazendo a faxina diária, e até mesmo cuidando com todo zelo dos nossos filhos.

São nesses muros que se pretende abrir brechas com as cotas.

Não ver isto, e citar leis e “harmonia social”, chega a ser de uma perversidade inaceitável.

Segue o ardiloso oponente, num esforço retórico, distorcendo o objeto central da questão:

“Neste contexto, caberia muito bem a pergunta: seria justo estabelecer cotas para brancos, para gays, para ruralistas, religiosos, etc.? Todo apoio deve ser dado aos que não dispõem de recursos financeiros, sejam pretos, brancos, homens, mulheres, heteros, homos, etc. Pois “EDUCAÇÃO É DIREITO DE TODOS”

Este raciocínio de querer nivelar a exclusão racial com outras minorias é falacioso, porquanto não encontra sustentação na realidade.  Há uma dívida social, de vários séculos, da sociedade, com relação aos afrodescendentes. Durante séculos de escravidão foram tratados, não como seres humanos mas como animais.  Faziam parte do patrimônio do senhor, junto a mulas, porcos e vacas. Foram “domesticados” na chibata e no tronco. Isso com a anuência da “Santa Igreja Católica”, que dava suporte teológico para tais bestialidades.

É sobre o pagamento desta dívida que estamos falando, quando falamos de cotas. Uma dívida que insiste em se perpetuar a cada gesto de preconceito, a cada barreira de inclusão que se constrói cotidianamente em nossa sociedade. Porém a mais grave crueldade é a sua negação, por razões ideológicas, ignorância ou pura maldade humana – como tentam fazer algumas correntes neonazistas, negando o holocausto. Negar a existência de exclusão social por conta da raça no Brasil é fortalecer este muro, tornando-o indestrutível. Um muro construído da mais ignominiosa crueldade humana: a escravidão.

Entender, identificar e atuar sobre as raízes da exclusão racial, assim como as da pobreza e da fome crônica que atingem vários setores da sociedade, não é um ato de separação social, nem tão pouco é tarefa de apenas alguns setores mais engajados. É um desafio da nação. Numa sociedade em regime de democracia plena, o reconhecimento e a valorização de sua diversidade cultural, racial e de outras diferenças que constituem o ser humano, é fator de fortalecimento, posto que há aí evidente prática da tolerância – que constitui a essência da dinâmica democrática.