Previdência: Faculdade ou ação de prever. Precaução, cautela. Esse é o significado da palavra. Hoje já chamamos a nossa “previdência social” pelo apelido carinhoso de “previdência”. Será que podemos chamar assim?
Todos nascemos num tempo em que o sistema previdenciário parece parte da paisagem. É parte da vida, essa construção social engenhosa que nos permite ter uma vida digna após a nossa vida de trabalho. Por estarmos acostumados à paisagem esquecemos do básico.
A primeira previdência social, para fins de aposentadoria, foi estabelecida em 1889. Antes disso, a sustentação para os que não mais podiam trabalhar era tipicamente provida pela família. Mas não raro as pessoas trabalhavam desde o momento em que era possível e útil, ainda crianças, e seguiam trabalhando toda a vida. Para ilustrar, no Brasil de 1900 a expectativa de vida ao nascer era inferior a 40 anos.
Na nossa previdência social atual, temos vários produtos que estão sob esse nome. A poupança gerada para a aposentadoria é um deles. Um seguro para garantir renda a um trabalhador que se acidenta, é outro. Um seguro para garantir renda para o trabalhador que perde a capacidade de trabalhar, por qualquer razão, é outro produto. E a isso se juntam renda para pessoas incapacitadas e outros benefícios. Entenda-se que há várias formas de usar os recursos oriundos de uma poupança gerada a partir de uma parte da renda dos trabalhadores e outra parte das empresas que os emprega.
Há condições anteriores que permitem que haja a previdência social, assim entendendo um sistema em que seja possível guardar um pouco do que se ganha para poder usufruir depois, quando pararmos de trabalhar, por tempo, por idade, por acidente, e por outra razão.
A mais importante condicionante é a existência de uma sobra. Ou seja, que o resultado do trabalho seja capaz de dar sustento no presente e ainda sobre alguma coisa para que seja guardado para o futuro. Essa sobra deve ser acumulada e adequadamente gerida para que possa crescer o suficiente para ser usada algum dia, quando não houver mais condições de trabalho. Ótima ideia. No Brasil, escolhemos juntar essas sobras de forma coletiva, de forma que todas as sobras juntas formam um grande fundo administrado pelo Estado.
Por um momento, esqueçamos que as pessoas, de acordo com a posição em que ocupam na sociedade, têm diferentes formas e tempos para sacar desse fundo. Esqueçamos disso por um instante. Existe um fato a ser considerado quando vemos os depósitos e saques a esse fundo. Esse fato é que desde 2007 os saques são maiores que os depósitos. A diferença é então coberta pelo orçamento do governo federal. A partir desse momento, o conceito de “previdência”, já está comprometido, pois já não há a característica de guardar um pouco para o futuro. Sigamos. A cobertura do orçamento tem crescido de tal forma, que o governo federal precisa pegar dinheiro emprestado para pagar a “previdência”. Se já não seria previdência pelo simples fato de não haver sobra, gerar dívida para cobrir esse déficit é então um completo contrassenso.
Lembremos. Tomar dinheiro emprestado é gastar o dinheiro no presente para deixar de gastar esse dinheiro no futuro, pagando por isso os juros a quem quiser emprestar e, claro, devolvendo o dinheiro ao dono original em algum momento previamente acertado.
O dinheiro dos impostos, ou seja, o dinheiro tirado das pessoas e das empresas pelo governo para prestar serviços de educação, saúde, segurança e gestão dos interesses comuns, é usado menos para dar à população os serviços de que precisa, e mais para alimentar esse fundo, agora e também no futuro, já que estamos tomando dinheiro emprestado e precisaremos pagar.
Voltemos ao ponto em que é preciso lembrar de que as pessoas têm autorizações diferentes para sacar do fundo. Há um conjunto de pessoas que podem começar a sacar muito cedo, e podem sacar todo mês valores bem elevados. E uma imensa massa de pessoas que só podem começar a sacar tarde na vida e sacar valores bem baixos. Acrescente-se que são essas pessoas que sacam pouco e tarde são as principais usuárias dos serviços do estado de educação, saúde, segurança e outros, mesmo quando estão ainda depositando no fundo.
Chegamos ao ponto. O sistema inverte a lógica de uma previdência, pois não está guardando no presente para usar no futuro. Ao contrário, está antecipando dinheiro do futuro para gastar no presente. O sistema atual inverte também a lógica da existência do Estado moderno, de recolher impostos de quem ganha mais para garantir oportunidades iguais, ou pelo menos cada vez menos desiguais na partida, a todos os cidadãos, elevando a condição dos mais pobres. E a dignidade de um sistema de atenção à saúde eficaz e ágil. E outros serviços mais.
Simplificando, o sistema atual está tirando recursos dos mais pobres para garantir alguns privilégios aos mais ricos, na maioria das vezes com um verniz legal que não consegue esconder o monstro que foi descuidadamente criado ao longo dos anos. E garantindo duplamente que os mais pobres continuem pobres, já que não consegue oferecer educação de qualidade hoje, e já está usando o dinheiro que poderia criar tal educação no futuro.
Mas sempre há uma chance. O país pode crescer de tal forma, que a criação de empregos seja tão boa a ponto de aumentar muito a quantidade de pessoas que faz depósitos nesse fundo e que a arrecadação de impostos ajude a equilibrar tudo.
Mas como fazer isso sem investir massivamente em educação e sem tirar um pouco o peso dos impostos das pessoas e das empresas? Nunca nenhum país conseguiu. E nas condições atuais, com o orçamento comprometido, o Estado está impedido de reduzir impostos ou fazer investimentos para melhorar a educação ou qualquer outro investimento capaz de alavancar o desenvolvimento.
Isso nos leva a um inevitável caminho. Precisamos mudar o sistema. Acabar todos os privilégios. Colocar um limite, já, para o tamanho dos saques contra o fundo. E todos teremos que contribuir por mais tempo antes de começar a sacar dele. E isso não é o bastante. É preciso que o estado gaste menos consigo mesmo para que possa oferecer aos mais pobres uma forma de quebrar a cadeia de transmissão da pobreza através da educação de qualidade.
Se fizermos bem feito e já, é trabalho para uma geração. Pode ser muito para uma pessoa, mas é quase nada no tempo histórico de um país.
Muito bem colocado Alcides. Simplicidade e boa lógica. Parabéns!
Não poderia ser mais didático, amigo Alcides! Quem não se convencer, será por burrice, ou por viés ideológico cego.
Claro como água limpa. Esse texto de Alcides Pires é o mais didático que já vi na vida sobre o que é Previdência. Muito importante, pois na atual discussão tem gente que ainda mistura política de previdência com política salarial e com política compensatória.
A visão do autor está correta, quando verificados os pressupostos básicos do sistema, os quais incluem alguns benefícios, como o da morte ou da invalidez periódica ou definitiva do trabalhador. Seguindo na senda do caminho simples, alguém contribui um valor, qualquer administrado pelo governo para que, na hora apropriada possa receber sua aposentadoria, ou sua viúva receber o pecúlio ou pensão. Ocorre que o sistema constituído em seus primórdios sempre foi o de acumulação, ou seja todos contribuíam, patrões e empregados. O Governo Federal, que tomava conta disso tudo constituiu o Sistema, através de um fundo previdenciário. Esse fundo foi sendo gasto à rodo para a construção de Brasília, para a Ponte Rio – Niterói e para a Rodovia Transamazônica, citando algumas, apenas. Também é certo que desde seu início o sistema se caracterizava como de repartição. Os trabalhadores eram descontados de seus salários de um percentual determinado e gerido pelo governo, e os empregadores contribuíam com sua parcela. A soma dessas era acrescida ao fundo e quem ia se aposentando recebia sua aposentadoria retirada desse Fundo. O sistema era recomposto com o ingresso de novos contribuintes. A lógica era a de que sempre deveriam entrar mais pessoas no sistema do que a quantidade daquelas que saíam. Até 1982, para não ficarmos em muitos exemplos, todos contribuíam até o teto de 20 salários mínimos, inclusive eu, pois a aposentadoria seguia o mesmo rumo do acréscimo do percentual do salário mínimo. Em 1982 essa regra acabou e os novos aposentados passaram a receber a aposentadoria com um novo cálculo atuarial considerando um valor de contribuição inferior ao salário mínimo. Inclusive, os percentuais de reajustes passaram a ser distintos. Os aposentados recebiam em alguns cálculos 50% de correção de sua aposentadoria em relação ao aumento ou correção do valor do salário mínimo. A partir da década de 90, passaram a ser inseridos os benefícios sociais, que não são aposentadorias, mas que disfarçados sob esse título o são, já que não seguiam as regras de contribuição paritária: vamos criar o benefício social para a classe dos cortadores de cana, dos marisqueiros, das donas de casa, dos agricultores, e por ai segue. Não que tenhamos alguma coisa contra isso, só os destaco pois esse tipo de benefício não é previdenciário, mas passou a ser tratado como tal, e os recursos eram retirados do mesmo “saco”, já sem fundo, dos contribuintes para o sistema previdenciário. Também se destaca que na época do Sarney os benefícios para os acidentes do trabalho passaram a ser agrupados aos da previdência social. Agora, imaginem que ocorreu uma grande mistura de verbas distintas, sem nenhum controle atuarial e acrescenta-se a isso o fato de o sistema passar a ficar com menos de quarenta milhões de contribuintes, os “des”, que chegaram a contribuir e suas empresas também, para com a previdência. As pessoas saíram por uma porta e os benefícios que contribuíram saíram por outra. De repente, economistas começaram a propor novas formas de arrecadação através de leis especificas, como por exemplo a contribuição social sobre o lucro líquido CCSL. Lógico deve o ser, que em um País onde se eternizam as reeleições e a bandalheira, principalmente com o dinheiro público é escancarada, algum problema isso ocorrerá. Para agravar o quadro aumentaram a alíquota da desvinculação das receitas da União, a DRU, que descarimbava 30% das verbas recebidas das quais os governantes tinham que prestar contas. Ora, concluindo, um País onde só se cobra do pobre e não dos riscos, um País onde leis são melhor aplicadas quanto mais capacitados forem os advogados e, …, lógico é que benefícios foram concedidos a muitas empresas que não precisavam disso. Benefícios que incluíam a parcela a ser paga para a aposentadoria do trabalhador. Houve a redução dos contribuintes! Houve a redução da quantidade de trabalhadores na ativa! Os benefícios sociais continuam existindo! Os Estados gastam mais do que produzem e precisam de recursos adicionais. Somam-se todos esses temperos e mais outros que não caberiam aqui e tem-se um caldo da sabor ruim, pois que não serão engolidos pelos trabalhadores. As causas disso tudo já o sabemos mas não abrimos nossos labios para pronunciar. Nos calamos. O resultado é que sempre que faltar dinheiro para a gestão pública o povo irá tirar dinheiro do bolso, se ainda o restar. Fomos convidados para um banquete todos comeram a tripas forra e nós apenas pagamos a conta. Fingir que tudo está bem é mais adequado. Esse é o País que não queremos. Se alguém se interessar, na Lei 8112, que trata da conduta dos servidores públicos, incluindo-se aqueles que nessa função estão inseridos, mesmo que momentaneamente existem 5 preceitos: Legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Precisaríamos de mais alguma coisa além disso? E porque essas pessoas não são cobradas à respeito?