Tive o privilégio de conhecer Gilberto Freyre, ainda que socialmente e ainda que separados por décadas de diferença de idade. O privilégio de ouvi-lo falar. De vê-lo gentilmente agradecer em público ao garçom que o servia na Fundação Joaquim Nabuco. Tive até mesmo o privilégio de entrevistá-lo para um jornalzinho estudantil e de observar, por essa entrevista, o seu cuidado com as palavras e o seu prazer de encontrá-las e dizê-las. Freyre exemplificava muito bem o que Jorge Luis Borges certa vez agudamente observou: que resvala para o texto a felicidade de um autor em escrevê-lo.
A propósito da felicidade de escrever, lembro que um dia flagrei-o nos jardins do Museu do Homem do Nordeste cercado por estudantes do Ensino Médio. Falava, já não recordo o quê. Os estudantes atentos ao seu redor. Me aproximei para investigar a cena. A certa altura, numa ênfase cenográfica, saiu-se com estas palavras: “O que fiz, o que escrevi, devo a esta munheca aqui” e, ato contínuo, levantou o braço com o punho fechado num gesto triunfal. Era um modo comunicativo de passar aos estudantes a sua organicidade de escritor e intelectual. Um achado feliz de sua própria felicidade de escrever e de realizar.
No tão lúcido quanto já famoso ensaio-prefácio que escreveu para a edição venezuelana de “Casa-Grande & Senzala”, Darcy Ribeiro afirma, com propriedade, que Gilberto Freyre “de certa forma fundou — ou pelo menos espelhou — o Brasil no plano cultural, tal como Cervantes a Espanha, Camões aLusitânia, e Tolstói a Rússia.” Antes do surgimento, em 1933, da obra clássica de nosso autor, era como se ainda não tivéssemos chegado a uma síntese, e a nossa história, fragmentada e dispersa, fosse apenas caudatária dos grandes centros do mundo. Com Freyre, é como se nos mostrassem um Brasil novo, um país que já existia e que nos era contraditoriamente desconhecido. Formava-se, assim, um desenho de algo surpreendente, cuja recepção crítica não foi logo de todo unânime. Com sua formação intelectual realizada nos Estados Unidos e na Europa, mas deixando-se levar, sobretudo, por sua intuição profunda e proustiana, Freyre escreve um ensaio canônico e caudaloso em que afloram novas perspectivas e visões, algumas até então apenas latentes ou pré-conscientes. Se o livro — “Casa-Grande & Senzala”— é científico e documentado, é o poeta, o grande poeta que havia no autor, que dá o verdadeiro tom, ao seduzir o leitor com uma escritura encantatória, fértil em símbolos e imagens dinamizadoras de nosso imaginário. Estava assim criado o mais influente conceito de “brasilidade” que a nossa inteligência já forjou.
Realizada aquela obra — que transborda e continua em outros livros como “Nordeste”, “Sobrados e Mocambos” e “Ordem e Progresso”, e que teve a sua semente inicial na dissertação “Vida Social no Brasil em Meados do Século XIX” —, não tardou um reconhecimento internacional. Para despeito de muitos e glória de todos os brasileiros, Freyre saiu conquistando aplausos das maiores autoridades mundiais. Aplausos, láureas e condecorações. Nomes como Fernand Braudel, Lucien Febvre, Asa Briggs, Juliánó Marías e Roland Barthes deixaram testemunhos eloquentes de admiração e respeito.
Com a obra freyriana, o negro entra na História do Brasil. E entra pela porta da frente, com o statusde co-colonizador. Entra com o enriquecimento cultural que trouxe da África para o Brasil. Uma África que, para nosso autor, na prática, “governava” o País, rivalizando com o mero e oficial “reinado” da Europa. Promove-se, entre nós, a dissociação do negro do contexto de perversões gerados pela escravidão. Essa distinção, para a qual previamente Freyre tão bem se habilitara, realçou o contributo inarredável que o africano nos deu, de par com o nativo e o europeu, para a formação de nossa cultura.
Ao lado do Freyre essencial que vive no antropólogo e no historiador social, há os outros Freyres, muitos deles clamando por intérpretes, por críticos, por dilatadores de visões. Há o Freyre cronista (vem de ser lançada uma seleção de suas crônicas) e o criador de instituições, o conferencista e o político, o empreendedor e o visionário, o crítico literário e o ficcionista. Sua multiplicidade de interesses e sua versatilidade intelectual levaram-no ao plural de si mesmo e agora o trazem sempre atual para estes dias de sua posteridade.
Por ocasião de homenagem, na sede da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, logo após sua morte, presenciei o filósofo espanhol Julián Marías aconselhar “que se completasse a sua obra”, resgatando suas potencialidades e seu exemplo — “Gilberto Freyre consideraba las cosas desde una pluralidad de puntos de vista”. Com a visão que muitas vezes só o homem de outra cultura possui, Marías logo sentiu o relevo convidativo de suas sugestões e de sua prosa “multidimensional” — para usar o termo com que a ela se referiu o crítico Eduardo Portela. O que Julián Marías viu foram os Freyres em Freyre. Muitos que chegam até nós sem o formol dos anos. E muitos que estão até para nascer. Comemoremos os 120 anos de Gilberto Freyre. O presente é nosso.
Ótimo seu artigo, Paulo Gustavo. Talvez por ter saído de Pernambuco muito cedo, os sentimentos que nutro com respeito a algumas figuras icônicas de nosso amado estado não tenham de todo passado pelo crivo da maturidade. De todas, a de Gilberto Freyre talvez seja a que melhor perigou de ficar atolada nos atavismos de uma época. Sobre ele, ouvi críticas acérrimas à vaidade, ao egocentrismo, além de uma torcida de nariz que percebia no semblante de muito adulto, inclusive no colégio onde tivemos a ventura de estudar. O que seria aquilo?
Mas como as deformações não estão aí para ser cultivadas, evolui. Li seus livros monumentais e saí deles convencido de que tínhamos um pensador único, muito embora tão nosso que chegava a parecer que confirmava o que já nos parecia óbvio. Quanto ao desdém de alguns, hoje percebo que era mesmo uma ponta de inveja porque não foi dado a muitos escrever ciência embalada em bela prosa. Em suma, o frescor desse homem é contagiante e o passar do tempo só lhe fez bem. Sorte a do amigo de ter respirado os mesmos ares que ele.
Um abraço,
Fernando
Texto comemorativo marcado por muita elegância. Parabéns, Paulo Gustavo, do seu leitor xará.
Grato, Dourado,por seu lúcido comentário.
Que bom que você soube reencontrar o Freyre que, a despeito de suas humanas falhas, está ancorado numa genialidade literária e artística incomparável.
Paulo Gustavo, tudo da inteligência transcendental de Gilberto Freyre é verdade. Mas, não esqueço o seu triste papel de apoiar o golpe de 64 e as suas críticas a D. Helder Câmara, que não podia responder. Sua inserção no sistema era tão grande, que, não obstante as ordens da censura de que não se falasse no Dom, ele podia. Não quero discutir aqui se é certo ou não ser reacionário, pra mim é um status antidemocrático. Opinião pessoal. No mais, ele apreendeu a nossa formação como povo, pelo menos, no Nordeste. Saudações democráticas, Paulo Henrique Maciel.
Vc foi feliz, Paulo: conversou, sentiu a grandeza de Gilberto, de perto. Que sorte.
Muito boa a abordagem do Paulo Gustavo ao mestre de Apipucos. Leve, referenciada,abrange com elegância o monumento cultural do gênio brasileiro, que foi Gilberto Freyre. Foca com objetividade o registro da essencialidade do cientista social na nossa formação.
Obrigado pelo comentário, caro Paulo Henrique. Não poucas vezes homens e obras se separam. No fim, como no jogo do bicho, “vale o que está escrito”.
Abraço
Obrigado, caro Luiz Otávio.
Honrado por sua leitura.
Abraço do admirador.
Obrigado, Fernando Pessoa,
por sua leitura e seu comentário. Abraço