O ato de existir demanda muito da nossa compreensão. É em torno da existência que as religiões, e depois a ciência, vêm produzindo interpretações e conhecimento das causas e destinos do existir – um processo de milênios, avançando, avançando, porém sem nunca desvendar tudo. Neste aspecto, o conceito do Real Lacaniano ajuda a entender um pouco este mecanismo de busca de conhecimento em torno de um infinito vazio desconhecido. O analisante, com sua fala em uma relação analítica, tenta construir uma teoria sobre suas dores, traumas e as causas que o constituíram como sujeito e seus desejos. Só que o que gera esta fala é justamente esse “buraco vazio do desconhecido” e, enquanto ele vai construindo, através da fala, sua teoria sobre seu ser, um conhecimento singular possível, posto que apenas dele, é construído em torno dessa borda do real. O sujeito ao inconsciente se reconstrói e reorganiza seus destinos e desejos – e segue tocando sua vida finita, com desejos e frustrações, amores e sofrimentos, porém sem nunca desvendar tudo.
O Real Lacaniano só pode ser concebido em sua relação estruturante com outras duas dimensões da fala: o simbólico e o imaginário.
Partindo do sujeito para a humanidade e suas “ferramentas” de perscrutação deste infinito desconhecido (a religião e a ciência ), esta vem caminhando pelo tempo – reproduzindo através das gerações sua “vida finita”, deixando como rastro sua história – também construindo e reconstruindo bordas em torno deste “infinito desconhecido”. Dos estudos das partículas subatômicas ao estudo das galáxias, passando pelo comportamento do homem em sociedade, tudo é regido por essa dialética do desconhecido, que impulsiona nossa civilização e molda nossa humanidade.
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O hinduísmo registra os mais antigos traços desta busca pelo conhecimento, por meio de escritos que resistiram ao tempo, e tem nos Upanishads o núcleo deste conhecimento.
É muito difícil, e certamente bastante trabalhoso, seguir a ordem cronológica dos textos, principalmente para os objetivos a que se propõem estes artigos: construir um pequeno mosaico com pedaços de pensamentos sobre os efeitos que a leitura e a reflexão dos Upanishads me causaram.
Assim, escolhi pular o roteiro original e avançar para escrever sobre o Prasna Upanishad, um dos menores textos do conjunto, mas que me chamou a atenção, porque é nele onde se encontra o conhecimento sobre o Prana, ou a energia vital, aquilo que cria, mantém e extingue tudo o que é vivo, quando, ao final da existência do ser, abandona seu corpo, demarcando a sua finitude.
O Prasna Upanishad, assim como outros Upanishads, é um diálogo entre alunos e um mestre, questionando este sobre os segredos do universo, da vida e da morte.
– Mestre, como nasce o prana? Como ele vem para o corpo? Como ele habita o corpo depois da sua divisão? Como ele parte?
É sobre estas questões que iremos convergir nosso pensamento, sobre um ato que praticamos milhares de vezes em nossa vida, sem nunca pensarmos sobre ele: o ato de respirar. O que para nós é algo que nosso organismo faz institivamente, pois temos mais em que pensar, para os mestres do hinduísmo é uma das portas de entrada para a compreensão, e mais ainda, para a consciência do universo e de nossa mais absoluta integração com ele. O pranayama, o controle do prana, é um dos mais antigos e importantes exercícios do yoga.
Tentem imaginar que tudo que tem vida respira. Agora imaginem um pouco mais, dentro da perspectiva do prana, que é com a respiração, e do alimento que recebemos, que a energia vital alimenta todo organismo vivo. Essa energia vital que tudo permeia, um todo misterioso e desconhecido que suporta nossa existência, é o prana, uma das faces do brahaman e ãtman – que serão objeto de outro, ou outros artigos.
O PRANA E SUAS CINCO FUNÇÕES
“A resposta: O prana nasce do Ãtman. Assim como a sombra é fundida na pessoa, o mesmo é o prana no Ãtman. Assim como um imperador ordena ‘Domine esta vila, ou aquela’, o prana emprega outros pranas para diferentes funções no organismo vivo.”
Sobre o Ãtman, este é um conceito básico da cosmovisão do hinduísmo. Representa a contrapartida do Brahman, tudo que existe e a tudo perpassa. O Ãtman é, portanto, o que chamamos de alma ou espírito que habita todo ser vivo. Em uma visão bem resumida: todo ser vivo participa deste universal banquete da vida, carregando dentro de si seu “pedaço” de Ãtman, sendo que, ao final da sua existência, este se reintegra ao Ãtman universal. Quando formos escrever sobre Brahman e Ãtman entraremos em mais detalhes.
Voltando ao prana, este é dividido em quatro, digamos, subpranas, sendo o primeiro o apana.
Aqui, uma pausa. O que vai ser descrito a seguir tem, evidentemente, seu paralelo com a biologia e suas descobertas, entretanto é importante observar que estes conceitos têm alguns séculos antes de Hipócrates, e que há linhas de pesquisas que trabalham com a hipótese do hinduísmo ter influenciado não só a filosofia grega, como as diversas outras áreas do conhecimento da Grécia, cujo mais florescente período foi no século IV A.C.
“Prana engaja apananos órgãos excretores e de reprodução; ele se move através da boca e nariz e habita os olhos e ouvidos. No meio está samana; este distribui em todo o organismo, equanimemente, aquilo que foi oferecido como comida. Deste prana (o samana) o fogo emerge suas sete chamas. (Nominalmente: dois olhos, dois ouvidos, duas narinas e os órgãos da fala)”
Vyana
“O ãtman tem sua moradia no coração, onde há cento e uma artérias (nadi); para cada uma destas existem cento e um galhos, e para cada um destes galhos, novamente, há setenta e dois mil subsidiárias naves. Vyanase move nelas.”
Aqui é uma surpreendente compreensão do sistema circulatório e do sistema nervoso com a maravilhosa e complexa rede de comunicação e seus bilhões de neurônios.
Udana
“E o Udana, subindo para cima através de um deles, conduz a alma que parte para o mundo virtuoso, por atos virtuosos; ao mundo pecaminoso, por suas ações pecaminosas; e para o mundo dos homens, para ambos.”
O último prana, o udana, ou último suspiro, tem a função de transportar o ãtman de volta para onde sempre esteve, o ãtman universal. Já se percebe uma visão moral de boas e más ações, certamente traços antecipatórios do conceito de céu e inferno, que as religiões recentes tão bem incorporariam.
O MUNDO EXTERIOR
“ O sol, em verdade, é o prana externo; porque se ergue, favorecendo o prana no olho. A divindade que existe na terra controla o apana do homem. O espaço, akasa, entre o céu e a terra, é samana. O ar é vyana.”
Para a escola vedanta, uma das principais escolas de filosofia do hinduísmo, não há separação entre o indivíduo e a realidade que o cerca. Tudo é um todo integrado, alimentado pela energia vital que a tudo perpassa, dando-lhe vida, mantendo-a e a extinguindo-a, num ciclo interminável de bilhões de anos.
“ O sol, em verdade, é o prana externo”
É surpreendente esta visão há 2.800 anos atrás, quando, apenas no século XXI o homem, com sua prodigiosa ciência, começa a descobrir importantes segredos do universo, como é o caso dos neutrinos. Os neutrinos são partículas, assim como os fótons, oriundos do sol, e que atingem a terra em quantidades impressionantes. Todo ser vivo recebe, por segundo, por centímetro quadrado, 60 bilhões de neutrinos gerados pelo sol.
CONCLUSÃO
Em uma sessão de yoga, o que seria para os cristãos uma oração diária, a mente do yoguin, a cada inspiração, retenção e expiração, mentaliza o prana, percorrendo cada célula do seu corpo e seus complexos sistemas, expandindo sua mente para essa circulação da energia vital, que sustenta e integra todos os seres vivos.
Esta visão omniabrangente é uma das bases para o sujeito construir uma ética, e agir em sua interação com o outro, guiado pelo ahimsa, a filosofia e a prática da não violência. Ahimsa é a pedra fundamental de toda a construção do vasto universo do hinduísmo, tendo influenciado o budismo e outras religiões.
O objetivo supremo do yoguin é atingir a consciência de brahman, o nirvana para o budismo, ou o êxtase espiritual que alguns santos católicos experimentaram. Há, ainda em vida, um evanescimento do Eu, fundindo sua consciência com o absoluto – uma tarefa, digamos, impossível em termos humanos.
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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
THE PRINCIPAL UPANISHADS – Translated and edited by Swami Nikhilananda – DOVER PUBLICATIONS 2003
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