Fernando Dourado

Paulo Henrique e Ed.

“And let me touch those curving claws of yellow ivory; and grasp the tail that like a monstrous asp coils round your heavy velvet paws”.  Oscar Wilde

I

Era um domingo soalheiro e sem graça, desses de um outono fajuto e faltante. Na véspera, eu tinha ido a um jantar que resultou anódino. A conversa não decolou, as perguntas que fiz caíram num enorme vazio, e foram invariavelmente rebatidas com digressões cosméticas, embora embaladas por um lindo sorriso. Nada houve de terrível, o que às vezes é uma pena. A prosa poderia ter tomado outro rumo se bandidos armados tivessem adentrado o recinto com ameaças e palavrões, ou se um comensal tivesse passado mal e nosso espaguete fosse servido em meio a descargas de desfibrilador cardíaco no corredor do banheiro, aplicadas ao peito moribundo do homem. Mas que nada. Certo mesmo é que em momento algum a troca de palavras (foi isto a que se reduziu) se descolou de fatos. Fatos e mais fatos, todos comentados superficialmente, e de preferência parece que pinçamos aqueles que passassem ao largo de divergências, como se ambos estivéssemos condicionados por algoritmos invisíveis a só dizer o que gerasse o assentimento mútuo, a concórdia, na falta de poder almejarmos uma real sintonia. Comportamo-nos, em suma, como fazem os jovens casais japoneses em seus primeiros encontros. Hai, hai. A so deus-ka. A so desu-ne. Hum. Domo arigato gozai masu. Não, não se saiu um centímetro sequer do chão. Digamos que tenha sido uma conversa jornalística, e não literária. Com isso quero dizer que não houve desafio à inteligência ou à verve. Não se nos ocorreu sequer uma provocação, uma única resvalada para a ironia que desse chance ao debate. Em dado momento, pensei que talvez estivesse faltando um pouco de combustível à prosa e pedi vinho. E depois um pouco mais, até que percebi a insensatez que estava cometendo. O que remanesce da noite até hoje, dias depois de transcorrida, é a dúvida se aquele olhar era de admiração, de perplexidade, de sedução ou de reprovação. Tudo o que sei é que o sorriso era digno de uma aeromoça da Braniff nos anos 1970. Despedimos-nos aliviados, a verdade é essa, e cada um tomou seu rumo, feliz que a noite tivesse chegado ao fim. Ela deve ter pensando que nunca mais na vida vai querer sair com um homem de 60 anos. E eu, de minha parte, nunca mais terei fantasias com aeromoças balzaquianas da Braniff de sorriso Crest.

II

Mas como creio já ter dito, era um domingo soalheiro e sem graça, desses de um outono que ainda não acontecera. Acordei um pouco embriagado. Fui à geladeira e, com a porta aberta, recebendo o ar gelado que me refrescou o corpo entorpecido e vagamente febril, bebi no gargalo um litro de água São Lourenço. No corredor, um montículo de tecido preto assinalava a camisa, a calça, as meias e a cueca da véspera, que eu comecei a tirar mal entrei em casa. Moedas e cédulas estavam espalhadas no chão. Voltei para a cama e fiquei matutando se acaso tinha um analgésico em algum lugar. Se tivesse cerveja na geladeira, tomaria uma garrafa para submeter o corpo a uma redução progressiva do nível de álcool no sangue. E assim me recuperaria sem sentir a dor da consciência brusca. É o que fazem os alcoólatras de truz para evitar a tremedeira nas mãos. Mas não tinha. Não sem algum sacrifício, resolvi levantar de vez porque sabia que o sono dali em diante seria impraticável, e só nos reconciliaríamos à noite. O telefone piscava prenhe de mensagens, mas nada me parecia especialmente importante. Por que atender? Até que ao entrar numa rede social, os olhos bateram na foto de um pernambucano bonachão e amoroso, um bom advogado das antigas, que eu vira pela última vez apenas alguns dias antes, numa festa no Recife. Na imagem, de camiseta e cabelos brancos, ele apoiava o nariz contra um vidro de janela, nitidamente uma divisória de compartimentos internos de sua casa. Do lado de cá, na perspectiva de quem tirou a foto, certamente de um telefone, um gatinho espichadíssimo levava o nariz até o dele, e ambos pareciam trocar um afago de bigode para bigode, como devem costumar fazer quando não há nada a separá-los. Eis um instantâneo na medida certa para animar um domingo que começara tão mal. Então quer dizer que aquele era o gatinho a que ele se referira quando nos víramos, para justificar um pouco de atraso? “Sou avô de gato, meu amigo. O bichinho ainda não teve alta, mas aqui estou para honrar nossa amizade recente”. Sob a foto, havia um texto. Para lê-lo, eu precisava dos óculos de grau e de uma disposição que me faltava. Onde achá-los sob aquele caos de lençol, travesseiros e livros? Enquanto procurava-os, pensava: mas por que Braniff? Quantas vezes tinha voado com essa empresa que recolheu as asas há bem mais de 30 anos? Poucas, mas talvez tenham me chamado a atenção os sorrisos de dentifrício americano. São essas coisas que vão se sedimentando em algum lugar do inconsciente e que afloram nas horas de escrever – esse ato de exorcismo que remexe até com o bem. Então passei a ler o que dizia o dono do gatinho Ed.

III

Ed chegou aqui em casa no dia 28 de janeiro de 2016, com presumíveis 3 meses de vida, e foi buscado numa Feira de Adoção por Dione, minha esposa, de presente para Maria Paula, nossa filha, como uma substituição a um casal de gatos que não sobreviveu, não obstante diligentemente cuidado. Quando soube que a vida média de um gato é de 18 anos, tranquilizei-me ao pensar que ele se despediria de mim, haja vista que em 2016 eu faria 70 anos. Mas a indesejada das gentes me desmentiu. Na madrugada de hoje, depois de uma cirurgia de emergência, Ed encantou-se. Aos meus 72 anos, admito que nossa relação de amizade era muito forte pela convivência diária, mesmo porque ele tinha acesso a todos os lugares da casa. Podia desde ficar em cima de qualquer guarda-roupa a se enfiar entre minhas camisas, nas prateleiras do guarda-roupa, até deitar-se na nossa cama. E, muitas vezes, ficava estirado ao comprido, ou de fio a pavio, sobre mim, rosto com focinho, bigode com bigode, em minutos de interação, amizade, companheirismo e de uma fraternidade que só existe entre avô e neto. De manhã, devia ser cerca de 9, 10 horas, Dione recebeu uma ligação da clínica com a notícia de que Ed se encantara. Chorei muito na hora, chorei depois e continuo com uma tristeza dessas que somente o irremediável fenecer nos faz sofrer. ‘”Uma rosa é uma rosa”’, nos diz a poesia. Pois bem, um gato é um gato, com tudo o que nos acolhe, recebe e retribui. Dizendo isso, digo pouco, porque havia uma parceria entre nós dois. Muitas vezes, éramos somente Ed e eu, porque Dione, Maria Paula e Lilian estavam fora de casa. Ele gostava de ficar entre o teclado e o computador, às vezes digitando palavras cheias de consoantes como nas línguas eslavas. Em outras ocasiões, em cima do teclado, impedia-me de digitar. Eu respeitava a invasão. Tinha também o lado poético dele, de ir à janela, olhar o jardim ou adormecer. Agora, não mais. Que pena, Ed. 

IV

Então senti as lentes embaçadas. Estava chorando? Será que à mera leitura daquelas linhas eu já me esquecera da frustração que me causara o sorriso Braniff, e até da cabeça pesada, devido à quantidade desproporcional de vinho que tomara? O texto de meu amigo continuava, mas eu precisava de fôlego para lê-lo. Peguei então a bombinha de asma, dei uma aspirada profunda e olhei a paisagem lá fora por um minuto. Quantas centenas desses apartamentos não têm gatinhos, desses que se aninham lá onde ninguém desconfia, no aconchego dos lares outonais, à espera de dias mais frios para então sentir as vibrações de São Paulo, e se instalar no recôndito das carências dos donos? Relendo o relato, antes de ir à segunda parte, era inevitável que me perguntasse: mas quantos desses bichinhos podiam contar com um homem terno e amoroso como meu amigo – um ativista político aposentado (embora não menos indignado), remanescente de lutas épicas, e que faz da amizade uma razão de vida? Vida esta, aliás, que por razões de saúde nada banais, poderia ter acabado muito cedo, como ele não cansa de alardear. E que, sub-escrevendo-se PH, apesar da sigla, ironicamente de ácido nada tem, já que do azul do olhar brota mel. De mais, sendo uma cornucópia de afeto, não se cansa de renovar publicamente os votos de amor e gratidão à mulher e à filha, uma linda moça quase neta – logo irmã de Ed -, em quem, visivelmente, vê a continuidade de sua própria passagem pela Terra, ele que, à distância, parece cultivar a linguagem dos kardecistas? Durante o transe a que me levara aquela leitura, perguntava-me o quanto aquele lar que Ed deixara à sua revelia, coitadinho, não evocava dentro de mim o Recife no melhor de suas tradições. Qual seja, aquele Recife dos despertares alegres e iluminados, quando meu próprio pai, com o pincel de barba ainda na ponta dos dedos, ia até a copa para brincar com o galo de campina que ficava assanhado ao vê-lo? “E aí, como vai meu menino? Mas que canto mais bonito. Deixa eu botar mais alpiste aqui na sua gavetinha. Ah, seu danado, você está beliscando o dedo de seu pai?” Ou o velho tio que tinha um papagaio que, coitado, não podia se dar ao luxo de morrer? “No dia que esse aí se for, eu embarco junto”, dizia apontando o louro que passava o dia no ombro. “Não é, meu pai? Você já viu quem está aqui? É isso mesmo, essas visitas chatas que não deixam a gente brincar nem ler o jornal em paz, não é?”  E o louro arremetia: “Bruuu, traz café pra Pipe“. Então as visitas entendiam o recado, despediam-se e lá vinha a tia Brunehilde com uma enorme xícara de café e um copinho com leite de magnésia diluído para o tio rabugento. Ah, isso é tão Pernambuco. Que avô Ed perdera.

V

Tinha outro lado invasivo em Ed. Na nossa cama, estirava-se ao comprido, onde me deito. Porém, mais do que invasão ao guarda-roupa, a ocupação da cadeira em frente ao computador, ao meu lado da cama – onde se esparramava -, havia a solene, afetiva, verdadeira e afetuosa invasão na minha vida. Invasão aceita, consentida e amada. Agora, não mais. Havia o aceno a um carinho quando colocava a cabeça na minha mão para o afago insinuado. E prontamente atendido. Agora, não mais. De repente, da ausência física de Ed vem-me o poema de Poe: “Nunca mais, nunca mais”. Ed, não nos veremos mais, amiguinho. Porém daí a esquecê-lo vai a distância entre amar e desamar, porque a sua partida, da forma mais dura, ensinou-me que a sua memória seguirá comigo, no melhor que possa ter, até contrariando Neruda: “Tão curto o amor, tão longo o esquecimento”’. O meu amor por você, o nosso amor, à nossa comum revelia, foi curto. Durou apenas 3 anos e alguns meses, mas o esquecimento não terá vez, asseguro. A foto que emoldura minha dor – que saibam as eventuais pessoas que tiverem a paciência de ler esta invocação a nosso amor, à nossa amizade -, mostra você tentando me beijar, embora nos separasse o vidro da porta de correr. Enquanto do outro lado, seu avô aqui, com o rosto colado na vidraça (que é de plástico), recebia aquilo a que não mais terá direito, que era o seu carinho em forma de amizade e companhia. Dione, sua avó, e eu, seu sofrido avô, estamos no mesmo padecimento e saudade, juntamente, com Maria Paula e Lilian. Ed, obrigado por você ter existido nas nossas vidas. Doravante, seguirá na memória afetiva dos nossos corações. Ed, boa noite, até amanhã, até sempre! Seu avô, amigo e companheiro, Paulo Henrique”. 

VI

Estivesse eu no Recife, já saberia o que fazer. Pegaria uma garrafa de uísque e a levaria para dar de viva voz meus pêsames e, por uma vez na vida, beber à memória de um gato. Enviei-lhe uma mensagem em que pedia o número do telefone. Naquela hora, o sotaque lânguido parecia se arrastar ainda mais, por certo agravado pela perda. Mas bastou que deixássemos para trás os rapapés do protocolo para que as saudades traíssem o humor dos bons. “Ed beliscava os petiscos que a gente dava a ele, Fernando. Mas se marcássemos bobeira, comia direto no prato. Ou direto na taça de sorvete, onde a língua era rápida e operosa”. Mas como é que ele ficou doente, sendo tão mimado, Paulo? “De repente, ele apareceu inapetente. Perdeu peso, e quase não tocava na água. Foi o começo do fim.” Sem saber o que dizer, perguntei se Ed deixara descendentes. “Não sei se você sabe, mas moramos em casa térrea. O danadinho fugia de vez em quando para namorar, mas sempre voltava com ar de sonso. O pessoal aqui queria castrá-lo, mas quando eu soube desses planos, senti um frio entre as pernas, solidarizei-me a ele e não deixei. Afinal, éramos os dois únicos machos num lar cheio de mulheres. Mas lamento. Talvez isso tenha sido o que o tirou de nós, segundo o veterinário. Virilidade não anda sendo bom negócio ultimamente, nem para gato”. Como não sorrir, apesar do luto? Fui à carga. Com que será que Ed se divertia, amigo? Sou daqueles que têm na cabeça o clichê do novelo de lã. “Com tudo, rapaz. O que mais me espantava nele, e me fascinava, é o que diz Maria Paula: Ed não sabia o que era tédio. Ele via graça até num fiapo de roupa. Essa curiosidade juvenil o levou mais de uma vez a derrubar os santos do pequeno oratório que temos em casa. E tinha também o lado aristocrático, como é comum nos gatos. Ele gostava de relaxar na janela, olhando as plantas do oitão da casa”. Senti que precisava poupar meu amigo de mais sofrimento. Mas ele continuou: “Ed tinha poucos brinquedos, mas criava-os com os objetos da casa. Tem um pedaço de madeira fixado numa base, coberto por um pano aveludado, onde ele cravava as unhas. Ah, amigo, sinto falta dele ao longo do dia. Era boa companhia para esses períodos de contenção orçamentária em que não se sai mais tanto de casa. Para ser bem sincero, eu nunca esperei sentir tanta falta e ter querido tanto bem a um ser chamado Ed. Os nossos momentos mais integrados ocorriam quando eu ficava deitado de papo para o ar e ele me escalava. Minhas poucas imagens com ele são, como diz a doutrina católica, indeléveis como os sacramentos”. Eu precisava desligar. Alguém me chamava pelo interfone. Seria a moça do sorriso Braniff? Mas ele emendou: “Disse Bandeira – vida que poderia ter sido e não foi. Tem mais. Sequer consigo pensar na possibilidade de substituí-lo. Essa criaturinha foi especial na minha vida. Essa saudade seguirá, a tristeza será diluída na rotina do dia a dia, eu sei. No meu caso, mais demoradamente, porque tenho estado recolhido em casa. Indaguei a mim mesmo várias vezes se por trás da perda, eu não estaria projetando alguma dificuldade pessoal. Mas isso não importa. Saiba só que Ed seguirá fazendo falta na minha vidinha modesta, comum”. E então nos despedimos e corri para o interfone.

VII

Ora, ora. Como são engraçadas essas pessoas. Tomam posse de minha história, usam meu nome e minha imagem, me atribuem comportamentos e tentam interpretar minha natureza, como já fizeram com Félix, com o Gato de Botas, com o Manda-Chuva e até com a simpática família francesa que tanto sucesso faz nesse meu novo mundo, chamada de Aristogatas, e que mia em frrrrancês. Mas agora, afinal, parece que só chegando ao sétimo capítulo de uma lenga-lenga sem fim – talvez porque o autor ache que nós os gatos temos mesmo sete vidas -, ele resolveu me dar a palavra. Obrigado, muito embora agradecer com miados não seja próprio de nós. Pois bem, eu sou Ed. Ed Maciel, com muto orgulho. Estou cercado de angorás felpudos que devem sentir muito calor; de persas jeitosas (nada que se compare às meninas da Visconde de Suassuna, mas já é alguma coisa), e de uns tais siameses, todos com seus ares de nobreza de quem teve coleira cravejada de rubi. Em suma, uma galera que tem os modos afetados daqueles que parecem saber o preço de tudo e o valor de nada. Acho que quem disse isso foi o mesmo cara que falou que nós, os gatos, existimos para lembrar aos homens que nem tudo na vida tem uma finalidade. Pois que seja. Vendo esses primos que me cercam, fico me perguntando quem entre eles teve os privilégios que eu tive, como é comum aos meninos de Santo Amaro. Pois bem, tomei sorvete com minha avó, tive a mais linda das donas – meio descabelada com os livros e os papéis, que eu tinha vontade de bagunçar só para vê-la feliz -, e um avô só para mim, que passava um tempão de olho numa tela e me deixava pisar numas teclinhas que escreviam coisas que o divertiam a valer. Sei que eu e meus irmãos não gozamos de boa fama. Dizem que somos egoístas, apesar de limpos. Que somos silenciosos, salvo quando namoramos nos telhados. Mais prestígio têm os cachorros com quem nos damos até bem, muito embora eles sejam um pouco bobões, uma espécie puxa-saco e bajuladora, como diria meu avô. De minha parte, sei que ele gostava de mim tal como eu era. E me tratava de igual para igual, fazendo cócegas em meu focinho com um bigode branco enorme, que fazia o meu sumir. Quando olhávamos um para o outro, meus olhos verdes se refletiam no azul dos dele, e os dele sumiam nos meus. Que nome tem essa cor? Pois bem, que o gordo enxerido invente uma. Amor foi coisa que nunca me faltou naquela casa que me traz tanta saudade. Por aqui falam de um tal São Francisco, um homem que conversava com nossos amigos, os passarinhos. Eu já tenho o santo de minha devoção (que meu avô não ouça porque não é muito ligado à religião), se é que preciso de um. É ele mesmo. Agora chega de papo que vou brincar. Que meu avô continue bebendo muita água e fazendo suas caminhadas. A vida ainda lhe reserva tantas alegrias, e ele sabe disso. Se ele um dia quiser brincar com algum primo meu, não vou ficar triste. Nós, os gatos, quer tenhamos uma vida ou sete, sabemos que somos eternos. E eu em especial. Por que haveria de ter ciúmes se sei que fui único? Meu avô, especialmente ele, que um dia foi ator, e estrelou um filme premiado, me deu enquanto pôde um vidão. Opa, onde será que já ouvi isso? Com sua benção, vô.  Até qualquer hora. De seu neto, Ed. Ed Maciel.