Você acha que você é rico? Ou você acha que é pobre? Tudo é relativo. Hugo, um menino brilhante que acabou de se formar em economia numa universidade pública, mas passou um tempo numa faculdade particular com bolsa do FIES, diz que eu sou rica. E que ele é pobre. É só um exemplo. Não vou decidir aqui nossos rótulos individuais.
Mês passado, mês de fazer a declaração de imposto de renda, vi gente braba, que ia ter que pagar imposto, e achando que os impostos deveriam diminuir e que o governo deveria, isso sim, aumentar o imposto dos ricos. Gente que se acha “pobre”, no máximo admite ser “classe média”, mas que, como veremos, pode até estar entre os 5% mais ricos da população. E é fácil encontrar pessoas que defendem o tal imposto sobre as grandes fortunas, sem muita clareza sobre o que seja “grande fortuna” exceto que é alguém percebido como mais rico que quem está fazendo a defesa do imposto. Mais imposto só para outrem.
A Receita Federal estimou este ano que pouco mais de 30 milhões de pessoas deveriam apresentar sua declaração de imposto de renda. Ou seja, calcula-se que só uns 20% das pessoas adultas precisam por lei fazer declaração de imposto de renda. Isso significa que qualquer um que estava em abril fazendo sua declaração de IR (como eu) já estava entre os dois décimos mais ricos entre pessoas com idade superior a 21 anos. A declaração em 2019 foi obrigatória para quem tivesse no ano anterior rendimento anual tributável a partir de R$28.559,70 (uns R$2.830,00 por mês), rendimento não tributável superior a R$40.000,00, tivesse vendido imóvel, tivesse bens de valor superior a R$300.000,00 atividade rural com renda bruta superior a R$142.798,50, ganho de capital, ou que tivesse feito operações em Bolsa.
Nada fora do que tem sido o comum dos últimos anos. Mas o que me chamou a atenção dessa vez, mesmo sem ser novidade, foi o fato de que apenas 20% declarem imposto de renda e, sobretudo, que qualquer um que tenha rendimento mensal maior que R$2.830 em 2018 esteja entre os 20% mais ricos da população adulta, ou 15% da população total. Se isso é o 15% mais rico, o que será a classe média no Brasil? Essa tal “classe média espremida” que anda no centro das discussões sobre a ascensão de partidos populistas de direita em vários países.
Não vou agora definir ou analisar classe média no Brasil, algo que possivelmente exija mais que o exame da distribuição da renda.[1] O que fica evidente do estudo da distribuição da renda é que não serviria no caso o critério da autoidentificação. Curiosamente, no Brasil – e o fenômeno é antigo – vemos pessoas e famílias que se classificam de “classe média” e estão muito longe da “média” das estatísticas, na verdade podem até fazer parte do 1% ou 2% mais rico do Brasil, mas não conseguem, subjetivamente, absorver isso como fato. Provavelmente se surpreenderiam ao ver, na Tabela com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) que a média do rendimento do trabalho por pessoa ocupada em 2017 foi não mais que R$ 2.184 e que a média do rendimento domiciliar per capita foi apenas R$ 1.274.
Uma ideia razoável seria considerar como classe média os 50% que estão no meio da distribuição de renda, isto é, excluir os 25% mais pobres e os 25% mais ricos. Isso nos daria, como se verifica na Tabela abaixo, uma faixa de rendimento domiciliar per capita de R$ 387 a R$ 1.356. O primeiro quartil é a separatriz entre os 25% relativamente mais pobres da distribuição e os 75% restantes: 25% da população brasileira tem renda domiciliar per capita inferior a R$387 e 75% tem renda domiciliar per capita superior a R$387. O terceiro quartil é a separatriz entre os 25% mais ricos da distribuição e os 75% restantes: apenas 25% da população tem renda domiciliar per capita superior a R$ 1.356, e 75% da população tem abaixo disso.
Quem nunca antes olhou dados de distribuição da renda no Brasil talvez se surpreenda ao verificar o quanto são baixos os níveis de renda para a maioria da população. Quando queremos analisar o nível de vida da população a variável que reflete isso melhor é a “renda domiciliar per capita” (analisada na segunda coluna da tabela). Para chegar à renda familiar per capita são consideradas todas as pessoas no domicílio (excluídos os que ali residem como pensionistas, empregados domésticos e parentes destes) e divide-se a soma dos rendimentos dessas pessoas pelo número delas. Assim, se numa família constituída por um casal com dois filhos só o pai tem rendimento, este teria que ser de R$5.424 para obtermos a renda familiar per capita de R$ 1.356.
DISTRIBUIÇÃO DA RENDA NO BRASIL 2017
Distribuição do rendimento do trabalho (total dos rendimentos das atividades exercidas pela pessoa e efetivamente recebido em mês anterior à entrevista) por pessoa ocupada e distribuição do rendimento domiciliar per capita (RDPC), conforme dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD contínua anual) de 2017
Estatística | Rendimento do trabalho por pessoa ocupada | Rendimento
domiciliar per capita |
|
Nº de pessoas (1000) | 89.120 | 207.004 | |
Índice de Gini | 0,524 | 0,549 | |
T de Theil | 0,587 | 0,615 | |
Razão médias 10+/40? | 14,2 | 17,5 | |
Porcentagem da renda apropriada pelos | |||
40% mais pobres | 11,9 | 9,9 | |
50% mais pobres | 17,3 | 15,2 | |
20% mais ricos | 57,6 | 59,1 | |
10% mais ricos | 42,4 | 43,3 | |
5% mais ricos | 30,5 | 30,8 | |
1% mais ricos | 12,5 | 12,2 | |
Valores observados(1) | |||
Média | 2.183,6 | 1274,0 | |
1º Quartil | 937,0 | 387,2 | |
Mediana | 1.300,0 | 757,0 | |
3º Quartil | 2.208,6 | 1.356,0 | |
90º percentil | 4.113,3 | 2.551,2 | |
95º percentil | 6.826,7 | 4.015,7 | |
99º percentil | 15.178,7 | 9.568,0 | |
Limite ricos/pobres(2) | 2.400,0 | 1.485,8 |
- Valores monetários em reais de setembro-outubro-novembro de 2017, quando o salário mínimo era R$ 937,00. Lembrar que ocorre subdeclaração da ordem de 30% a 40%.
- Um pequeno acréscimo na renda de uma pessoa causa redução do índice de Gini se sua renda estiver abaixo desse limite, mas causa aumento do índice de Gini se sua renda estiver acima desse limite.
NOTA: Tabela gentilmente cedida por Rodolfo Hoffmann. Ela contém apenas parte do que é analisado no trabalho acessado no site do Instituto de Estudos de Política Econômica.
É lógico que todos os valores observados na primeira coluna da tabela sejam maiores que os da segunda coluna. E é lógico, também, que os valores das estatísticas de desigualdade sejam menores: a distribuição dos rendimentos do trabalho por pessoa ocupada é menos desigual que a distribuição do rendimento domiciliar per capita. No caso do rendimento do trabalho, os 20% mais ricos se apropriam de 57,6% dos rendimentos. Já no caso do rendimento domiciliar per capita, os 20% mais ricos se apropriam de 59,1% do total dos rendimentos. Vale notar, na 4ª linha da Tabela, que a média da renda domiciliar per capita dos 10% mais ricos é 17,5 vezes a média dos 40% mais pobres.
A análise dos dados da distribuição da renda em 2017 continua mostrando um país em que há muitos pobres e poucos ricos. Basta olhar a Tabela. O 95º percentil é o valor que separa os que têm rendimento do trabalho acima de R$ 6.826,70 dos demais, isto é, quem ganha acima desse valor está entre os 5% mais ricos dentre as pessoas ocupadas, que se apropriam de 30,5% do total do rendimento de todos os trabalhos.
Vá alguém convencer uma pessoa que ganha R$ 6.830 mensais que ela está entre os 5% de rendimento mais alto. Ou que alguém que obtém R$ 15.179 mensais está entre o 1% que tem os rendimentos do trabalho mais altos. Mesmo quando não se podem rejeitar as evidências. Todos os dados usados aqui são apresentados e analisados em um estudo acadêmico recente de Rodolfo Hoffmann, Distribuição da renda, Brasil 2017: Apresentação didática das principais características da distribuição da renda no Brasil de acordo com dados da PNAD Contínua de 2017. Esse trabalho é bem mais amplo, distingue entre rendimento habitual e rendimento efetivo no período de referência, examina outras variáveis como a população econômica ativa, o impacto do desemprego, as desigualdades regionais e entre estados (inclusive DF), e níveis de pobreza.[2]Ainda que não tenha diretamente enfrentado essa questão de uma recusa subjetiva na sociedade brasileira em reconhecer a enormidade das desigualdades , é possível captar do trabalho algumas sugestões.
A primeira é o argumento da subdeclaração. Tem sido apontado, há muito tempo, que há uma subdeclaração de rendimentos na PNAD, o que implicaria que os percentis na Tabela estão subestimados. O autor calculou que essa subdeclaração é de 30% a 40% e observa: “Mas mesmo fazendo correções generosas para os valores do 9º decil e do 95º percentil podemos afirmar que em 2017 apenas 10% da população ocupada recebia habitualmente mais de R$ 6.700 mensalmente, apropriando-se de 41,3% de toda a renda”. (op. cit. p.10) Nota ainda “que quando nos referimos aos 5% mais ricos da população ocupada no Brasil, trata-se de mais de 4,4 milhões de pessoas e não de algumas dezenas de pessoas riquíssimas que recebem a atenção da mídia”. (op. cit., p.10) Mas a principal explicação talvez esteja em que as diferenças de renda no 1% mais rico também são enormes. No jargão dos especialistas nesses trabalhos, a distribuição da renda apresenta fortíssima assimetria à direita. O 1% mais rico das pessoas ocupadas começa com uma pessoa que obteve R$15.178,70, o que é 7,1 vezes a renda média, como se pode observar na Tabela. Acontece que o rendimento de pessoa ocupada mais alto declarado à PNAD foi de 132 vezes a renda média (op. cit., p.7), ou superior a R$300.000 mensais. E assim, com tais diferenças, sobretudo no Brasil, em que a ostentação ainda é descarada e sem pudor, alguém que está, indiscutivelmente, entre o 1% ou 2% mais rico da população se entende como “classe média”. Ou até como “pobre”.
[1]Apenas registro que a OCDE, em seu recente estudo Under pressure: the squeezed middle class, considera como classe média no Brasil pessoas com salário anual entre 4.960 e 13.200 dólares. Ou seja, o limite superior não chegava a R$3.900 mensais em 2018.
[2]O estudo, de 27 páginas, pode ser acessado no site do Instituo de Estudos de Política Econômica, www.iepecdg.com, em Textos, e é o Texto para Discussão 46, Rodolfo Hoffmann, Distribuição da Renda, Brasil, 2017 (maio de 2019). Quem não entender o conceito de separatriz, o que é quartil, decil e percentil, terá que ir ao estudo original.
Texto bom é o que muda a cabeça. Às vezes apontando para fatos que estão aí, mas que não valorizamos ou valorizamos pelo avesso. Como dizia Nelson Rodrigues, só os profetas enxergam o óbvio. Confesso que, até hoje, com a cabeça no passado, eu me admirava do contingente de declarantes do IR. 30 milhões de declarantes! Sim, senhor, como avançamos, duas gerações atrás o IRPF me aparecia como uma novidade inventada para poucos por um cidadão de nome Travancas… A partir de hoje, Helga me ensina, eu vejo que são apenas 20% dos adultos, em idade de pagar. E o espanto aumenta, diante do piso tributável: R$ 2.800/mês. Como a população empregada deve ser umas 2,5 vezes o universo de declarantes, a conclusão maior que eu tiro é: como produzimos pouco! Também pudera, nesses últimos 20 anos o que mais cresceu foram os empregos nas áreas de vigilância, limpeza e atividades burocráticas, onde o progresso técnico vai a ritmo de lesma.
Outro dado interessante, embora não surpreendente, da PNAD, é a maior produtividade demográfica dos mais pobres: no 1o quartil, um ativo tinha 1,4 dependentes, enquanto no 99o percentil, só 0,6. Os “ricos” sabem se fazer raros…
Obrigado a Helga Hoffmann por um texto que muda meu pensamento de lugar.
Que bom Luiz Alfredo Raposo aparecer nessas páginas. Obrigada, mas é claro que não é a sua cabeça que quero mudar. Sinto falta dos seus artigos na “Será?”. Apesar de lê-los no seu blog. E quase sempre concordar com sua análise. Apresentei os dados de distribuição de renda como provocação nem tanto para “alienados” fechados atrás de seus altos muros e “protegidos” por seus guardas de segurança, aqui pelos arredores, que esses nem leem a “Será?”. É para fazer pensar professores universitários, deputados ou altos funcionários públicos que acham que ganham pouco e não sabem que estão no 1% mais rico do país. Será que leem a “Será?”