No início de 2017, circulou na rede social um artigo do cientista político, Itamar Portiolli, com cálculos que comparavam o benefício do INSS com o rendimento mensal de uma poupança. De acordo com seus cálculos, depois de 35 anos de depósito mensal de R$ 176,00 (equivalente, na época, à contribuição para um salário mínimo) numa caderneta de poupança, quando completasse 60 anos, o trabalhador teria um ativo total acumulado de R$ 422.784,02, muito mais do que receberia de benefício, ao longo de 15 anos de aposentado (apenas R$ 158.400,00).
Não. O cientista político e os entusiastas divulgadores do seu artigo na rede social não pretendiam demonstrar que o modelo de previdência por capitalização é bem melhor que o atual sistema de repartição. O objetivo deles era questionar que a previdência era deficitária, já que uma simples poupança individual daria resultado superior aos benefícios que estavam sendo pagos; e que, portanto, a reforma proposta por Michel Temer era mais uma maldade neoliberal. Abstraindo alguns dos pressupostos simplistas (não considerar a eventualidade da invalidez ou morte precoce do trabalhador e, mesmo, a sobrevida depois dos 15 anos de aposentado), a simulação constititui, na verdade, uma clara defesa do sistema de capitalização contemplado na proposta do ministro Paulo Guedes. Os adversários da reforma da Previdência esqueceram o que divulgaram antes, e concentram agora grande parte da crítica à proposta do governo na condenação veemente do modelo de capitalização.
A capitalização não é “o mais justo e eficiente” sistema de previdência, como diz Paulo Guedes, mas está longe de provocar o “desmonte do sistema de seguridade social brasileiro”, como afirma a oposição. A capitalização é um sistema de prevenção individual de cada trabalhador, enquanto a previdência por repartição pressupõe a solidariedade entre os que estão trabalhando e o que já se aposentaram; isto exige uma proporção razoável entre os que contribuem e os que recebem os benefícios, para garantir a sustentabilidade financeira; atualmente esta proporção é de 1,89 para um, no INSS, e quase um para um na previdência do serviço público.
O modelo de capitalização tem vantagens, mas também alguns riscos que, devidamente tratados, podem fazê-lo constituir uma excelente alternativa de previdência social, principalmente se contemplar salvaguardas sociais, ou se for considerado como um modelo complementar ao sistema de repartição. Uma vantagem para o trabalhador é o controle financeiro dos fundos que, segundo as regras propostas, serão monitorados por “entidades de previdência públicas e privadas, habilitadas por órgão regulador, assegurada a ampla transparência dos fundos, o acompanhamento pelos segurados, beneficiários e assistidos dos valores depositados e das reservas, e as informações das rentabilidades e dos encargos administrativos” (Art. 15 parágrafo III da PEC 06/2019). Mas a prinicpal vantagem é econômica: o modelo de capitalização forma uma grande poupança nacional, decorrente do depósito de dezenas de milhões de trabalhadores brasileiros nos fundos de previdência, semelhante ao que já se tem hoje com a previdência privada oferecida pelos bancos e pelos fundos de pensão das estatais. Osfundos de previdência suplementar que já existem no Brasil têm ativos de, aproximadamente, R$ 752 bilhões, o que constitui uma enorme poupança, com potencial de investimento de grande porte no país. Ao contrário do palavreado panfletário e simplório dos opositores, os bancos são apenas intermediários destes ativos, e ganham apenas quando os aplicam em empréstimos, através dos quais asseguram retorno aos depositantes.
Entretanto, como uma poupança individual vinculada à contribuição mensal do trabalhador para resgate futuro no momento da aposentadoria, a capitalização tem, em princípio, três defeitos ou riscos que, em parte, estão merecendo uma atenção especial na proposta do governo: (1) ao contrário do sistema de repartição da previdência utilizado, atualmente, no Brasil, na capitalização apenas o trabalhador contribui, reduzindo em muito o valor total das contribuições mensais que vão gerar o benefício futuro; (2) o valor do benefício futuro pode ser flutuante e incerto, como tem ocorrido no Chile, a depender do resultado da aplicação financeira da reserva, pela instituição que gerencia os recursos; (3) não considera o risco de morte e, principalmente, invalidez precoce do trabalhador, que levaria a uma antecipação do benefício antes da formação de uma poupança significativa, portanto, com benefícios tão inferiores quanto mais cedo ocorra o evento.
Em princípio, não existe nenhuma razão para que o empregador deixe de contribuir para a aposentadoria futura dos empregados, exceto a intenção altamente questionável de redução dos encargos trabalhistas, que poderia favorecer a geração de empregos, mas enfraquece a segurança futura do aposentado. No geral, a proposta do governo não contempla a participação das empresas na contribuição para a capitalização dos seus empregados, mas levanta a possibilidade quando define, no artigo 115, parágrafo VII da PEC, a “possibilidade de contribuições patronais e do trabalhador, dos entes federativos e do servidor, vedada a transferência de recursos públicos”. É interessante lembrar que, ao contrário da previdência privada, os fundos de pensão e previdência das empresas estatais (Petros, Previ, Funcep, etc.) contam com a participação dos patrões na constituição das reservas dos seus empregados. Além do mais, estes fundos de pensão se diferenciam do sistema de capitalização proposto porque funcionam como um sistema complementar à previdência do INSS e, também, porque formam uma poupança coletiva (e não individual) dos empregados das empresas.
Além disso, para que o sistema de capitalização não seja uma simples poupança e constitua, de fato, uma proteção segura para a velhice e, principalmente, para eventos indesejáveis que antecipem a invalidez, devem ser incorporadas algumas salvaguardas às regras. Ao contrário da crítica geral da oposição, a proposta apresentada pelo governo, que será ainda objeto de regulamentação, contém a garantia de uma renda mínima de aposentadoria não inferior ao salário mínimo, o que deve ser financiado por meio de um fundo solidário. Textualmente, a PEC estabelece a “garantia de piso básico, não inferior ao salário-mínimo para benefícios que substituam o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho, por meio de fundo solidário, organizado e financiado nos termos estabelecidos na lei complementar” (Art. 115, parágrafo II). Para a esmagadora maioria dos trabalhadores de salário mínimo, esta regra é suficiente para assegurar um benefício semelhante ao concedido atualmente pelo regime de repartição. Os benefícios dos trabalhadores com salários mais altos, entretanto, dependerão da flutuação das taxas de juros e do retorno dos investimentos do fundo. A eventual definição de taxa de juros mínima para proteção da flutuação da aplicação dos recursos do fundo exigiria o suporte do Tesouro, ou a constituição de um seguro.
A grande falha da capitalização reside no caso de invalidez ou morte precoce, na medida em que a poupança acumulada num intervalo de tempo mais curto que o previsto para aposentadoria deixaria o trabalhador sem cobertura. Para evitar esta situação dramática, seria necessária a introdução de um seguro (ou compromisso de aporte do Tesouro) que financiasse a antecipação eventual dos benefícios. Em parte, a proposta do governo contempla esta proteção, mesmo sem explicitar a fonte, quando antecipa, no citado artigo VII, inciso 2º, que o sistema de capitalização contemplará “beneficíos não programados, garantidas as coberturas mínimas para a) maternidade; b) incapacidade temporária ou permanente; e c) morte do segurado”. Mais uma vez, a proposta tende a criar uma proteção, mas apenas para os trabalhadores de menor remuneração, quando fala de cobertura mínima para os casos de invalidez precoce ou morte.
Para além dos resultados do sistema de capitalização no rendimento futuro dos aposentados, motivo da grande controvérsia, a sua implantação tem um impacto financeiro grave, na medida em que a contribuição dos optantes deve ir para uma poupança e, portanto, não poderia financiar os benefícios aos atuais aposentados e pensionistas. Como consequência, acelera-se o já elevado déficit do sistema de repartição. Para contornar este problema, o governo concebeu um sistema híbrido, no qual a contribuição mensal dos optantes pela capitalização continua financiando os benefícios dos atuais aposentados, mas ganha um registro contábil remunerado por uma taxa de juros ficticia. Este recurso contábil pode funcionar enquanto os novos contribuintes do sistema de capitalização não recorrem à aposentadoria, explodindo em algum momento no futuro. De modo que o mecanismo híbrido apenas adia o buraco financeiro, que, ao final, terá que ser coberto pelo Tesouro.
De todo o exposto, fica evidente que a proposta de capitalização do governo tem falhas e imprecisões, mas está longe de ser uma manobra cruel para prejudicar os trabalhadores brasileiros (menos ainda os mais pobres) ou, apenas, para enriquecer os banqueiros. Em todo caso, o melhor modelo de Previdência parece ser uma combinação do sistema de repartição, com solidariedade sincrônica entre os trabalhadores, com o modelo de capitalização individual, de forma complementar e opcional. Que será interessante, particularmente para trabalhadores de maior renda que desejem ampliar o seu benefício futuro além do limite legal e das garantias mínimas. Qualquer alternativa para salvar a Previdência e construir um modelo sustentável de médio e longo prazos exige, contudo, uma profunda reforma do atual sistema de repartição (praticamente falido e com déficts crescentes) nos termos definidos pela proposta do governo.
Sérgio, você esgotou o assunto.
Só não vê quem não quer. E isso é irremediável, lamentavelmente.
Antes de ler esta análise de Sérgio Buarque a minha posição era, basicamente, de antipatia da capitalização. E saí pela tangente dizendo que todos os modos não passaria. Mas Sérgio Buarque é de uma seriedade absoluta. Não vejo como discordar dele Então, que se aprove a capitalização, com a ressalva sobre os casos em que é necessária a antecipação. Mesmo assim ainda acho que é melhor que o Congresso discuta e aprove primeiro a reforma do atual sistema de repartição e, em seguida, discuta como acrescentar um sistema de capitalização. Aliás, é o que diz Sérgio Buarque no fim do artigo.
Resumo da ópera: transição com dois regimes (partição e poupança); capitalização com seguro; formatação da poupança com gestão auditada e transparente. Muito bom o debate. Sou beneficiário de ambos os sistemas. Como meu pai o foi. Só discordo do valor mínimo protegido pelo salário mínimo. Precisamos desindexar a economia.
Não sou de guardar rancor, muito menos num debate de ideias, mas me sinto de alma lavada depois da tentativa de desvalorização de meu comentário, ao Editorial de Clemente Rosas, há um mês, por ter citado a capitalização como o principal defeito da PEC da Previdência.
Agora, Sérgio Buarque dá até capitalização como título do seu texto, justamente a capitalização que, na crítica acerba que me foi feita, “não fazia parte do projeto” e poderia apenas surgir após a aprovação como lei complementar.
Percebo a confusão inicial de Helga Hoffmann, porque na verdade em países mais evoluídos que o nosso Brasil, hoje qualificado de idiocracia pelo Le Monde, existem dois tipos de aposentadoria: uma solidária, formada com a contribuições de todos os trabalhadores, e outra individual, um pecúlio economizado durante os anos de trabalho e valorizado com juros anuais.
Ao chegar à idade da aposentadoria, o trabalhador tem direito a uma renda mensal calculada segundo seus anos de contribuição e valor do salário recebido. A caixa onde são depositadas as contribuições de todos os trabalhadores e igual importância por parte dos empregadores, é de responsabilidade do Estado. Paralelamente, o trabalhador, também com participação do empregador, deposita numa outra Caixa privada, uma poupança que vai se valorizando ou capitalizando com o tempo. Ao chegar à idade da aposentadoria, ele receberá mensalmente o produto dessas duas poupanças. Uma pelo tempo de serviço, outra por sua poupança pessoal.
Esse é o sistema vigente na Suíça (desculpe-me Helga citar mais uma vez esse país), país rico, onde o salário mínimo equivale a dez mil reais brasileiros. Faço questão de citar país rico, porque mesmo sendo rico, seu sistema de aposentadoria prevê dois tipos de aposentadoria conjugados a fim de evitar problemas econômicos para os idosos, vivendo atualmente em média noventa anos.
E nosso Brasil idiocrático, pobre, tem um projeto de aposentadoria prevendo uma só aposentadoria, a capitalização dos depósitos do trabalhador sem participação do empregador. Uma crueldade para os pobres trabalhadores rurais que, na maioria, não têm nem como fazer uma poupança a ser capitalizada. E, caso provem essa insuficiência (mas nem todos saberão como fazer esse pedido) não receberão nem um salário mínimo, porém apenas 900,00 reais, sujeitos a desvalorização.
Seu texto Sérgio Buarque é técnico, estas minhas observações talvez sejam bregas por serem ditadas pela compaixão por meus compatriotas distantes, prestes a serem sacrificados. Amanhã, sexta-feira, dia 14, farei greve aqui na minha mesa de trabalho em respeito a esses milhões de brasileiros que terão aposentadorias menores.
Seu texto não fala, mas haverá maiores exigências de tempo para as mulheres, os viúvos e viúvas receberam 60% da aposentadoria do cônjuge falecido em lugar da integralidade atual, enquanto quem por infelicidade se tornar inválido terá cerca de 60% do valor de uma aposentadoria, em lugar dos 80% atuais. Pouco se fala, mas haverá leis complementares, nas quais os empregadores decidirão em “pé de igualdade” outras cláusulas como a das férias, podendo ser diminuídas como são nos EUA.
As aposentadorias não serão revalorizadas segundo a inflação e nem a poupança capitalizada, ou seja, depois de tantos anos de economia pode o total ser destruído por uma inflação. Não é GROSSA MENTIRA QUE A PEC DA NOVA PREVIDÊNCIA PREJUDICA OS MAIS POBRES. É a dolorosa verdade, tanto que um deputado da oposição, não me lembro de seu nome, nãp pôde se conter e chorou, ao se pronunciar contra essa PEC, que irá provocar uma pauperização da população aposentada, após 40 anos de trabalho. E não há como negar, os bancos passarão a deter bilhões de reais.
É verdade, muitos pobres, lembrando a cegueira dos seguidores de Antonio Conselheiro, seguem seus pastores evangélicos, convictos das boas intenções de seu presidente. Espero que a greve deste 14 de junho desperte a consciência dos frios economistas e dos parlamentares para evitar com a pauperização uma deflação, uma estagnação de nossa economia, e mais miséria e mais pobreza. E lamento que, na análise dessa questão tão próxima da nossa população, tenha faltado a sensibilidade humana e mesmo um pouco de compaixão.
Apenas uma retificação:: o editorial referido não foi meu, mas do Conselho Editorial da Revista.