Sérgio C. Buarque

No início de 2017, circulou na rede social um artigo do cientista político, Itamar Portiolli, com cálculos que comparavam o benefício do INSS com o rendimento mensal de uma poupança. De acordo com seus cálculos, depois de 35 anos de depósito mensal de R$ 176,00 (equivalente, na época, à contribuição para um salário mínimo) numa caderneta de poupança, quando completasse 60 anos, o trabalhador teria um ativo total acumulado de R$ 422.784,02, muito mais do que receberia de benefício, ao longo de 15 anos de aposentado (apenas R$ 158.400,00).

Não. O cientista político e os entusiastas divulgadores do seu artigo na rede social não pretendiam demonstrar que o modelo de previdência por capitalização é bem melhor que o atual sistema de repartição. O objetivo deles era questionar que a previdência era deficitária, já que uma simples poupança individual daria resultado superior aos benefícios que estavam sendo pagos; e que, portanto, a reforma proposta por Michel Temer era mais uma maldade neoliberal. Abstraindo alguns dos pressupostos simplistas (não considerar a eventualidade da invalidez ou morte precoce do trabalhador e, mesmo, a sobrevida depois dos 15 anos de aposentado), a simulação constititui, na verdade, uma clara defesa do sistema de capitalização contemplado na proposta do ministro Paulo Guedes. Os adversários da reforma da Previdência esqueceram o que divulgaram antes, e concentram agora grande parte da crítica à proposta do governo na condenação veemente do modelo de capitalização.

A capitalização não é “o mais justo e eficiente” sistema de previdência, como diz Paulo Guedes, mas está longe de provocar o “desmonte do sistema de seguridade social brasileiro”, como afirma a oposição. A capitalização é um sistema de prevenção individual de cada trabalhador, enquanto a previdência por repartição pressupõe a solidariedade entre os que estão trabalhando e o que já se aposentaram; isto exige uma proporção razoável entre os que contribuem e os que recebem os benefícios, para garantir a sustentabilidade financeira; atualmente esta proporção é de 1,89 para um, no INSS, e quase um para um na previdência do serviço público.

O modelo de capitalização tem vantagens, mas também alguns riscos que, devidamente tratados, podem fazê-lo constituir uma excelente alternativa de previdência social, principalmente se contemplar salvaguardas sociais, ou se for considerado como um modelo complementar ao sistema de repartição. Uma vantagem para o trabalhador é o controle financeiro dos fundos que, segundo as regras propostas, serão monitorados por “entidades de previdência públicas e privadas, habilitadas por órgão regulador, assegurada a ampla transparência dos fundos, o acompanhamento pelos segurados, beneficiários e assistidos dos valores depositados e das reservas, e as informações das rentabilidades e dos encargos administrativos” (Art. 15 parágrafo III da PEC 06/2019). Mas a prinicpal vantagem é econômica: o modelo de capitalização forma uma grande poupança nacional, decorrente do depósito de dezenas de milhões de trabalhadores brasileiros nos fundos de previdência, semelhante ao que já se tem hoje com a previdência privada oferecida pelos bancos e pelos fundos de pensão das estatais. Osfundos de previdência suplementar que já existem no Brasil têm ativos de, aproximadamente, R$ 752 bilhões, o que constitui uma enorme poupança, com potencial de investimento de grande porte no país. Ao contrário do palavreado panfletário e simplório dos opositores, os bancos são apenas intermediários destes ativos, e ganham apenas quando os aplicam em empréstimos, através dos quais asseguram retorno aos depositantes.

Entretanto, como uma poupança individual vinculada à contribuição mensal do trabalhador para resgate futuro no momento da aposentadoria, a capitalização tem, em princípio, três defeitos ou riscos que, em parte, estão merecendo uma atenção especial na proposta do governo: (1) ao contrário do sistema de repartição da previdência utilizado, atualmente, no Brasil, na capitalização apenas o trabalhador contribui, reduzindo em muito o valor total das contribuições mensais que vão gerar o benefício futuro; (2) o valor do benefício futuro pode ser flutuante e incerto, como tem ocorrido no Chile, a depender do resultado da aplicação financeira da reserva, pela instituição que gerencia os recursos; (3) não considera o risco de morte e, principalmente, invalidez precoce do trabalhador, que levaria a uma antecipação do benefício antes da formação de uma poupança significativa, portanto, com benefícios tão inferiores quanto mais cedo ocorra o evento.

Em princípio, não existe nenhuma razão para que o empregador deixe de contribuir para a aposentadoria futura dos empregados, exceto a intenção altamente questionável de redução dos encargos trabalhistas, que poderia favorecer a geração de empregos, mas enfraquece a segurança futura do aposentado. No geral, a proposta do governo não contempla a participação das empresas na contribuição para a capitalização dos seus empregados, mas levanta a possibilidade quando define, no artigo 115, parágrafo VII da PEC, a “possibilidade de contribuições patronais e do trabalhador, dos entes federativos e do servidor, vedada a transferência de recursos públicos”. É interessante lembrar que, ao contrário da previdência privada, os fundos de pensão e previdência das empresas estatais (Petros, Previ, Funcep, etc.) contam com a participação dos patrões na constituição das reservas dos seus empregados. Além do mais, estes fundos de pensão se diferenciam do sistema de capitalização proposto porque funcionam como um sistema complementar à previdência do INSS e, também, porque formam uma poupança coletiva (e não individual) dos empregados das empresas.

Além disso, para que o sistema de capitalização não seja uma simples poupança e constitua, de fato, uma proteção segura para a velhice e, principalmente, para eventos indesejáveis que antecipem a invalidez, devem ser incorporadas algumas salvaguardas às regras. Ao contrário da crítica geral da oposição, a proposta apresentada pelo governo, que será ainda objeto de regulamentação, contém a garantia de uma renda mínima de aposentadoria não inferior ao salário mínimo, o que deve ser financiado por meio de um fundo solidário. Textualmente, a PEC estabelece a “garantia de piso básico, não inferior ao salário-mínimo para benefícios que substituam o salário de contribuição ou o rendimento do trabalho, por meio de fundo solidário, organizado e financiado nos termos estabelecidos na lei complementar” (Art. 115, parágrafo II). Para a esmagadora maioria dos trabalhadores de salário mínimo, esta regra é suficiente para assegurar um benefício semelhante ao concedido atualmente pelo regime de repartição. Os benefícios dos trabalhadores com salários mais altos, entretanto, dependerão da flutuação das taxas de juros e do retorno dos investimentos do fundo. A eventual definição de taxa de juros mínima para proteção da flutuação da aplicação dos recursos do fundo exigiria o suporte do Tesouro, ou a constituição de um seguro.

A grande falha da capitalização reside no caso de invalidez ou morte precoce, na medida em que a poupança acumulada num intervalo de tempo mais curto que o previsto para aposentadoria deixaria o trabalhador sem cobertura. Para evitar esta situação dramática, seria necessária a introdução de um seguro (ou compromisso de aporte do Tesouro) que financiasse a antecipação eventual dos benefícios. Em parte, a proposta do governo contempla esta proteção, mesmo sem explicitar a fonte, quando antecipa, no citado artigo VII, inciso 2º, que o sistema de capitalização contemplará “beneficíos não programados, garantidas as coberturas mínimas para a) maternidade; b) incapacidade temporária ou permanente; e c) morte do segurado”. Mais uma vez, a proposta tende a criar uma proteção, mas apenas para os trabalhadores de menor remuneração, quando fala de cobertura mínima para os casos de invalidez precoce ou morte.

Para além dos resultados do sistema de capitalização no rendimento futuro dos aposentados, motivo da grande controvérsia, a sua implantação tem um impacto financeiro grave, na medida em que a contribuição dos optantes deve ir para uma poupança e, portanto, não poderia financiar os benefícios aos atuais aposentados e pensionistas. Como consequência, acelera-se o já elevado déficit do sistema de repartição.  Para contornar este problema, o governo concebeu um sistema híbrido, no qual a contribuição mensal dos optantes pela capitalização continua financiando os benefícios dos atuais aposentados, mas ganha um registro contábil remunerado por uma taxa de juros ficticia. Este recurso contábil pode funcionar enquanto os novos contribuintes do sistema de capitalização não recorrem à aposentadoria, explodindo em algum momento no futuro. De modo que o mecanismo híbrido apenas adia o buraco financeiro, que, ao final, terá que ser coberto pelo Tesouro.

De todo o exposto, fica evidente que a proposta de capitalização do governo tem falhas e imprecisões, mas está longe de ser uma manobra cruel para prejudicar os trabalhadores brasileiros (menos ainda os mais pobres) ou, apenas, para enriquecer os banqueiros. Em todo caso, o melhor modelo de Previdência parece ser uma combinação do sistema de repartição, com solidariedade sincrônica entre os trabalhadores, com o modelo de capitalização individual, de forma complementar e opcional. Que será interessante, particularmente para trabalhadores de maior renda que desejem ampliar o seu benefício futuro além do limite legal e das garantias mínimas. Qualquer alternativa para salvar a Previdência e construir um modelo sustentável de médio e longo prazos exige, contudo, uma profunda reforma do atual sistema de repartição (praticamente falido e com déficts crescentes) nos termos definidos pela proposta do governo.